São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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O povo contra Henry Miller

"Sexus" e "Dias de Paz em Clichy" repõem em circulação a ficção iconoclasta de um dos principais autores americanos do século 20

MARCELINO FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sorry, sorry." Perdoem-me a ignorância. Nunca fui de ler muito a literatura norte-americana. Bem que tentei. Desde o tempo em que morava no Recife. Desde quando escapei do sertão pernambucano. Meu universo sempre foi o de Graciliano Ramos. De José Lins [do Rego]. João Cabral [de Melo Neto], Manuel Bandeira etc. e tal.
Sempre tive uma preguiça intelectual para o estrangeiro. Exceto os universais Kafka, Dostoiévski e Flaubert. Para que mais? Estou perdido, eu sei. Hoje todo mundo fala inglês. Lá em Parati [Festa Literária Internacional de Parati], trombei mais de uma vez com Paul Auster e não gostei. "My God!" Não faz muito tempo que li Salinger, Kerouac e Charles Bukowski (este, alemão, criado nos EUA). Só recentemente cheirei -desculpem-me o trocadilho- John Fante e o seu "Pergunte ao Pó". Por exemplo, o Hemingway do qual eu gosto é o Hemingway mais cubano, o de "O Velho e o Mar" e de alguns contos. Gosto, idem, do Melville muito mais pelo minúsculo "Bartleby - O Escriturário" do que pelo maiúsculo "Moby Dick".


"Sexus" vem repleto de deliciosas considerações sobre a escrita


Até hoje não tenho, "brothers", paciência para o Scott Fitzgerald. Uma falha, reconheço. Podem me acusar de iraniano, sei lá. "I love Bagdá." De que quero, aqui, pegar carona na onda antiBush. Nada a ver. O caso é que não troco um [Don] DeLillo por um Campos de Carvalho, por um João Gilberto Noll e assemelhados. Tenho culpa se sou obcecado pela literatura brasileira? E o que dizer do argentino Julio Cortázar? Esse, sim, o primeiro forasteiro bem-vindo à minha cabeceira alienada. Alienígena, como queiram.
Atirem-me a primeira granada. Estou aqui para falar de Henry Miller e até agora não falei nada. Pode? A saber: Miller nasceu em Nova York 1891 e morreu (na cama -enquanto "dormia", é preciso que se diga) em 1980. É um dos maiores escritores do século 20. Oh, "yeah"! E um dos mais polêmicos. Foi censurado, perseguido, teve sua libido proibida. Explico: tudo por causa de sua obra autobiográfica, umbigosamente erótica, sem papas na língua (e que língua!) -livros que puseram a sociedade americana em polvorosa. Deus Salve a América, Ave-Maria, Nossa Senhora!
Pois bem: o caso é que acabei de ler, numa sentada só, o "Sexus", seu clássico maldito relançado em nova tradução pela Companhia das Letras, e o "Dias de Paz em Clichy", saído pela José Olympio. Um verdadeiro rock and roll na veia. Overdose de parágrafos pornográficos. Porra! E os contos do Samuel Rawet me esperando na prateleira. Ainda não li o "Estrela Polar", do português Vergílio Ferreira.
Vamos deixar de punhetagem e parar de brincadeira. Conto logo: foi ainda no Recife, empolgado que eu estava com a leitura de umas putarias bêbadas, que cruzei pela primeira vez com Henry Miller e o seu "Trópico de Câncer", estréia literária do autor, quando ele já estava com mais de 50 anos. "Trópico" é considerado sua obra prima, embora eu a tenha trocado, mais tarde, explicitamente, pela viadagem de Genet e o seu "Diário de um Ladrão".
Enfim, assado. Lembro, também, de ter visto à mesma época "Henry & June", filme, dirigido por Philip Kaufman, baseado na vida pervertida do escritor e que revelou, para o mundo, a atriz portuguesa Maria de Medeiros no papel da escritora Anaïs Nin, com quem Miller e a mulher de Miller, June, tiveram um relacionamento. Um "ménage à trois" que deu o que falar. E o que narrar: esse "Sexus", o primeiro livro de sua famosa trilogia autobiográfica chamada "A Crucificação Rosada", que inclui ainda os livros "Plexus" e "Nexus" , conta muito do relacionamento entre Henry e sua mulher, batizada no livro de Mara e/ou Mona.

Vida e escrita
E conta, sobretudo, da sua peleja e pindaíba para se tornar escritor, entre uma trepada e várias outras, entre artistas mequetrefes e putas e pileques, na cidade de Nova York dos anos 1920, eta gôta! O livro, idem, vem repleto de deliciosas considerações acerca da escrita. A conferir: "O escritor realmente grande não quer escrever". Ou: "Um gênio não inspira outro". Ou ainda: "O escritor devia enlouquecer! As pessoas estão fartas de enredo, fartas de personagens. Enredos e personagens não criam vida. A vida não está no andar de cima: a vida está aqui, agora".
Por isso Henry não perdia tempo. E ia vivendo e escrevendo. Escrevendo e vivendo. Sem separar uma coisa da outra. O que o fez morar por um bom tempo em Paris, onde criou grande parte de sua obra. Dizia, feliz: "A primeira coisa que a gente nota, aqui em Paris, é que o sexo está no ar". Melhor oxigênio não houve para o autor, principalmente nos anos pré-Segunda Guerra. "Dias de Paz em Clichy", escrito quando voltou à sua terra, é o relato, via seu alter ego Joey, de dois anos felizes em que dividiu morada com um amigo, em Clichy -mesmo tendo que comer pão catado no lixo e queijos vencidos. A saber: Clichy é um sub-bairro dentro da famosa Montmartre.
No livro, inclusive, Miller faz comparações hilárias e ácidas entre Montmartre e um dos mais famosos bairros de Nova York: "A Broadway parece excitante, até mágica às vezes, mas não há nela fogo, não há calor -é um reclame de amianto brilhantemente iluminado, o paraíso dos agentes de publicidade. Montmartre é gasta, murcha, abandonada, nua e corrupta, mercenária, vulgar. É, no fundo, mais repulsiva do que atraente, como o próprio vício".
Sem contar que Miller nunca gostou dos EUA, "o mais mecanizado e robotizado dos países". Será que é por isso que nunca li apaixonadamente a literatura norte-americana? Será que é por isso que me confundem, às vezes, com um dinossauro spielberguiano? Serei eu, por acaso, um armorial com inveja da Disneylândia? Não sei. O que sei é que, embora tenha gostado de ter relido as linhas angustiadas, bem-humoradas, sempre auto-referentes de Henry.
Embora tenha me empolgado com as suas trepadas febris que, creio, nunca encontraram similar em nossa literatura "tropiniquim", não escapo de citar os brasileiros Marcelo Mirisola e Nilo Oliveira, esse último, autor do ótimo e buliçoso "Pornografia Pessoal (de um Ilusionista Fracassado)", recém-lançado pela editora Baleia.
A verdade é que, "sorry, sorry", sempre acabo me achando frígido diante dos orgasmos prolongados e dos grunhidos. Diante das protuberâncias e das "contrações musculares extraordinárias" desse inegável gênio americano. Juro. Fico com cara de bobo, procurando a literatura que eu realmente gosto pelo buraco da fechadura. Deste lado me esperam, por exemplo, os calhamaços do escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke. "Do you know him"? É jogo duro.

Marcelino Freire é escritor, autor de "BaléRalé" (Ateliê Editorial), entre outros.

Sexus
584 págs., R$ 55,00 de Henry Miller. Trad. Sergio Flaksman. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/ 11/3707-3500).
Dias de Paz em Clichy
112 págs., R$ 22,00 de Henry Miller. Trad. Roberto Muggiati. Ed. José Olympio (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2060).



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