São Paulo, domingo, 09 de maio de 2010

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Ponto de Fuga

Tripas e crinas


A música erudita brota de processos altamente abstratos cuja condição primeira é a anotação sobre o papel: ela tem existência real mesmo antes de ser tocada


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A diferença entre música erudita e popular (duas denominações ruins, mas inevitáveis) é que uma é escrita, e a outra, não. Num velho filme brasileiro, intitulado "Quem Roubou Meu Samba?"
[de José Carlos Burle e Hélio Barroso], o samba em questão devia ser assobiado continuamente para não ser esquecido. A música popular não depende da escrita: seus modos são suficientemente simples para que a memória dê conta da ação criadora.
Ao contrário, a música erudita brota de processos altamente abstratos cuja condição primeira é a anotação sobre o papel. Salvo engano, é um caso único: ela tem existência real mesmo antes de ser tocada, independente do som concreto.
Marcada numa partitura, pode ser lida em silêncio. Não há necessidade de que o compositor saiba tocar um instrumento qualquer (era o caso de Berlioz, por exemplo).
A grande música do Ocidente é, em primeiro lugar, "cosa mentale". Para em seguida provocar os sentimentos mais vivos, as paixões mais violentas.

A cor da música
Jean-Jacques Rousseau abismava-se ao constatar que uns poucos fios de crina esfregados em cordas feitas com tripas de boi chegassem a provocar tanta comoção na alma. Falar dessas comoções não é nada simples.
Muitos acreditam que uma análise meramente técnica e descritiva alcança o cerne da composição, e se arrepiam quando as metáforas, grande recurso sugestivo, começam a despontar.
No entanto, elas, as metáforas, foram o grande modo de compreensão musical até o final do século 19, antes que um árido formalismo imperasse sem piedade nas musicologias.
Compositores e literatos usavam os mesmos instrumentos literários para se expressarem.
Gounod falava de serpentes se enrolando, ao descrever a abertura do "D. Giovanni" de Mozart, e Baudelaire, sobre "Tannhäuser", dizia ver "gradualmente, por todas as transições de vermelho e de rosa, a incandescência da fornalha".

Maneira de ser
Inaugurado em 1841, destruído por incêndio no século 19 e pelas bombas dos aliados no extremo fim da Segunda Guerra Mundial, o teatro Semperoper (Semper era o arquiteto), em Dresden, na Alemanha, preservou, miraculosamente, uma acústica incomparável pelas características de transparência sem dureza, deixando soar os harmônicos num conjunto que se entrelaça.
A orquestra de Dresden possui, ela também, sonoridade característica. Hoje, em São Paulo, Chicago ou Tóquio, as orquestras não se distinguem: todas buscam sons rutilantes, impositivos. No passado era bem diferente, e as grandes formações individualizavam-se; por sorte, a Staatskapelle de Dresden manteve-se fiel a si mesma, e sua sonoridade inconfundível corresponde à bela sonoridade da sala.
Tudo parece natural, espontâneo, mesmo cândido, sem afetações. Nesses sons, há algo de azulíneo, adjetivo aqui autorizado pelos vermelhos de Baudelaire. Ela foi criada no século 16 e teve, entre seus maestros titulares, Weber, Wagner e Richard Strauss.

Outro dia
No Semperoper, segunda-feira passada, houve um concerto, metade dedicado a Richard Strauss, metade à "Heroica", de Beethoven. O terceto que conclui "O Cavaleiro da Rosa" foi sublimemente cantado (Melanie Diener, Genia Kühmeier e Bernarda Fink). Neeme Järvi dirigiu com maravilhosa liberdade nos andamentos; tudo fluía, numa narrativa cheia de expressões delicadas.
Alejo Carpentier escreveu que as mais belas e intensas emoções de sua vida o tomaram em poltronas, nas salas de concerto ou de ópera. Estava coberto de razão.


jorgecoli@uol.com.br


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