|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
Lusco-fusco
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
L'Onorevole Vittorio Sgarbi é um homem muito célebre na Itália. Está
sempre presente na televisão. Playboy
de bela figura, narcisista, coleciona,
incansável, conquistas femininas. Intitula-se "polemista". É um político camaleônico:
vinculou-se ao Partido Comunista, aliou-se
à Democracia Cristã, passou, com convicção, à Forza Italia, o partido de Berlusconi.
Enfim, por agora, abandonou a Casa delle
Libertà, coalizão de centro-direita, pela
Unione, que agrupa as forças militantes de
centro-esquerda.
Não hesita diante das palavras. Sua autobiografia começa pela seguinte frase: "Corria o ano de 1961, quando compreendi que
me tornaria um personagem histórico".
Denominou a produção artística contemporânea de "arte excremencial".
Quando, sob Berlusconi, perdeu as funções de subsecretário de Estado no Ministério Italiano dos Bens Culturais, declarou,
numa entrevista feita para a televisão, que
suas relações com Giuliano Urbani, o ministro com quem estava em conflito, foram
arruinadas por uma felação. "Urbani tinha
uma amante. Estava acocorada a seus pés e,
quando levantava a cabeça, dizia-lhe que eu
tinha mais visibilidade do que ele, que um
subsecretário contava mais que um ministro. (...) Foi assim que ele começou a me
odiar." Esses dados fazem parte do personagem, que os explora para criar o próprio
mito de um ser excepcional, desmedido,
desbocado, acima da humanidade comum.
Ah, sim: Sgarbi é também historiador da
arte. Trouxe para a Pinacoteca do Estado,
em São Paulo, sob sua curadoria, a mostra
"Luz e Sombra na Pintura Italiana entre Renascimento e Barroco".
Botox
A atual exposição da Pinacoteca do Estado reúne algumas obras que pertencem à
coleção de um milionário italiano, Luigi
Koelliker. Ocorre uma estranha sensação
ao entrar nas salas. As obras parecem mais
novas do que novas. Foram a tal ponto restauradas que, por trás dos vernizes brilhantes, não apenas qualquer traço deixado pelo
tempo desapareceu mas sumiu toda realidade corpórea. Tornaram-se propriamente
imateriais, reduziram-se à imagem de si
mesmas, como a que figura na capa plastificada do catálogo. Assimilaram-se às reproduções em revista de luxo.
Merlyle Secrest, na biografia que escreveu
sobre Berenson, resume a opinião do crítico americano Offner a respeito de casos assim: "Homens ricos nunca serão persuadidos a comprar uma nobre ruína; não importando quão autênticos sejam os frangalhos que sobraram da pintura. Querem que
ela "brilhe como um par de botas novas", e
os marchands estavam preparados para isso. Era feita quanta restauração fosse necessária para vendê-la".
Offner dizia isso na primeira metade do
século 20. A autora acredita que, hoje, as
coisas mudaram para melhor. Pelo que se
vê na Pinacoteca, nem tanto. Ao ser perguntado "Quais são os instrumentos que o
senhor pensa serem importantes para valorizar uma coleção de arte?", Koelliker responde: "Certamente devemos partir da restauração...".
Fulgurâncias
Na mostra da Pinacoteca, alguns quadros
resistem um pouco mais, outros menos, a
essa falsa perfeição que elimina a verdade
terrena das pinturas. Diante da superfície
lisa das telas, diante de trechos refeitos, de
regiões em que as velaturas se perderam
por causa de restaurações enérgicas, revelam-se, fazendo esforço, obras magistrais.
Um retrato atribuído a El Greco, cézanniano avant la lettre; uma suavíssima Maria
Madalena de Salvator Rosa; um sublime
"Davi" do Cavalier d'Arpino, emergem, resistindo, tão belos.
Olhares
Há, na exposição "Luz e Sombra", dois
comoventes retratos de Lorenzo Lotto, um
"Humanista", e o "Protonotário Pinzoni".
Correspondem ao que escreveu Jacques
Bonnet (Ed. Adam Biro) no seu livro sobre
o pintor: "Em Lotto, o tema a ser tratado é
sempre pensado e amadurecido; é sua significação profunda que ele busca. Seus retratos ilustram perfeitamente essa atitude.
Todos são diferentes, tão diferentes quanto
seus modelos. Deixa a cada um deles a possibilidade de nos transmitir uma parcela de
sua verdade profunda".
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os dez + Próximo Texto: Biblioteca básica - João Carlos Martins: Os Maias Índice
|