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O ÚLTIMO SINAL
Interpretando Vladimir na primeira montagem profissional de "Esperando Godot" no
Brasil, Walmor Chagas relembra Cacilda Becker, que teve um aneurisma no intervalo da peça
VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A GUARATINGUETÁ (SP)
A
fase moderna do teatro brasileiro emenda um episódio
trágico na primeira montagem profissional de "Esperando Godot". A temporada estreou
em 8 de abril de 1969 e foi bruscamente interrompida em 6 de maio
do mesmo ano.
Na tarde daquele dia, a atriz paulista Cacilda Becker sofreu um aneurisma cerebral no intervalo da 42ª
apresentação da peça, uma matinê
para estudantes no teatro batizado
com seu nome (um auditório com
pouco mais de cem lugares na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São
Paulo). Foram 39 dias em coma. E a
morte, em 14/6/1969.
Na platéia, era um silêncio
só, não sabíamos
se estavam ouvindo ou dormindo
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Cacilda perdeu a consciência
quando vestia o figurino esfarrapado de Estragon. Contracenava com
Walmor Chagas, o intérprete de Vladimir. Casados, eles haviam se separado meses antes, mas seguiam parceria artística.
Na entrevista a seguir, Chagas, 74,
rememora os bastidores daquela encenação de Flávio Rangel (1932-1988). Até então, tinha-se notícias de
montagens amadoras de "Esperando Godot" por Alfredo Mesquita
(São Paulo, 1955) e Luiz Carlos Maciel (Porto Alegre, 1958).
Walmor Chagas afirma que nunca
mais assistiu a outra encenação do
texto de Beckett. "Me dá desespero".
Folha - O que "Esperando Godot" representou em sua carreira?
Walmor Chagas - Foi uma peça que
me marcou profundamente não só
pela importância, pela qualidade,
mas pelo fato pessoal e dramático
que foi a morte da Cacilda. Mesmo
se ela não tivesse morrido, para mim
o texto continuaria tendo importância; Beckett fez uma curva na vida
cultural do mundo. Ele veio denunciar o apocalipse, o nada em que a
sociedade vive cada vez mais.
Sabíamos que o texto representava
o fim dos tempos, a mudança de
uma era. Hoje, a humanidade fica
esperando que alguma coisa aconteça. Há pessoas que ficam esperando
a Bolsa subir, esperando para saber
se vai ter guerra. Não há mais ação,
apenas a espera. A humanidade está
em espera. É isso que Beckett diz, é o
fim dos tempos, o fim do jogo. O Godot seria uma espécie de poeta-profeta em relação ao que estamos vivendo, uma fase de transição, de espera não se sabe de quê. A peça é basicamente sobre o desespero, a miséria do homem sem Deus.
Folha - Na época, Flávio Rangel declarou que queria dirigir "Godot" para falar nas entrelinhas; recorria à metáfora porque não podia ser direto
-havia meses da decretação do AI-5.
Sua motivação também era política?
Chagas - Não. A motivação, se fosse
procurá-la na peça, era pessoal. O
Brasil estava se acabando naquele
clima [do regime militar], mas ensaiávamos desde fevereiro, não pensávamos que aquilo seria contra a
ditadura. A gente sabia que era mais
que isso. Politicamente, a peça queria dizer mais que isso.
Folha - Os militares haviam detido
Rangel, acusado de subversão...
Chagas - Mas a motivação era a
grandeza do texto. Inclusive, Cacilda
e eu nunca fomos muito de fazer peças políticas. O que a gente fazia tinha importância política no sentido
de que eram peças de cunho psicológico que modificava a cabeça preconceituosa da burguesia, mas não
que fosse mudar o regime político,
criticar o AI-5. A peça era muito
maior que uma ditadura. Quem fazia isso era o Teatro de Arena.
Folha - Como descobriram Beckett?
Chagas - Eu e Cacilda tínhamos
voltado de uma viagem aos EUA e à
Europa, no final de 1968. Ainda não
conhecíamos a obra de Beckett. Em
Paris, vimos Roger Blin dirigindo e
atuando em "Fim de Partida". Havia
cerca de 30 pessoas na platéia, numa
matinê. Fomos ao seu camarim e vimos aquele ator extraordinário comendo numa marmitinha, num teatro pequeno, que parecia sob escombros, uma coisa triste. Aquilo nos tocou profundamente.
A viagem também foi determinante para a gente perceber os caminhos, ou melhor, os descaminhos do
teatro contemporâneo, nos quais a
expressão corporal valia mais que o
texto, elemento que não tinha tanta
importância nas peças do "Living
Theatre", mas sim a nudez, a ação
corporal, como em "Paradise Now",
que vimos em Nova York. Assistimos também a "Us", de Peter Brook,
em Londres, que era especificamente contra a Guerra do Vietnã. Esses
espetáculos foram importantes.
Na volta, evidentemente, não podíamos fazer uma peça careta, não
era mais hora para isso, o mundo estava mudando. E "Esperando Godot" representava essa mudança.
Folha - Vocês trouxeram esses subsídios para o diretor?
Chagas - Não foi difícil, porque eu e
Cacilda chegávamos lá com todas as
cenas ensaiadas. Coitado do Flávio,
ele ficaria chateado com isso, mas
sabia muito bem... Nós estudávamos
a peça lá no apartamento da Cacilda
[na avenida Paulista]. Já não morávamos juntos, estávamos separados.
Cada vez que ensaiávamos com o
Flávio, já tínhamos feito em casa,
chegávamos com a peça pronta, entendida, a dramaticidade, a angústia.
Folha - Você e Cacilda enfatizavam a
expressão corporal?
Chagas - Nem tanto. Mais a Cacilda, que dava uma cambalhota nos
momentos de vazio, quando os dois
personagens paravam e não sabiam
mais o que fazer, um tempo recorrente na peça. Na verdade, era uma
mistura de mendigo com palhaço,
mas sem nariz de palhaço. Éramos
mais mendigos, pessoas à margem.
Vestíamos um casaco esfarrapado,
solto, com um chapéu-coco.
Folha - E que tal a recepção do público? Muito estranhamento?
Chagas - A montagem fez uma carreira de 42 apresentações. A gente
sabia que haveria estranhamento.
Afinal, Beckett estava sendo montado profissionalmente pela primeira
vez. Na platéia, era um silêncio só,
não sabíamos se estavam ouvindo
ou dormindo. Era um um texto de
difícil compreensão.
Folha - Você é um ator devoto da palavra em cena...
Chagas - Isso mesmo. A última peça que fiz, "Um Homem Indignado"
[2005, com direção de Djalma Limongi], tocava nisso: a palavra acabou, agora é a imagem que diz tudo.
Dizem que uma imagem vale por
mil palavras. Pronto, para que palavra? Não precisa mais peça, só televisão e cinema. O mundo novo veio
pela imagem. Depois do Godot, o
que vem é a imagem, essa revolução
cultural que aconteceu. Porque, até
ali, Beckett vinha declarando a morte da palavra. Às vezes, Vladimir e
Estragon não têm e não sabem mais
o que falar, porque as palavras não
dizem mais, só as imagens.
Quando havia o teatro da palavra,
a arte do teatro fazia parte da construção da nação. Vamos dizer, era
importante, fazia parte por meio de
um grupo como o Opinião. Agora,
não. O teatro perdeu a expressão. A
censura causou um mal profundo,
quebrou o espelho no qual o brasileiro se representava. E ninguém fala
da ditadura, como se ela não tivesse
ocorrido. A censura reduziu o divertimento à novela, futebol e Carnaval.
Esses três elementos, de alguma forma, continuam sendo teatralizados.
Folha - Você pode rememorar como
foi o intervalo do espetáculo em que
Cacilda sofreu o aneurisma cerebral?
Chagas - Foi uma surpresa. O primeiro ato transcorreu perfeito. Terminou, fomos tomar um cafezinho,
fumar um cigarro nos bastidores.
Tocou o primeiro sinal, aí a Cacilda
disse: "Estou com uma dor de cabeça". Ela sempre tomava uma aspirina antes de fazer um espetáculo.
Perguntei se tinha tomado, disse
que sim, mas a dor de cabeça aumentava. Veio o segundo sinal. Sugeri que tomasse mais uma aspirina.
Ela disse: "Eu acho que estou tendo
um derrame". Foi sua última frase,
na 42ª sessão da peça. Um rapaz surgiu perguntando se podia dar o terceiro sinal, eu disse que não, pedi
que procurasse algum médico na
platéia. Ela foi levada ao hospital.
Algumas pessoas diziam que essa
peça era maldita, que quem fazia
morria. O que aconteceu com Cacilda poderia ter ocorrido com qualquer um, em qualquer peça. Não
houve nada de estranho.
Cacilda não foi mais a fundo com o
Estragon do que o foi com personagens anteriores. Ela ia a fundo em tudo, tinha uma profunda compaixão
pelo ser humano. Era a única atriz
brasileira trágica. O público sentia
que ela estava à beira do choro, do riso ou da morte a cada instante, mesmo numa comédia, tal o chamado
feixe de nervos que tinha.
Folha - Te angustiava ser ator, marido e empresário dela?
Chagas - Eu não agüentava mais.
Era o responsável pela escolha das
peças que tivessem de acordo com a
grandeza da atriz. Que dessem bilheteria e estivessem de acordo com o
momento teatral da época, totalmente esquerdizante, político, enquanto nós não éramos. Era difícil
escolher uma peça para ela.
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