São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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Ponto de fuga

As duas irmãs

Jorge Coli
especial para a Folha

Ema e Eva Klabin, uma em São Paulo, outra no Rio, colecionaram obras de arte. Eram ricas, podiam comprar objetos de grande qualidade, e havia mesmo uma certa concorrência entre elas. Ambas parecem ter vivido bem e viveram muito. Hoje, as belas casas em que moraram e que acolheram quadros, esculturas, móveis preciosos foram transformadas em fundações e abertas ao público. Preservou-se assim a atmosfera original.
Ela permite intuir as relações secretas entre um bronze de Gianbologna, um óleo de Lawrence ou um lacrimatório romano, coisas diferentes entre si por natureza, muito distantes no tempo e no espaço. Com sua idéia de "museu imaginário", Malraux fazia eclodir afinidades insuspeitadas entre objetos díspares. O colecionador torna real esses vínculos e os objetos se prendem em sua teia intuitiva.
A Pinacoteca do Estado de São Paulo apresenta [até hoje] uma exposição, que vai em breve para o Museu Nacional de Belas Artes do Rio, confrontando, em expressiva escolha, os "universos sensíveis" (é o título da mostra) criados pelas irmãs Klabin. Há neles muitas peças dignas dos melhores museus. São vários os núcleos de interesse: Ásia, Egito, Antigüidade Clássica e também um arco que parte da Idade Média ao século 20. Dos dois Franz Post, do estupendo Soutine, da sutilíssima "Pesca Milagrosa" pintada por Jan Brueghel, na coleção de Ema, às maravilhosas madonas do Renascimento, aos anjos de Luca della Robbia ou à intensa cabeça de Apolo, da Magna Grécia, na de Eva, inútil ficar pinçando: é preciso ir ver esses conjuntos admiráveis que se completam e se confrontam.

Pazzia - No livro de Flaubert, Madame Bovary enleva-se com o tenor, ouvindo uma ópera. É "Lucia di Lamermoor", de Donizetti. Ou melhor, não exatamente. Trata-se de "Lucie de Lamermoor", em versão francesa do original italiano que todo melômano de hoje conhece.
Na França do século 19 e em boa parte do século 20, as óperas eram traduzidas, o que ocorria também na Itália e ainda acontece em certos teatros da Alemanha, da Inglaterra ou da Europa Central. Mas "Lucie de Lamermoor" não se contenta em transpor as palavras de uma língua para outra. É antes o produto de um verdadeiro remanejamento da partitura pelo compositor. Se ela guarda seus núcleos essenciais, adquire, pelas modificações introduzidas, uma dignidade menos sentimental e mais trágica.
Essa versão ressurge agora em representações, CDs e DVDs. A gravação que Natalie Dessay e Roberto Alagna realizaram, a partir dos espetáculos dados na Ópera de Lyon sob a direção de Evelino Pidó, é um marco (edição Virgin Classics).
A partitura foi servida com tanta vibração, com tanta verdade apaixonada, e as vozes são tão belas, que o álbum insere-se, sem qualquer dúvida, entre as melhores gravações da história do disco.

Sombras - "Digo que sou homem, mas quem é o outro que se oculta em mim?" Essa frase é de Arthur Machen, escritor nascido no País de Gales no ano de 1863 e trazido para uma edição brasileira pela Iluminuras, em esplêndida tradução de José Antonio Arantes, que assina também um estudo aprofundado sobre o autor. O livro se chama "O Terror". Reúne uma novela mais longa e alguns contos. O estilo é ao mesmo tempo discreto, elegante, incisivo, de verdadeiro grande escritor. Nunca parece narrar, mas sussurrar pavores, induzindo a situações abomináveis, de sabores decadentistas.
Assim, por exemplo, negras mariposas em revolta podem asfixiar humanos, entrando-lhes pela boca. Machen escreveu também um romance, "The Great God Pan", explorando o tema de Hoffmann que une a mulher fatal e o diabo.

Interação - Celso Lafer, no catálogo da exposição "Universos Sensíveis", evoca sua relação com a prima de seu pai, Ema Klabin, que ele chamava de tia. Nessas lembranças cruzam-se, de modo sugestivo, as atividades industriais da família Klabin, interesses culturais e empenhos filantrópicos do mais alto nível. Delas emana a impressão de um humanismo generoso, complexo, de grande alcance, que mereceria tornar-se objeto de estudos com múltiplos enfoques.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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