|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de Fuga
Tripas e crinas
A música erudita brota de processos altamente abstratos cuja condição primeira é a anotação sobre o papel: ela tem existência real mesmo antes de ser tocada
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A diferença entre música
erudita e popular (duas
denominações ruins,
mas inevitáveis) é que uma é
escrita, e a outra, não. Num velho filme brasileiro, intitulado
"Quem Roubou Meu Samba?"
[de José Carlos Burle e Hélio
Barroso], o samba em questão
devia ser assobiado continuamente para não ser esquecido.
A música popular não depende
da escrita: seus modos são suficientemente simples para que
a memória dê conta da ação
criadora.
Ao contrário, a música erudita brota de processos altamente abstratos cuja condição primeira é a anotação sobre o papel. Salvo engano, é um caso
único: ela tem existência real
mesmo antes de ser tocada, independente do som concreto.
Marcada numa partitura, pode
ser lida em silêncio. Não há necessidade de que o compositor
saiba tocar um instrumento
qualquer (era o caso de Berlioz,
por exemplo).
A grande música do Ocidente
é, em primeiro lugar, "cosa
mentale". Para em seguida provocar os sentimentos mais vivos, as paixões mais violentas.
A cor da música
Jean-Jacques Rousseau abismava-se ao constatar que uns
poucos fios de crina esfregados
em cordas feitas com tripas de
boi chegassem a provocar tanta
comoção na alma. Falar dessas
comoções não é nada simples.
Muitos acreditam que uma
análise meramente técnica e
descritiva alcança o cerne da
composição, e se arrepiam
quando as metáforas, grande
recurso sugestivo, começam a
despontar.
No entanto, elas, as metáforas, foram o grande modo de
compreensão musical até o final do século 19, antes que um
árido formalismo imperasse
sem piedade nas musicologias.
Compositores e literatos usavam os mesmos instrumentos literários para se expressarem.
Gounod falava de serpentes se
enrolando, ao descrever a abertura do "D. Giovanni" de Mozart, e Baudelaire, sobre "Tannhäuser", dizia ver "gradualmente, por todas as transições
de vermelho e de rosa, a incandescência da fornalha".
Maneira de ser
Inaugurado em 1841, destruído por incêndio no século 19 e
pelas bombas dos aliados no extremo fim da Segunda Guerra
Mundial, o teatro Semperoper
(Semper era o arquiteto), em
Dresden, na Alemanha, preservou, miraculosamente, uma
acústica incomparável pelas
características de transparência sem dureza, deixando soar
os harmônicos num conjunto
que se entrelaça.
A orquestra de Dresden possui, ela também, sonoridade característica. Hoje, em São Paulo, Chicago ou Tóquio, as orquestras não se distinguem: todas buscam sons rutilantes, impositivos. No passado era bem
diferente, e as grandes formações individualizavam-se; por
sorte, a Staatskapelle de Dresden manteve-se fiel a si mesma,
e sua sonoridade inconfundível
corresponde à bela sonoridade
da sala.
Tudo parece natural, espontâneo, mesmo cândido, sem
afetações. Nesses sons, há algo
de azulíneo, adjetivo aqui autorizado pelos vermelhos de Baudelaire. Ela foi criada no século
16 e teve, entre seus maestros
titulares, Weber, Wagner e Richard Strauss.
Outro dia
No Semperoper, segunda-feira passada, houve um concerto, metade dedicado a Richard Strauss, metade à "Heroica", de Beethoven. O terceto
que conclui "O Cavaleiro da Rosa" foi sublimemente cantado
(Melanie Diener, Genia Kühmeier e Bernarda Fink). Neeme Järvi dirigiu com maravilhosa liberdade nos andamentos; tudo fluía, numa narrativa
cheia de expressões delicadas.
Alejo Carpentier escreveu
que as mais belas e intensas
emoções de sua vida o tomaram
em poltronas, nas salas de concerto ou de ópera. Estava coberto de razão.
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os Dez+ Próximo Texto: Discoteca Básica: Graceland Índice
|