São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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O PROMETEU SILENCIOSO

O irlandês Samuel Beckett, que faria cem anos no próximo dia 13, foi um niilista de esquerda que usou seu realismo sóbrio e sombrio para libertar a espécie humana dos totalitarismos

TERRY EAGLETON

Samuel Beckett foi um artista cuja visão da existência humana era tão sombria e cética que ele conseguiu nascer não apenas numa sexta-feira 13 mas numa sexta-feira 13 que, além disso, foi uma Sexta-Feira Santa. Mais tarde, ele aludiria ao dia da morte de Cristo num chiste imortal em "Esperando Godot": "Um dos ladrões (do Calvário) se salvou. É uma porcentagem razoável".
O calendário de comemorações do centenário de Beckett é repleto de eventos literários que celebram a vida do pessimista mais cativante da era moderna -a maioria, é possível imaginar, repletos de comentários sobre a condição humana atemporal retratada em sua obra.
Nada poderia estar mais distante da verdade. Para começo de conversa, Beckett encarava essas interpretações portentosas de sua obra com o típico espírito de deboche irlandês. "Não enxerguem um símbolo onde nenhum foi pretendido", ele certa vez lembrou aos críticos.
Além disso, ele não era um espírito independente do tempo, mas um protestante irlandês do sul de seu país, integrante de uma minoria assediada por alienígenas culturais cercados dentro do triunfalista Estado católico livre. Enquanto mansões anglo-irlandesas eram incendiadas por republicanos durante a guerra da independência, muitos protestantes fugiram para a Inglaterra. A paranóia, a insegurança crônica e a marginalidade consciente de si da obra de Beckett fazem bem mais sentido quando vistas sob essa luz.
O mesmo pode ser dito da qualidade intransigente e destituída de qualquer excesso de seus escritos, com sua aversão protestante a enfeites e excessos de qualquer tipo. Se ele não demorou a abandonar a Irlanda e mudar-se para Paris, foi em parte porque, se fosse o caso de ficar sem casa, era possível sê-lo tão bem no exterior quanto em seu próprio país.
Como aconteceu com seu amigo James Joyce, outro nômade literário irlandês, o exílio interno não demorou a transformar-se em emigração literal. O sentimento de isolamento e alienação do artista irlandês podia facilmente se traduzir em angústia existencial modernista européia.
Beckett estava longe de se envergonhar por ser irlandês. Sua resposta célebre a um jornalista francês que, ingênuo, perguntou-lhe se ele era inglês foi "au contraire". Seu humor negro e satírico é uma característica não só pessoal mas cultural. Porém ele não conseguiu encontrar uma base segura de apoio no interior de seu introvertido Estado gaélico, e o minimalismo austero de sua arte é, entre outras coisas, uma crítica à retórica nacionalista inchada.

Arte fragmentária
Mas há uma qualidade distintamente irlandesa na deflação feita por Beckett do bombástico e extravagante, assim como há algo reconhecivelmente irlandês naquelas paisagens áridas e estagnadas onde, como vítimas coloniais, não se fazia nada a não ser ficar sentado, aguardando uma libertação ou um resgate.
Assim, não é surpreendente que esse mestre da arte dos despossuídos tenha se visto, em 1941, combatendo ao lado da Resistência francesa. Vivendo em Paris sob a ocupação alemã, ele se juntou a uma célula que fazia parte das Operações Especiais Britânicas e aplicou sua habilidade literária no trabalho de datilografar e traduzir informações secretas.
Quando a fachada atrás da qual a célula se escondia foi descoberta, muitos de seus companheiros foram deportados para campos de concentração. Beckett e sua mulher, Suzanne, conseguiram escapar de ser detidos por uma questão de dez minutos. Refugiaram-se em um pequeno povoado próximo a Paris, onde Beckett trabalhou no campo e voltou a se unir à Resistência.
Dessa vez suas tarefas incluíam montar emboscadas para alemães e recolher suprimentos enviados pela RAF [Força Aérea Britânica] por pára-quedas.
Em Paris, depois da guerra, ele e Suzanne passaram frio e fome, como o resto da população, e seus dedos muitas vezes estavam azuis de frio quando segurava a caneta. Mais tarde, receberia a Cruz de Guerra em homenagem a suas proezas na resistência clandestina.
Fato incomum entre artistas modernistas, esse suposto divulgador do niilismo era militante da esquerda, em lugar da direita. Defensor do ambíguo e do indeterminado, sua arte provisória e fragmentária é supremamente antitotalitária.
É também uma arte nascida à sombra de Auschwitz, que conserva sua fidelidade ao silêncio e ao terror ao enxugar sua linguagem, seus personagens e suas narrativas quase até o desaparecimento. É a obra de um homem que compreendia que o realismo sóbrio e sombrio serve à causa da emancipação humana melhor do que a utopia sonhadora.


Terry Eagleton é professor de teoria cultural na Universidade Manchester (Reino Unido) e autor de "Depois da Teoria" (Civilização Brasileira) e "A Ideologia da Estética" (Jorge Zahar) , entre outros. Este texto foi publicado no "Guardian".
Tradução de Clara Allain.


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