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AS VELHAS RAÍZES
Gerald Thomas explica como conheceu o escritor e fala da dura recepção que sua principal peça teve nos EUA
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Happy Birthday", Sam!!!
Cem anos, quem diria? Eu
estava com você naquele
dia trágico em que você recebeu a carta de um morto, um morto alegoricamente assassinado por
um ciclista em Londres: teu melhor
amigo de tantas décadas: Alan
Schneider, teu diretor, aquele que te
abriu as portas para a América;
aquele que dirigiu "Esperando Godot" com Zero Mostel e Burgess Meredith tão brilhantemente.
Schneider, americano, estava indo
depositar uma carta no correio de
Hampstead, em Londres, e, ao voltar, olhou pro lado errado. Foi atropelado por um ciclista, bateu com a
cabeça no meio-fio e morreu.
Três dias depois você recebia a carta dele e quase chorava enquanto me
explicava que a origem de "Godot"
vinha, de fato, de um ciclista, um
campeão do Tour de France, chamado Godeaux que, um dia, decidiu
não aparecer mais na reta final. E o
povo ficou esperando. Isso o intrigou, e você tomou o evento como
exemplo, e o exemplo acabou virando uma espécie de metáfora horrível: meio século depois, um pequeno
e anônimo Godeaux londrino atropelou o teu grande amigo.
Porque você me aceitou, arredio
que era, tímido, alto demais assim
como uma escultura de Giacometti,
de quem tanto gostava? Você só via
cinco ou seis pessoas e detestava
"festas"! Esse fedelho que escreve...
Até hoje não entendo! Mas te agradeço tanto, Sam!
Eu te escrevia, do meu nicho no
Brooklyn, páginas e mais páginas
pelo correio: demoravam exatamente sete dias para que chegassem ao
teu apartamento, no bulevar St. Jacques. E exatamente 14 dias depois,
na minha caixa postal na Prince
Street, no Soho, lá estava: um cartão
seu com letras quase ilegíveis, dizendo pouco ou quase nada, mas nesse
vazio era muito o que você transmitia. O teu mero "yours Sam" no final
do cartão era uma emoção incontível para mim... Eu, que conhecia
teus textos, quase todos eles de cor...
Como foi que essas indas e vindas
começaram mesmo? Ah sim! Num
dos cartões, um tom diferente dos
outros: "Se por acaso, um dia, talvez,
quem sabe, estiver passando por Paris, talvez, poderíamos nos encontrar...". Peguei o primeiro avião.
A memória
Beckett não estava lá. Fui à toa? Eu
ligava pra Jerome Lyndon, seu editor, que me dizia que Beckett estava
em sua casa de campo, em Ussy. Eu
fiquei, não por acaso, na espelunca
de sempre, o Hotel La Louisianne.
Depois de horas esperando um telefonema que não vinha, não agüentava mais de fome e saí pra comprar
um croissant na esquina. Na volta,
recebo um recado da telefonista de
que um tal de monsieur Beckett havia ligado e que ligaria de novo, precisamente às 19h. Quase enlouqueci.
Daí por diante não foi propriamente uma amizade: não se faz amizade com um mito. Justamente
aquele que, de fato, escreveu de punho próprio "Finnegan's Wake"
(Joyce já estava quase cego e ditava
pra Beckett). Ah... Hum... Hamm...
Ele reclamava profundamente da
dor de suas mãos artríticas. Entre
um expresso e outro e uma cigarrilha Café Creme, tirava do bolso da
manta uma daquelas garrafas de
metal amassadas, bebia um gole de
"irish malt". "Can never escape the
old roots, you see?" (não se consegue
escapar as velhas raízes, entende?).
Quanta memória!
Muitos não gostam de você até hoje. Outros, como o ex-crítico de teatro do "New York Times", Walter
Kerr, renunciaram ao cargo por sua
causa. Após 25 anos reinando na crítica e fechando (ou fazendo lotar) espetáculos, Kerr percebeu que "Esperando Godot" era de fato "a mais
importante peça do século".
Peça essa que demolira na década
de 50, quando Schneider a encenara
nos EUA pela primeira vez, dizendo
se tratar de "uma peça em que nada
acontece, em dois atos". Kerr se despediu de seu público dizendo que
Beckett era o mais importante autor
teatral e pediu desculpas por ter arruinado tantas vidas: pois, não tendo enxergado a genialidade em Beckett, quem sabe quantas outras ele
também não teria obliterado?
Gerald Thomas é diretor teatral.
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