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A revolução será televisionada
Usando as mesmas armas da internet, redes de TV podem dar a volta por cima e atrair mais público que o mundo virtual
A web "é chata e está morta";
é exatamente aí que estão o problema e a oportunidade que a TV tradicional precisa encarar
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MICHAEL HIRSCHORN
Uma das coisas mais
cansativas nos devotos das novas
mídias é a sua convicção, em nada diferente daquela ostentada por
pessoas que aderem a cultos
religiosos: para eles, ou uma
pessoa "entende" o que é importante ou não entende. Ainda que seja um costume cansativo, isso não quer dizer que não estejam certos, pelo menos
em certa medida.
Um exemplo clássico seria a
maneira como Steve Jobs
[principal executivo da Apple]
transformou a indústria fonográfica em refém e praticamente a destruiu. As grandes gravadoras, ao concederem à Apple o
direito de vender faixas individuais por US$ 0,99, solaparam
o modelo de negócios que as
sustentava -vender grupos de
canções unidas em um produto
chamado "álbum", por até US$
20 a unidade.
O que elas não perceberam
foi o fato de que as pessoas estavam prontas para começar a
consumir música de maneira
inteiramente nova. As gravadoras viam o iTunes como uma
maneira de ganhar dinheiro
sem despesas -como uma fonte "subsidiária" de receita, no
sentido legal do termo.
Jobs tomou essas canções
baratas e as vendeu abaixo do
preço, como forma de estimular a compra dos dispendiosos
iPods fabricados por sua empresa, e o setor de música em
sua forma tradicional agora está despedaçado.
Como trabalho no setor de
TV convencional, não tinha
percebido até agora que exatamente a mesma coisa está
acontecendo no mercado de vídeo. Eu certamente acompanhei a ascensão de serviços de
vídeo online como o YouTube.
O iTunes também começou a
operar no mercado de vídeo,
oferecendo uma combinação
entre vídeos profissionais e
podcasts em vídeo de amadores e quase amadores.
Como as gravadoras antes
deles, as redes de TV e estúdios
de cinema licenciaram parte de
seu conteúdo para a Apple, permitindo que o iTunes vendesse
programas e filmes com a mesma estratégia de preço único
que ela havia adotado para a
música (US$ 1,99 no caso dos
programas de TV e US$ 9,99
para filmes).
O iPod Video, que concorre
com os celulares capazes de
exibir vídeos e outros aparelhos capazes de exibir essa forma de conteúdo, permitiu que
o conteúdo visual chegasse ao
mercado móvel, o que deu início a um período de vídeo acessível a qualquer hora, em todo
lugar e de imediato.
Tudo isso parecia apenas ruído de fundo, resmungo digital,
porque uma coisa era óbvia: as
pessoas amam a televisão. Jamais deixarão de assistir à TV.
O YouTube pode ser popular
mas não conta, porque não é
TV de verdade. Seus vídeos são
curtos, e muitos deles são esquisitos. A TV profissional
apresenta mais brilho, narrativas mais agradáveis. E esses valores seriam eternos.
Mas uma recente visita a
Houston me convenceu de que
eu não estava entendendo a situação. Meu amigo Mike e sua
mulher haviam dispensado
completamente o televisor e,
em lugar disso, utilizavam um
iMac com tela de 20 polegadas
como uma espécie de home
theater improvisado, sem perdas dolorosas de qualidade.
O conteúdo vinha do iTunes,
de outros serviços de mídia na
web e de DVDs. Ao fazê-lo, dispensaram as polpudas contas
da TV a cabo e afirmaram uma
forma iconoclasta de controle
sobre a mídia em suas vidas.
A experiência tradicional de
assistir à TV não precisa necessariamente morrer, mas, para
salvá-la, o complexo mídia-indústria terá que agir de modos
não-tradicionais e desconfortáveis e terá, igualmente, que
repensar "o que é TV".
No momento, isso significa
assistir a um programa de vídeo produzido profissionalmente. O telespectador é um
participante passivo e usa um
televisor ligado a um decodificador que recebe conteúdo de
um serviço de cabo ou transmissão digital.
No futuro, a TV será uma cacofonia de conteúdos profissional e amador, em forma longa
ou curta, distribuídos por uma
variedade de plataformas e recebido por uma variedade de
aparelhos.
O conteúdo recebido será
editado, comentado, parodiado
e retransmitido pelo antigo
"telespectador" -agora chamado "usuário"- para quem
quer que ele deseje. Determinar quem pagará a quem para
fornecer que serviço a quem
mais representa a grande questão para esse novo modelo, em
torno do qual todas as revoluções da mídia parecem girar.
E não há nada que indique
que as pessoas que vêm sendo
pagas agora continuarão a sê-lo
dentro de alguns anos. O modelo surgido depois da Segunda
Guerra, de conteúdo em vídeo
dispendioso movimentando
um setor de produção de conteúdo imensamente lucrativo
(todos aqueles filmes com orçamentos de US$ 200 milhões)
está sob certa ameaça.
A grande greve dos roteiristas encerrada recentemente
nos EUA e uma possível greve
dos atores na metade deste ano
representam a grande batalha
final pelo controle dos lucros
do conteúdo em um momento
que talvez seja o último em que
disputar esse controle valha a
pena -mais ou menos como as
greves dos operários siderúrgicos nos anos 1980.
A história quanto ao vídeo
difere da história que aconteceu no setor de música de maneira crucial. Ser um fã de música tradicionalmente envolvia
ir à loja de discos, dedicando
quantias consideráveis a um
artefato do qual você conhecia
apenas uma ou duas canções, e
o processo todo, em geral, resultava em decepção com o
produto recebido.
O modelo que o iTunes criou
no setor de música e o modelo
do download ilegal representaram um salto quântico em termos de satisfação dos consumidores, diante dos modelos anteriormente existentes: tornou-se possível pagar apenas
pelas canções realmente desejadas (ou obtê-las sem pagar
coisa nenhuma!).
Além disso, o método oferecia um sistema de armazenagem conveniente, que permitia
dispensar todas aquelas caixas
quebradas de CDs.
Já o modelo tradicional da
TV é muito mais amistoso para
com os usuários. Os programas
são gratuitos ou, ao menos, seu
custo fica soterrado em meio às
faturas da TV a cabo.
Assistir a vídeos na web, ao
contrário do que a tendência
pareceria indicar, é uma experiência mais analógica do que
assisti-los em um televisor. Na
TV é possível selecionar entre
centenas de ofertas instantaneamente ou escolher entre
dezenas de programas que você
tenha preservado em seu gravador digital de vídeo.
Na maioria dos sites de vídeo, no entanto, clicar de programa a programa envolve
abrir e fechar software de mídia e assistir a intermináveis
anúncios que surgem na tela
antes do programa.
A qualidade continua abaixo
da média, com definição baixa,
programas de reprodução de
mídia que oferecem telas reduzidas e problemas de sincronização de áudio e vídeo. A seleção disponível não é das mais
amplas, e não existe um guia
central que informe o que está
disponível, onde e quando.
É fácil dizer que esses problemas terminarão resolvidos,
mas restará sempre a suspeita
de que a experiência propiciada é desagradável intencionalmente, para que as pessoas não
abandonem os seus televisores
rápido demais.
Como diz Mark Cuban, empresário de internet, proprietário do time de basquete Dallas
Mavericks, a curva de inovação
na web está estagnada, e a largura de banda disponível também está chegando ao limite.
Em outras palavras, há um limite para o volume de dados
que pode ser distribuído pelos
nódulos da internet, e essa limitação estrutural torna improvável que a web venha a
propiciar uma experiência lisa
de vídeo, pelo menos no futuro
previsível.
É por isso que Cuban afirmou no ano passado, contrariando as opiniões dominantes,
que a web "é chata e está morta". E é exatamente aí que estão
o problema e a oportunidade
que a TV tradicional precisa
encarar.
O avesso da teimosia do setor
de música é a mentalidade de
rebanho -"precisamos acompanhar o que a garotada faz".
Essa mentalidade dispõe que, a
menos que a empresa aposte
todas as fichas na internet, ela
não está "sacando a coisa".
Mas "sacar a coisa" não significa necessariamente ceder ao
coro dos digitais, especialmente se isso significa destruir seu
negócio no processo. Nos dois
últimos anos, as redes de TV
colocaram programas na web
de maneira desordenada. A lógica é que, caso não o façam, alguém mais o fará.
Mas, como o setor de música
logo aprendeu (a exemplo do
setor jornalístico anteriormente), esse modelo rapidamente
faz de um negócio uma organização de caridade, o que solapa
o valor de seu produto, ainda
que exponha o conteúdo a uma
audiência maior.
Isso ocorre porque anunciantes e redes abertas ainda
não definiram um protocolo
para a venda de publicidade
que acompanhe a quase infinidade de conteúdo disponível, e
os consumidores ainda não estão preparados para gastar
muito dinheiro pagando por
downloads.
Existe uma solução, e ela está
bem debaixo dos narizes das
redes de TV: transformar a televisão em algo mais parecido
com a internet. Em diversos
posts na web, Cuban vem promovendo imensas inovações
que devem surgir com a TV de
alta definição, entre as quais
funções plenas de internet nos
televisores e decodificadores
de próxima geração.
A televisão com recursos de
web provavelmente significaria uma profunda perda de
controle para os programadores de TV, porque as prerrogativas tradicionalmente reservadas a quem controla datas e
horários se tornariam irrelevantes. O mesmo se aplicaria
ao conceito de "rede" de TV, já
que a maioria dos programas se
tornaria igualmente acessíveis,
não importa quem os exiba.
Na medida em que avançamos na direção de uma cultura
em que as escolhas cabem mais
e mais ao consumidor, a TV
certamente precisa acompanhar isso, não importa o quanto pareça modismo.
Mas não há motivo para que
a própria TV não concorra como versão futura da web, segundo a visão de Cuban, oferecendo escolhas ilimitadas (imensos estoques de filmes,
temporadas inteiras de seriados), capacidades de edição e
distribuição por usuário (ou seja, a possibilidade de enviar a
um amigo um trecho do episódio de alguma série que você
acabou de assistir), reprise, armazenagem, WiFi...
E, como todos os dados percorrerão a mesma "tubulação",
mas sem a influência desestabilizadora da internet, a TV poderá oferecer resolução excelente, mesmo em um televisor de 60 polegadas.
E eis a última das inversões:
à medida que TV e internet
convergem como parte de algo
genericamente conhecido como banda larga, as distinções
entre as duas logo se tornarão
irrelevantes, do ponto de vista
dos consumidores. Mas será
que o híbrido resultante se parecerá mais com a TV, acrescida de interatividade, ou com a
internet, acrescida de TV?
A distinção valerá bilhões para quem chegar primeiro e organizar a bagunça de maneira
satisfatória para o consumidor.
MICHAEL HIRSCHORN foi vice-presidente executivo da VH1, um dos canais da MTV. É colunista da revista "Atlantic Monthly", onde a íntegra
deste texto foi publicada.
Tradução de Paulo Migliacci .
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