São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005 |
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O nascimento do Pós-Ocidente
O autor de "Mundo Livre" defende o Google como forma de violar segredos de Estado e diz que EUA e Europa têm somente 20 anos para consolidar os valores democráticos no resto do planeta JOSÉ GALISI FILHO ESPECIAL PARA A FOLHA O conflito entre Estados Unidos e Europa na questão iraquiana radicalizou a crise já em curso no Pacto Atlântico que se seguiu às rápidas mudanças das coordenadas geopolíticas do pós-Guerra Fria. Depois do 11 de Setembro, a emergência de um novo terrorismo desvinculado de qualquer centro de poder estatal implodiu finalmente o próprio conceito estratégico de Ocidente, vinculado à Otan [aliança militar ocidental]. A Europa perdeu seu papel de parceiro privilegiado de Washington e, em ambos os lados do Atlântico, clivagens políticas internas acentuaram o sentimento de perda de identidade que se ocultou até agora sob o "pathos" do marketing político de plantão. Enquanto historiadores como Francis Fukuyama ["O Fim da História e o Último Homem", ed. Rocco], [o colunista do "Washington Post"] Robert Kagan ["Americanos São de Marte e os Europeus de Vênus", incluído em "Do Paraíso e do Poder", ed. Rocco], [o cientista político americano] Samuel Huntington [autor de "O Choque de Civilizações", ed. Objetiva] postulavam um "novo patriotismo" americano, e [o secretário de Defesa dos EUA] Donald Rumsfeld avacalhava os antigos parceiros Alemanha e França, que se opunham a uma aventura no Iraque, como a "Velha Europa", intelectuais europeus como Jürgen Habermas e Jacques Derrida engajavam-se na cruzada moral de uma suposta identidade européia na defesa da liberdade e do direito contra o Estado de Natureza hobbesiano do unilateralismo da Doutrina Bush [documento divulgado pela Casa Branca em 2002 que estabelece as diretrizes da política externa e de segurança dos EUA]. Para o historiador britânico Timothy Garton Ash, diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford, essa exaltação dos ânimos é apenas o epifenômeno de um processo mais complexo de diferenciação do Ocidente clássico, como o conhecemos até 2001 e que não mereceu até agora uma análise detalhada de sua história remota. Em seu novo livro ["Free World -America, Europe, and the Surprising Future of the West", Mundo Livre -América, Europa e o Surpreendente Futuro do Ocidente, Penguin, 308 págs., 17,99 libras], um ensaio-manifesto, Ash argumenta que esse espelhamento de auto-representações estereotipadas oculta a emergência de um "Pós-Ocidente". Os EUA, divididos entre [o presidente reeleito pelo Partido Republicano George W.] Bush e [o candidato democrata John] Kerry, projetam-se, por sua vez, numa Europa e sua retaguarda intelectual polarizadas entre o "eurogaulismo" de Jacques Chirac [presidente da França] no eixo franco-alemão, na fantasia retrospectiva de uma Europa rival, contra a Inglaterra e sua tradicional face de Janus no projeto (fracassado) "neochurchillista" de Tony Blair [premiê inglês] de recuperar o papel de "relacionamento especial" na ponte transatlântica. Essa crise, antes de dividir EUA e Europa, representaria, para Ash, a última chance de redefinir e ampliar o sentido da democracia e da liberdade no mundo com base nos valores comuns entre Estados Unidos e Europa numa frente comum diante dos novos desafios do século, como a miséria, a fome, o aquecimento global, a modernização do mundo árabe, o terrorismo, mas, sobretudo, a ascensão das novas potências asiáticas, em especial da China. "Europeus e americanos têm, no máximo, mais 20 anos para mudar o curso da história do mundo. Essa é a nossa última chance. Caso contrário, imagino um mundo como o de "1984", do escritor George Orwell, em conflito entre blocos como Eurásia e Oceania". Garton Ash concedeu a entrevista a seguir em Hamburgo, onde estava para lançar a tradução alemã de seu livro. Folha - O que o sr. entende como
"Pós-Ocidente"? Folha - Foi sobretudo a afirmação de
Donald Rumsfeld sobre a posição
francesa e alemã diante do Iraque como "Velha Europa" que pôs definitivamente o dedo na ferida do orgulho
continental e desencadeou uma ampla mobilização intelectual. Jürgen
Habermas exigiu uma resposta à altura da "provocação americana", argumentando que a política externa de
Bush seria movida apenas por interesses econômicos espúrios, enquanto a
Europa representaria um pólo da cultura e da democracia. Já o escritor
Durs Grünbein denominou essa reação, positivamente, como a "rebelião
dos vassalos". O livro reconstrói detalhadamente essa polêmica. Como o sr.
avalia o apelo de Habermas?
Em segundo lugar, esse núcleo de identidade européia, tal e qual Habermas o define abstratamente, não existe; existem várias composições de Estados europeus, há várias europas superpostas, uma Europa da política de defesa, uma Europa dos subsídios agrícolas. O que Habermas postula é que a Europa seria "outra", mas esse outro, ou seja, a não-América, significa "somos melhores". Esse raciocínio, muito em curso hoje, mesclado com um sentimento antiamericano já arraigado na França e na Alemanha, é uma simplificação inadmissível. Os europeus se orgulham de terem abolido a pena de morte e opõem conquistas da democracia social e valores como solidariedade, defesa ambiental, multilateralidade a uma América supostamente hobbesiana e arcaica, que se impõe pela força. É um fenômeno interessante. Se você levar em conta as teses de Fukuyama, Huntington e Kagan, ou seja, idéias que alimentam o mundo folhetinesco e tangenciam com o senso comum, então perceberemos que essa autodefinição da Europa, ironicamente, é, por sua vez, um reflexo distorcido desses esquemas simplificatórios. Haveria assim, supostamente, dois ocidentes, um europeu e um americano. Denomino essa generalização em meu livro como "fábula das duas europas", tolices como os europeus são de Vênus e a América de Marte. Por sua vez, também se dissemina nos Estados Unidos esse tipo de generalização caricata em relação à Europa. Numa análise mais sóbria, veremos então as linhas divisórias que atravessam cada uma dessas sociedades. Do ponto de vista histórico, haveria assim uma posição "eurogaulista" e "euroatlântica" ou "neochurchillista". A questão central prática é encontrar uma convergência na política de defesa comum para a União Européia. Esse seria o passo decisivo para encontrar um compromisso entre os dois pólos dessa Europa dos 25, entre Inglaterra e França, entre o "eurogaulismo" de Jacques Chirac, ou seja, esta péssima fantasia de uma Europa rival da América, e Tony Blair, com seu "churchillismo" de "relacionamento especial". E o papel da Alemanha seria central como moderador desses dois pólos. Folha - Mas a Alemanha no momento é um vale de lamúrias, enclausurada na lógica de sua própria crise econômica. Os alemães, justificadamente, têm sérias dúvidas sobre seu futuro e apenas uma certeza: seu declínio.
Na questão iraquiana, embora a França tenha liderado a recusa, foi a Alemanha que deu o golpe decisivo em 2002 e não em razão apenas de um cálculo eleitoral. Chamei o capítulo de "A Posição dos Sentimentos Alemães". Mais do que na Inglaterra e França, existe na Alemanha a memória de um trauma duradouro em razão da devastação completa de suas cidades pelo bombardeio aéreo, um verdadeiro repúdio a qualquer forma de guerra que vem sendo recuperado na historiografia e no debate público. Bush pai tinha prometido à Alemanha reunificada uma "parceria" na liderança depois de 45 anos de soberania limitada, e agora dissemina-se o sentimento de ser tratada como "vassala" de segunda classe. Folha - Por que a cooperação entre
regimes democráticos não é tão eficiente quanto a articulação entre grupos terroristas? Folha - O Sr. compara Bush a Nero
num mundo em chamas e retoma um
conceito da tragédia clássica para definir sua obstinação na questão iraquiana: "hybris", a soberba que conjura a catástrofe. Poder, para Bush,
como o sr. enfatiza, reduz-se simplesmente à dissuasão do poder militar.
Como os europeus se acomodarão a
seu segundo mandato? Seria uma saída honrosa, a médio prazo, mandar
tropas da ONU para o Iraque? Folha - O seu livro reconstrói também a longa história de inimizade entre franceses e ingleses desde Agincourt [batalha decisiva vencida pelos
ingleses na Guerra dos Cem Anos, em
1415] , a mais antiga da Europa, que
reaparece no estranhamento entre
Blair e Chirac. No entanto o sr. reconhece que "tanto o "neochurchillista"
Blair como o "eurogaulista" Chirac são
irmãos em espírito". O capítulo central é dedicado à face de Janus da Inglaterra. Quais foram os erros de
Blair? Uma Europa unida teria impedido a intervenção no Iraque? Folha - Nesse sentido, a ampliação
da União Européia, nesse impasse inglês, não significaria um aprofundamento da identidade européia, mas
simplesmente a consolidação de uma
zona de comércio livre, como muitos
ingleses desejam? Folha - O sr. escreveu seu livro na
condição de "patriota europeu britânico". O que é um "patriota europeu
britânico"? Folha - Pela primeira vez Brasil, Índia, Japão e Alemanha são candidatos
a uma vaga fixa no Conselho de Segurança da ONU. Qual é o papel da América Latina neste novo contexto? Folha - O sr. vê no programa de busca Google uma ferramenta revolucionária, que destrói os segredos de Estado. Não lhe parece muito otimista
essa posição? Onde encomendar Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/ 21/ 2533-2237) ou no site www.amazon.co.uk José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover (Alemanha). Texto Anterior: + filosofia: Harmonia dos extremos Próximo Texto: + livros: Olhos de lince Índice |
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