São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Lusco-fusco

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

L'Onorevole Vittorio Sgarbi é um homem muito célebre na Itália. Está sempre presente na televisão. Playboy de bela figura, narcisista, coleciona, incansável, conquistas femininas. Intitula-se "polemista". É um político camaleônico: vinculou-se ao Partido Comunista, aliou-se à Democracia Cristã, passou, com convicção, à Forza Italia, o partido de Berlusconi. Enfim, por agora, abandonou a Casa delle Libertà, coalizão de centro-direita, pela Unione, que agrupa as forças militantes de centro-esquerda.
Não hesita diante das palavras. Sua autobiografia começa pela seguinte frase: "Corria o ano de 1961, quando compreendi que me tornaria um personagem histórico". Denominou a produção artística contemporânea de "arte excremencial".
Quando, sob Berlusconi, perdeu as funções de subsecretário de Estado no Ministério Italiano dos Bens Culturais, declarou, numa entrevista feita para a televisão, que suas relações com Giuliano Urbani, o ministro com quem estava em conflito, foram arruinadas por uma felação. "Urbani tinha uma amante. Estava acocorada a seus pés e, quando levantava a cabeça, dizia-lhe que eu tinha mais visibilidade do que ele, que um subsecretário contava mais que um ministro. (...) Foi assim que ele começou a me odiar." Esses dados fazem parte do personagem, que os explora para criar o próprio mito de um ser excepcional, desmedido, desbocado, acima da humanidade comum.
Ah, sim: Sgarbi é também historiador da arte. Trouxe para a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, sob sua curadoria, a mostra "Luz e Sombra na Pintura Italiana entre Renascimento e Barroco".

Botox
A atual exposição da Pinacoteca do Estado reúne algumas obras que pertencem à coleção de um milionário italiano, Luigi Koelliker. Ocorre uma estranha sensação ao entrar nas salas. As obras parecem mais novas do que novas. Foram a tal ponto restauradas que, por trás dos vernizes brilhantes, não apenas qualquer traço deixado pelo tempo desapareceu mas sumiu toda realidade corpórea. Tornaram-se propriamente imateriais, reduziram-se à imagem de si mesmas, como a que figura na capa plastificada do catálogo. Assimilaram-se às reproduções em revista de luxo.
Merlyle Secrest, na biografia que escreveu sobre Berenson, resume a opinião do crítico americano Offner a respeito de casos assim: "Homens ricos nunca serão persuadidos a comprar uma nobre ruína; não importando quão autênticos sejam os frangalhos que sobraram da pintura. Querem que ela "brilhe como um par de botas novas", e os marchands estavam preparados para isso. Era feita quanta restauração fosse necessária para vendê-la".
Offner dizia isso na primeira metade do século 20. A autora acredita que, hoje, as coisas mudaram para melhor. Pelo que se vê na Pinacoteca, nem tanto. Ao ser perguntado "Quais são os instrumentos que o senhor pensa serem importantes para valorizar uma coleção de arte?", Koelliker responde: "Certamente devemos partir da restauração...".

Fulgurâncias
Na mostra da Pinacoteca, alguns quadros resistem um pouco mais, outros menos, a essa falsa perfeição que elimina a verdade terrena das pinturas. Diante da superfície lisa das telas, diante de trechos refeitos, de regiões em que as velaturas se perderam por causa de restaurações enérgicas, revelam-se, fazendo esforço, obras magistrais. Um retrato atribuído a El Greco, cézanniano avant la lettre; uma suavíssima Maria Madalena de Salvator Rosa; um sublime "Davi" do Cavalier d'Arpino, emergem, resistindo, tão belos.

Olhares
Há, na exposição "Luz e Sombra", dois comoventes retratos de Lorenzo Lotto, um "Humanista", e o "Protonotário Pinzoni". Correspondem ao que escreveu Jacques Bonnet (Ed. Adam Biro) no seu livro sobre o pintor: "Em Lotto, o tema a ser tratado é sempre pensado e amadurecido; é sua significação profunda que ele busca. Seus retratos ilustram perfeitamente essa atitude. Todos são diferentes, tão diferentes quanto seus modelos. Deixa a cada um deles a possibilidade de nos transmitir uma parcela de sua verdade profunda".


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca básica - João Carlos Martins: Os Maias
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.