São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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A ascese do Combate


O SOCIÓLOGO LOïC WACQUANT RELATA EM "CORPO & ALMA", QUE ESTÁ SAINDO NO BRASIL, OS TRÊS ANOS QUE PASSOU COMO BOXEADOR EM UMA ACADEMIA DE CHICAGO ESTUDANDO AS RELAÇÕES RACIAIS NAS METRÓPOLES


Caio Caramico Soares
da Redação

Quando, em 1988, entrou pela primeira vez no ginásio de Woodlawn, em Chicago, o sociólogo francês Loïc Wacquant buscava uma "janela para o gueto", um ponto de observação especial das relações de raça e de classe no subúrbio de uma metrópole, tema por ele abordado em livros como "Os Condenados da Cidade" (ed. Revan). Ele não podia imaginar, porém, que começava uma aventura pessoal que quase o levou a renunciar à carreira acadêmica e se profissionalizar como boxeador.
Wacquant relata, em "Corpo & Alma", sua experiência de três anos de treinos (três a seis vezes por semana) e lutas, cujo auge foi a participação nas Golden Gloves, um dos principais torneios de boxe amador dos EUA. Depois de curado dessa "paixão" -termo que, em suas ressonâncias cristãs, é para ele definidor da ambivalência entre amor e dor na relação dos boxeadores com o esporte-, o professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, se lançou à tarefa de sistematizar, a partir deste livro, os princípios de uma "sociologia carnal".
Discípulo de Pierre Bourdieu, com quem escreveu "Convite a uma Sociologia Reflexiva" (Relume-Dumará), Wacquant segue o mestre ao priorizar a análise das formas de "incorporação" social dos indivíduos. Isto é, a socialização do indivíduo se daria por meio da aprendizagem dos valores coletivos segundo técnicas de "treinamento" e modelagem centradas no organismo.
Essa sociologia carnal, diz Wacquant na entrevista abaixo, não se reduz a uma análise "biopolítica" dos meandros da dominação social. Ao contrário, ela se abre com simpatia à dimensão "iniciática" de rotinas de trabalho que, como ilustrado pelos pugilistas de Woodlawn, educam a força bruta e a tornam suporte de uma individualidade superior, apta aos ringues da cultura.

A experiência de boxeador deixou muitas marcas?
Não, quem me vê hoje não adivinharia que eu já pratiquei boxe, não fiquei com nenhum estigma físico dessa experiência. Mas certamente o boxe deixou profundas marcas em minha personalidade, na maneira como penso e vejo o mundo, tanto como indivíduo quanto como intelectual. Em particular, o boxe tornou-me consciente da dimensão corpórea, "carnal", da vida social.
Como o sr. foi atraído pelo boxe?
Bem, eu estava interessado em achar um posto de observação dentro do gueto para analisar o seu dia-a-dia e entender melhor a desigualdade social e as relações raciais numa cidade americana. Eu não podia prever o quanto eu seria seduzido pelo mundo do boxe. Então decidi usar o ginásio como um segundo objeto de observação, estudando o funcionamento daquele mundo.
O boxe é um ofício em que você trabalha unicamente no seu corpo, com seu corpo e combatendo o corpo de outrem. O boxe pode ser visto como um empreendimento do corpo, e os lutadores têm em seu "capital físico" o principal recurso para "fazer" a si mesmos, atingir a realização social. E é interessante ao revelar a extensão do embasamento da existência social no corpo. Por outro lado, o boxe é uma atividade tipicamente associada às classes sociais subalternas, o que o torna excelente via para a investigação das desigualdades sociais.
Mas como, além das preocupações teóricas, o sr. se sentiu atraído pela idéia de ser um "garoto de Woodlawn"?
Quanto eu fui ao ginásio no primeiro dia, tive imediatamente a sensação de entrar em um lugar "religioso". De fato, o boxe é a religião do "corpo masculino e violento", com uma longa tradição, mitos e rituais específicos. Eu senti que não havia nenhuma outra forma de frequentar aquele local senão "convertendo-me" a ele. Se você quer entrar em Meca, você deve ser muçulmano.
Além disso, se eu tivesse me mantido como um observador externo, teria até hoje a visão de boxe que os espectadores têm. Todo o meu interesse nesse livro foi mostrar que os espectadores vêem o espetáculo na TV, mas dentro do ringue o que se passa não é um espetáculo, mas luta pela vida. O ginásio é muito similar a uma fábrica, em que se produzem não só corpos adaptados a usos específicos mas também crenças, formas de ser e de ver o mundo. Entender esse processo de produção só é possível estando na fábrica e se sujeitando a ele.
Que estereótipos sobre o boxe seu livro pode ajudar a quebrar?
O primeiro deles é o que diz que o boxe se reduz a um jogo violento, em que os lutadores se limitam a subir ao ringue e atacar-se mutuamente de maneira selvagem e estúpida. Meu livro mostra que o boxe tem todos os atributos de um ofício, que exige um longo aprendizado e implica habilidades que nem todo mundo pode adquirir, que tem uma estrutura hierárquica de autoridade e regras muito estritas.
A primeira lição que os boxeadores aprendem é não usar suas habilidades em brigas de rua. As pessoas pensam usualmente que o boxeador deve ter um caráter agressivo, "furioso".
O que vi, ao contrário, é que os praticantes do esporte são muito pacíficos e gentis. O boxe lhes dá um meio de canalizar a agressividade, eles aprendem a dar-lhe forma e propósito, exercitá-la de uma maneira muito disciplinada e regulada. No ginásio, era proibido até levantar o tom de voz contra os outros. Ser cordial, amigável, respeitoso com os demais era um dever. O boxe tem um efeito oposto ao imaginado pelo senso comum: não produz mais violência, e sim pacifica, protege os boxeadores da violência do mundo cotidiano, lhes dá um ofício e um senso de dignidade.
Mas como essa ética se conjuga com a necessidade de lançar mão de violência?
O boxe é visto pelo mundo externo como violento e necessariamente imoral. Na realidade, ele é um instrumento de regulação da violência, dando-lhe significado social, estrutura e conteúdo. Posso lhe dar um exemplo concreto: certa vez, o técnico do Woodlawn, Dee Dee, expulsou um dos lutadores do ginásio por ter agredido a namorada e disse aos demais que não fizessem isso, pois estariam desrespeitando não só suas mulheres mas a si mesmos e a seu ofício.
O sr. enfatiza o papel da noção de sacrifício.
Sim, "sacrifício" é um termo muito usado pelos boxeadores. O catecismo do boxe tem três grandes mandamentos: 1) seguir uma dieta muito rigorosa; 2) ter uma vida social reduzida: não ir a danceterias, dormir às oito, nove da noite e acordar às cinco ou seis da manhã; e 3) limitar suas relações sexuais. Eles crêem que o envolvimento com mulheres pode amolecer as pernas; meu técnico dizia que o "orgasmo faz você perder o sangue da espinha".
Embora a medicina já tenha mostrado que nada disso é verdadeiro, que fazer sexo antes de competições não afeta de forma nenhuma a performance, os lutadores são instruídos a se abster de sexo até sete, oito semanas antes de um combate. Claro que, na prática, eles subvertem essa obrigação, mas o que importa é que eles acreditam que deveriam segui-la, pois sua verdadeira parceira conjugal, sua verdadeira "mulher", seria o boxe. Eles se sentem "casados", em última instância, com o seu ofício, isto é, simbolicamente, com outros homens com quem subirão ao ringue após ter se preparado de modo similar.
Essa lógica é similar à das seitas religiosas?
Sim, no sentido de que tantas renúncias aos prazeres da vida comum fazem com que o lutador se separe das pessoas comuns e entre num espaço sagrado em que encontra sua "fraternidade secreta", isto é, pessoas que se sujeitam às mesmas práticas ascéticas, à procura de uma forma superior de vida, superando a esfera da vida comum, na qual passam despercebidas, vivem em condições precárias, não têm emprego nem acesso à educação. Ao entrar para o boxe, eles deixam de ser esses homens invisíveis, esperam reconhecimento, se encontram, produzem-se a si mesmos, ao invés de serem meras vítimas das circunstâncias. Tais metas são muito mais importantes, aliás, do que simplesmente ganhar dinheiro, o que poucos conseguem. Nos EUA, atualmente, o profissional típico faz de quatro a cinco lutas por ano e ganha uns US$ 500 dólares por luta.
Suas teses sobre a ideologia do ascetismo esportivo certamente fariam o leitor brasileiro pensar na exclusão do jogador Romário da Copa do Mundo, supostamente por motivo de indisciplina.
Em certo sentido, Romário é símbolo de uma era que está morrendo, ele representa um modelo que dizia que você é um jogador de futebol dentro de campo e que, fora dele, você pode ser o que quiser, e, se fosse indisciplinado, isso poderia até ser um sinal de mais talento. Com a crescente profissionalização do esporte, esse modelo tem ficado para trás, e o jogador passa a pertencer ao time e ter seu comportamento controlado, não apenas dentro de campo, mas também fora dele. Ao excluir Romário, o técnico [Luiz Felipe Scolari] atende a imperativos desse regime superprofissionalizado e racionalizado.
O sr. era o único branco no Woodlawn. Sofreu algum tipo de racismo?
Não, ao contrário, o mundo do boxe é indiferente à cor, sua aceitação depende exclusivamente de você "pagar o que é devido", isto é, se submeter à ética ocupacional dos lutadores. Se você obedece à disciplina dos treinamentos, se você vive de acordo com essa ética do sacrifício, você é um boxeador, não importa sua raça. Isso, porém, só é válido fora do circuito comercial, do "show business", no qual, de fato, os lutadores brancos ganham mais, têm uma carreira mais fácil do que os negros.
O sr. diz que sua integração ao ginásio foi assinalada pelos seus apelidos. Como foi isso?
Bem, meu primeiro apelido foi "Busy Louie". O termo "busy" (ocupado, atarefado) fazia referência à minha constante pressa com os afazeres fora do ginásio, estudando e pesquisando, e era também uma gíria com que eles nomeavam os boxeadores que têm uma técnica ruim de defesa, o que era o meu caso no início. Depois recebi apelidos como o de "o Francês Negro", por agir como eles e ter sua confiança e a amizade.
O sr. chegou a pensar em largar a universidade?
Sim, eu me envolvi tanto, achava aquele mundo tão vívido, interessante, que, quando eu ia ao campus, achava que estava num lugar completamente morto, um cemitério, em que as pessoas fazem coisas sem sentido. Ao contrário, o ginásio era minha casa, o lugar em que eu queria estar. Pensei em interromper minha pesquisa, encerrar minha carreira acadêmica e tornar-me um profissional do boxe.
Meu técnico Dee Dee, porém, sempre me pôs freios, me alertou que esse não era o meu mundo, que era um mundo que, ao lado do que tem de atrativo, é também repleto de sofrimentos físicos, feridas. De fato, paradoxalmente, os boxeadores sabem que amam algo que os destrói, que simultaneamente os eleva e os degrada, brutalizando seu corpo, sujeitando-os à exploração econômica, ameaçando-os até de morte no ringue. É um pouco como se apaixonar pela mulher errada. Dee Dee, porém, me proibiu de me profissionalizar. Um dia, ele me disse: "Se você pedir a carteira profissional, eu te arrebento".
Jornais como "El País" não cobrem o boxe por não considerá-lo um esporte. O que acha disso?
Isso é um sintoma do declínio do boxe. O boxe é hoje uma sombra do que era nos anos 20 ou 60. Um dos fatores dessa decadência foi a crescente integração econômica das classes trabalhadoras e a universalização do acesso à escola, que tirou do boxe suas antigas bases sociais. Por outro lado, nossa cultura também mudou, no sentido daquilo que Norbert Elias chamou de "processo civilizador", que gradualmente elimina nossa tolerância para com a brutalidade física e torna o boxe menos palatável.
Que lutador encarna mais o mundo do boxe: Mike Tyson ou Muhammad Ali?
Definitivamente Muhammad Ali. Ele não apenas é melhor mas também mais próximo da verdade do boxe. Em Ali as pessoas sentem que há uma habilidade, uma inteligência, uma arte envolvida no boxe. Ali, com seu atual estado físico, ilustra o que disse antes sobre a "paixão" do boxeador, que, como indica essa palavra, traz felicidade e sofrimento, um amor que irá destruir você, mas pelo qual você aceita os riscos e paga o preço. Mesmo hoje ele não se arrepende de nada, não importam os sofrimentos por que tem passado. Já o modo como a mídia fez seu cerco às atividades extra-esportivas de Tyson se tornou a principal forma por que ela apresenta o boxe em geral. A transição de Ali a Tyson é em si mesma uma medida do declínio do boxe.


Corpo & Alma
296 págs., R$ 38,00 de Loïc Wacquant. Trad. Angela Ramalho Vianna. Ed. Relume-Dumará (travessa Juraci, 37, CEP 21020-220, RJ, tel. 0/xx/21/2564-6869).



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