São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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AS VELHAS RAÍZES

Gerald Thomas explica como conheceu o escritor e fala da dura recepção que sua principal peça teve nos EUA

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Happy Birthday", Sam!!! Cem anos, quem diria? Eu estava com você naquele dia trágico em que você recebeu a carta de um morto, um morto alegoricamente assassinado por um ciclista em Londres: teu melhor amigo de tantas décadas: Alan Schneider, teu diretor, aquele que te abriu as portas para a América; aquele que dirigiu "Esperando Godot" com Zero Mostel e Burgess Meredith tão brilhantemente.
Schneider, americano, estava indo depositar uma carta no correio de Hampstead, em Londres, e, ao voltar, olhou pro lado errado. Foi atropelado por um ciclista, bateu com a cabeça no meio-fio e morreu.
Três dias depois você recebia a carta dele e quase chorava enquanto me explicava que a origem de "Godot" vinha, de fato, de um ciclista, um campeão do Tour de France, chamado Godeaux que, um dia, decidiu não aparecer mais na reta final. E o povo ficou esperando. Isso o intrigou, e você tomou o evento como exemplo, e o exemplo acabou virando uma espécie de metáfora horrível: meio século depois, um pequeno e anônimo Godeaux londrino atropelou o teu grande amigo.
Porque você me aceitou, arredio que era, tímido, alto demais assim como uma escultura de Giacometti, de quem tanto gostava? Você só via cinco ou seis pessoas e detestava "festas"! Esse fedelho que escreve... Até hoje não entendo! Mas te agradeço tanto, Sam!
Eu te escrevia, do meu nicho no Brooklyn, páginas e mais páginas pelo correio: demoravam exatamente sete dias para que chegassem ao teu apartamento, no bulevar St. Jacques. E exatamente 14 dias depois, na minha caixa postal na Prince Street, no Soho, lá estava: um cartão seu com letras quase ilegíveis, dizendo pouco ou quase nada, mas nesse vazio era muito o que você transmitia. O teu mero "yours Sam" no final do cartão era uma emoção incontível para mim... Eu, que conhecia teus textos, quase todos eles de cor...
Como foi que essas indas e vindas começaram mesmo? Ah sim! Num dos cartões, um tom diferente dos outros: "Se por acaso, um dia, talvez, quem sabe, estiver passando por Paris, talvez, poderíamos nos encontrar...". Peguei o primeiro avião.

A memória
Beckett não estava lá. Fui à toa? Eu ligava pra Jerome Lyndon, seu editor, que me dizia que Beckett estava em sua casa de campo, em Ussy. Eu fiquei, não por acaso, na espelunca de sempre, o Hotel La Louisianne.
Depois de horas esperando um telefonema que não vinha, não agüentava mais de fome e saí pra comprar um croissant na esquina. Na volta, recebo um recado da telefonista de que um tal de monsieur Beckett havia ligado e que ligaria de novo, precisamente às 19h. Quase enlouqueci.
Daí por diante não foi propriamente uma amizade: não se faz amizade com um mito. Justamente aquele que, de fato, escreveu de punho próprio "Finnegan's Wake" (Joyce já estava quase cego e ditava pra Beckett). Ah... Hum... Hamm...
Ele reclamava profundamente da dor de suas mãos artríticas. Entre um expresso e outro e uma cigarrilha Café Creme, tirava do bolso da manta uma daquelas garrafas de metal amassadas, bebia um gole de "irish malt". "Can never escape the old roots, you see?" (não se consegue escapar as velhas raízes, entende?). Quanta memória!
Muitos não gostam de você até hoje. Outros, como o ex-crítico de teatro do "New York Times", Walter Kerr, renunciaram ao cargo por sua causa. Após 25 anos reinando na crítica e fechando (ou fazendo lotar) espetáculos, Kerr percebeu que "Esperando Godot" era de fato "a mais importante peça do século".
Peça essa que demolira na década de 50, quando Schneider a encenara nos EUA pela primeira vez, dizendo se tratar de "uma peça em que nada acontece, em dois atos". Kerr se despediu de seu público dizendo que Beckett era o mais importante autor teatral e pediu desculpas por ter arruinado tantas vidas: pois, não tendo enxergado a genialidade em Beckett, quem sabe quantas outras ele também não teria obliterado?


Gerald Thomas é diretor teatral.


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