São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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O escritor espanhol Manuel Vázquez Montalbán cruza as selvas do México para entrevistar o subcomandante Marcos, líder da guerrilha zapatista
Na clareira da revolução

Associated Press
O subcomandante Marcos, líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional, movimento de guerrilha que atua na região de Chiapas, no sul do México


MANUEL VÁZQUEZ MONTALBÁN

Já fazia dois anos que o subcomandante Marcos declarara perante as câmeras de uma TV espanhola que ia deixar de ler os meus romances sobre o detetive Pepe Carvalho porque, em plena selva, as receitas de cozinha do protagonista lhe davam muita fome. Prometi ao subcomandante incluir em meus livros comida pré-colombiana, comida profunda na selva de Lacadona.
De repente alguém pôs em minhas mãos duas cartas, endereçadas a Carvalho e a mim. "Para: Manuel Vázquez Montalbán e/ou Pepe Carvalho, La Rambla, Barcelona Cataluña, Estado Espanhol. De: Subcomandante Insurgente Marcos. Chiapas, México." A primeira carta era encabeçada por uma citação de Dom Quixote, seguida da rica escritura do subcomandante, apontado por alguns escritores mexicanos contemporâneos como um grande literato em potencial, em que Marcos dizia-se leitor de no mínimo dois livros meus: "Asesinato en el Comité Central" e "El Premio". A outra carta propunha encontros, como seriam e quando, e fazia um irônico pedido de linguiças. Respondi a carta e me predispus a esticar a viagem até Chiapas quando fosse a Cuba promover meu livro "Y Dios Entró en La Habana".
Depois ocorreu o massacre de índios zapatistas de Acteal, perpetrado por paramilitares sob o comando de caciques priistas. Duvidou-se até de que Marcos continuasse vivo. De repente Marcos reapareceu com a declaração de julho, uma esplêndida epístola condenando a hipocrisia do governo mexicano e a ordem global, epístola com citações de Antonio Machado e Juan de Mairena [escritos e manifestos do subcomandante Marcos foram publicados no Brasil em "A Revolução Invencível", Boitempo Editorial".
Marcos ataca a soberania do Estado mexicano, de um Estado que vendeu milhares de empresas nacionais para fechar as contas da modernidade, ou a máscara da democracia em um país cheio de desaparecidos e grupos paramilitares. O subcomandante cita Shakespeare, Carlos Fuentes, Galeano, Miguel Scorza e acusa o recebimento de meu "Panfleto do Planeta dos Macacos", ao citar: "A operação de descrédito da razão crítica foi protagonizada por uma "beautiful people" intelectual, composta majoritariamente por ex-jovens filósofos, ex-jovens sociólogos e ex-jovens formadores de opinião que conheciam os caminhos que levam à mesa do Senhor, segundo o antigo ensinamento do escriba sentado".
É por tudo isso que estou aqui, em uma tenda de La Realidad, uma comunidade indígena que convive com um grupo de observadores estrangeiros, rapazes e moças, hoje catalães e italianos, que pagaram a própria viagem, que comem o mesmo pouco que comem os indígenas, sob a mesma luz do sol e a mesma luz de velas ou lampiões que se impõem quando escurece, que toda manhã trabalham com eles ou se instalam na estrada para testemunhar a passagem ameaçadora dos comboios militares, fotografá-los e impedir que penetrem em La Realidad para hostilizar os indígenas.
Cheguei aqui atraído pela possibilidade de encontrar-me com Marcos, passando pela peneira dos controles militares. "O senhor é escritor? Vai escrever alguma coisa sobre Chiapas?" Estou levando para o subcomandante quatro quilos de linguiça de Guijelo, alguns torrones, um exemplar de "Y Dios Entró en La Habana" e me encontro à espera de um sinal que virá da floresta. Ao anoitecer, aparece um capitão zapatista com seu capuz, conduzindo dois cavalos pelas rédeas. Um deles é para Guiomar Rovira, jornalista catalã por parte de seus pais, mexicana por parte de marido e filho, que me acompanha como fotógrafa; o outro para mim, que nunca montei a cavalo, coisa que logo é notada pelo capitão, mas principalmente pelo cavalo, que primeiro me olha ressabiado, depois angustiado, para por fim conceder-me a condição de Indiana Jones, ladeira acima, ladeira abaixo, através de um riacho, perseguidos durante um bom trecho por um cachorro que farejou as linguiças.
De repente, uma clareira na mata, Marcos com seu capuz e uma mulher com o dela. "Mariana, minha companheira", apresenta ele. "Não a fotografem nem a descrevam, por favor." Mariana assistirá à entrega das linguiças e do livro com a ironia mascarada e o mesmo senso de humor com que Marcos assume implicitamente que não é o Dr. Livingstone, nem eu Stanley. Ele também não quer ser o Tarzã da selva de Lacadona, nem que Mariana seja Jane.
Sobre uma mesa de troncos leves construída para a ocasião, planejamos dois ou três encontros, enquanto Guiomar fotografa ou filma e Marcos instala seu gravador, para o caso de o meu não funcionar, e examina, corrige minhas desajeitadas manipulações do aparelho com uma solicitude de técnico de imagem e de som. Tem as mãos longas, a palma erodida de se arrastar pela mata há mais de 13 anos, mas os dedos de um professor de filosofia prestes a explicar o "como se" kantiano, essa pirueta do espírito.

Subcomandante Marcos - Vamos ver se sai tão bom quanto o seu "Panfleto do Planeta dos Macacos".
Manuel Vázquez Montalbán - Acompanhando as cinco declarações zapatistas, algo que me surpreendeu foi o especial caráter vanguardista de sua revolução. [O escritor mexicano Carlos" Monsivais disse que, mais do que uma vanguarda, vocês representam uma "minoria significada", mas não nos moldes de uma minoria que é dona de uma verdade absoluta. Depois de passarem por uma aprendizagem em contato com o mundo indígena e de terem pretendido fazer uma revolução para eles, vocês assumiram a energia transformadora que vem deles.
Marcos -
Nós nos vemos como um pequeno grupo que apresenta uma série de demandas e que tem a felicidade de essas demandas encontrarem coincidências, reflexos ou espelhos nas demandas de outras partes do país e do mundo. Em todo o caso, o mérito do EZLN [Exército Zapatista de Libertação Nacional" é ter encontrado a frequência de comunicação capaz de produzir esse reflexo múltiplo, primeiro no México urbano, camponês e indígena, depois noutros países e em suas minorias.
Montalbán - A crise da esquerda em todo o mundo provém, em parte, da confusão sobre o sujeito histórico da transformação, depois de esgotado e desconstruído o proletariado industrial como sujeito. E com vocês surge o sujeito étnico, o indígena, o duplo perdedor.
Marcos -
Nós chegamos à selva como uma clássica elite revolucionária em busca desse sujeito, o proletariado, no caso da revolução marxista-leninista. Mas essa proposta inicial entrou em choque com as propostas das comunidades indígenas, que têm outro substrato, uma complexa pré-história de emergências e insubmissões. Nós modificamos nossas propostas interativamente.
O EZLN não nasce de propostas urbanas, mas tampouco de propostas vindas exclusivamente das comunidades indígenas. Nasce dessa mescla, desse coquetel Molotov, desse choque que produz um novo discurso. O que dizemos é que a transformação histórica não deve ser feita à custa da exclusão de setores da sociedade.
Isso tem custos políticos, sociais, econômicos, para cada nação e para o mundo inteiro. Quando um setor diz "já basta!" está tentando repetir o que outros setores já disseram e praticaram. Ressalta a exclusão. Nunca existirá um mundo homogêneo, deve-se respeitar o direito à diferença, e o excluído reclama: ou nos levam em conta, ou terão de nos levar em conta como ruído na aparente harmonia da nova ordem internacional.
Montalbán - A irrupção do zapatismo coincide com a tão propalada entrada do México no Primeiro Mundo e com a assinatura do Tratado de Livre Comércio. De repente eclode a revolta zapatista, como um desmentido desse final feliz modernizador. Isso foi preparado?
Marcos -
Começa a ser preparado pelo próprio processo histórico. O neoliberalismo está preparando um grande simulacro no México: poderemos chegar a formar parte do Primeiro Mundo se não incluirmos todas as camadas sociais, se eliminarmos aquelas que não se enquadram em certos padrões, nos padrões de compra e venda. O modo como estávamos entrando no Primeiro Mundo deixava dez milhões de índios e alguns milhões de pobres fora do jogo, como se eles não fossem mexicanos, porque nunca tinham sido tratados como tais.
É o neoliberalismo que leva os indígenas à revolta, a partir do momento em que ele começa a se instalar com toda sua crueza, em 1982, liquidando a ambiguidade pseudo-revolucionária do PRI. Não é o zapatismo, mas o neoliberalismo que leva à opção: ou permanência e luta, ou desaparecimento e morte. É isso o que provoca a Primeira Declaração da selva de Lacadona e o levante zapatista.
Claro que há um processo de organização, mas você sabe que uma guerrilha não se implanta por obra e graça de seus grandes discursos. Devem existir condições que permitam seu arraigo na população. A partir do mundo indígena contempla-se com rebeldia essa proposta de sociedade do esbanjamento e da simulação, alimentada pela devastação dos recursos naturais e pela venda do aparelho produtivo do país às multinacionais.
Montalbán - A rebelião indígena quer um lugar entre os outros e é a metáfora do perdedor social global que exige um novo estatuto de globalização.
Marcos -
O movimento zapatista representa o símbolo de quem resiste a ser sacrificado dentro de um mundo padronizado. Nesse mundo, ou as diferenças se integram, deixando de ser diferenças, ou são eliminadas. Por isso o movimento indígena merece a simpatia de setores tão distantes como o dos jovens, dos anarquistas, dos emigrantes, das esquerdas reorientadas, dos expulsos da Terra, na Europa, nos Estados Unidos e no México. É por isso que vêm para cá esses voluntários, esse estrangeiro que se entende com o índio sem falar seu dialeto, que não tem nem sua cultura, nem sua estatura, estou falando da estatura física.
Tivemos muita sorte. O dinheiro estrangeiro tinha promovido um grande simulacro que provocou muitos ressentimentos. Nós tentamos apresentar uma proposta que fosse além do rancor. Nosso movimento vai além do fundamentalismo, apesar de alguns intelectuais mexicanos nos acusarem disso.
Montalbán - O zapatismo foi a proposta de um novo espelho para que o México não se visse na imagem distorcida de uma falsa modernidade. De certo modo, também era o rosto real do mundo, do fracasso da oferta neoliberal.
Marcos -
Só mais tarde é que percebemos isso. O que nós queríamos demonstrar era que a entrada do México no Primeiro Mundo estava sendo construída sobre uma mentira. E não era uma mentira apenas para os indígenas, como ficou demonstrado pelas crises econômica, política e ética de 1994-95, era também uma mentira para a classe média e para a classe trabalhadora, como se dizia antigamente. Inclusive para uma parte expressiva do empresariado.
Nossa proposta teve a sorte de coincidir com a ruptura dessa encenação. O repúdio dessa cenografia falsificadora também começou a ocorrer, ou já ocorre, em outros países que estão sacrificando parte importante de sua história e de imensos setores sociais marginalizados. Por exemplo, os emigrantes do sul e do leste da Europa, os imigrantes latinos nos Estados Unidos, a juventude desempregada em todo o mundo, o problema de uma Europa assediada pelo projeto anglo-saxão de cultura.
Montalbán - Quando perguntaram ao escritor italiano Leonardo Sciascia por que ele sempre escrevia sobre a Sicília, ele respondeu que a Sicília é o mundo. O México é o mundo, e o indígena é o globalizado duplamente perdedor.
Marcos -
Muita gente zombou da Primeira Declaração de Lacadona porque ali nos propúnhamos a marchar sobre a Cidade do México. Nossos argumentos chegaram a todas as cidades do Estado e mobilizaram a sociedade civil, essa sociedade que deveria ser o sujeito histórico da transformação, e o que nossos argumentos não fizeram foi feito pela própria decomposição do sistema. Figuras do PRI começaram a se matar entre si, veio à tona a fabulosa corrupção de Salinas de Gortari, profeta do Primeiro Mundo.
Montalbán - A ofensiva cultural dos últimos 15 anos atenta contra a memória histórica e a utopia. Para o liberalismo, extirpar a memória significa deixar a história sem culpados, sem causas. E a eliminação da utopia deixa o presente como única opção. Vocês pedem uma utopia modesta, que a Constituição e a democracia sejam para todos. Cumprir as constituições integradoras seria subversivo. Nem as oligarquias nem a ordem vigente o suportariam.
Marcos -
Nós não propomos um modelo econômico determinado. Digamos que a proposta zapatista tem mais a ver com o sentido ético da política que com um programa de governo, que é o que um partido político apresentaria. O zapatismo afasta-se dos movimentos revolucionários tradicionais. Não queremos o poder. Queremos que se respeite a igualdade e ao mesmo tempo a diferença. Quando propomos resgatar a memória, lutamos contra a unidimensionalidade do presente e do predeterminado, que interessa aos que nos dizem: esqueçam que somos os ladrões e criminosos de ontem, esqueçam que a promessa de ontem é a que estamos repetindo hoje e que ontem não cumprimos. Sobre a utopia, eu pergunto: que transformação social na história do mundo não foi utopia na véspera? Nenhuma.
Montalbán - Até o neoliberalismo é uma utopia, mas ninguém até hoje viu essa felicidade global de proveta.
Marcos -
Mas, para que a ordem internacional imaginada por eles se realize, seria preciso liquidar ou excluir boa parte da humanidade. Eles teriam que liquidar sua história, liquidar os Estados nacionais, para que ninguém se opusesse aos desígnios economicistas. Como na utopia de Blade Runner, em vez de um mundo, uma megaempresa, com muitos escalões de gerentes, até chegar ao operário e ao consumidor. Os agentes da resistência são os setores excluídos. Em um caso, os indígenas; em outro, os emigrantes, os homossexuais, as mulheres, os jovens, os desempregados. Todos os setores que estão sendo forçados a se definir como compradores ou vendedores, sem alternativa possível: "Se você não compra nem vende, não existe para nós".


Manuel Vazquez Montalbán é escritor espanhol, autor de "O Labirinto Grego", "Os Mares do Sul" (Companhia das Letras) e "Autobiografia do General Franco" (Scritta), entre outros.
Tradução de Sérgio Molina.




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