São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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+ sociedade

Possibilidade da clonagem humana lança o indivíduo numa oscilação inquietante entre júbilo e angústia que anuncia uma nova subjetividade

Volúpia da imortalidade

Joel Birman
especial para a Folha

O comprimento de onda da imortalidade se transformou nos últimos tempos, já que entramos agora na era do clone. Isso porque até bem recentemente aquele estava apenas presente como ficção. Essa presença já manifestava por si só o desejo de que um dia poderia ser engendrado. Porém, nada disso tinha nenhuma materialidade, se reduzindo a uma nebulosa tecida pelos nossos devaneios. Bastava uma simples abertura dos olhos para que esse sonho se desmanchasse. Porém o desejo que animava tais ficções insistia, restaurando sempre outras narrativas sobre a imortalidade. Os laboratórios de pesquisa avançada eram os cenários de tais fantasmagorias científicas, ao passo que o grande público de incautos desfrutava disso pelo viés da mídia e da indústria do entretenimento, que semeavam o terreno fértil do imaginário popular. Destacava-se aqui, certamente, esta última. Com efeito, quantos filmes e romances já não foram feitos sobre isso? Milhares, pode-se afirmar sem nenhum titubeio. Dos melodramas baratos até produções de grande densidade ética, a literatura e a filmografia contemporâneas fizeram já de quase tudo sobre isso. Portanto, entre os imaginários científico e popular constituiu-se lentamente uma relação outra com a imortalidade no Ocidente.

Retórica cientificista
Subitamente, contudo, um acontecimento balançou tudo. O engendramento da ovelha Dolly, na Inglaterra, ofereceu um novo alento para o imaginário, relançando numa outra direção os dados do destino. Isso porque o devaneio tomou corpo, ganhando consistência e materialidade efetivas. A moda pegou, ganhando asas e voando pelos quatro cantos do mundo, indicando uma transformação crucial no imaginário científico. Desde Dolly, vários animais foram então clonados, num curto lapso de tempo. Em decorrência disso, a clonagem humana começou a se definir nos seus contornos, transformando-se subitamente em algo real. Com isso, a problemática da clonagem não se restringiu mais apenas aos laboratórios científicos, migrando decisivamente para a cena pública. Não mais da mesma maneira que antes, pois já estava lá, não ficando mais restrita às indústrias de entretenimento. A mídia passou a ser o operador dessa ultrapassagem de fronteiras, alimentando o imaginário social agora com cada uma das descobertas. As informações passaram a ser codificadas numa linguagem próxima à da ciência. As ficções passaram a ser reconfiguradas pela tradução midiática, formatadas que eram numa retórica cientificista. A ciência, assim, passou a ocupar a cena principal dos acontecimentos, transformando-se na fonte da imortalidade. Com isso, os seus conceitos ganharam volume no imaginário, no qual circulam agora palavras novas na gramática do senso comum. O significante célula-tronco se inscreve agora na linguagem do cotidiano. Além disso, as referências maternas presentes na clonagem geraram a proliferação de discursos novos sobre a diferença sexual, na qual estaria finalmente abolida a paternidade. As representações sociais sobre a filiação foram então subvertidas, embaralhando as cartas dos jogos entre os gêneros. Enfim, o imaginário popular foi sendo pulsado agora pela retórica midiatizada da ciência. No entanto as resistências se apresentam também. A ciência e as empresas de biotecnologia foram obrigadas a vir à cena pública para justificar o que pretendem. Apesar de todo esse barulho, com efeito, as oposições se colocam agora em cena, lançando argumentos ético e religioso para os desdobramentos possíveis desse projeto científico e industrial. O que está em jogo aqui é a clonagem humana, nada mais nada menos do que isso. A clonagem das demais espécies não é fonte de impasses, apesar das questões que coloca também para o futuro da espécie humana num ambiente transformado pelas biotecnologias. Porém o que está em pauta mesmo é a clonagem humana. Está aqui o olho do furacão. A legislação de diferentes países se opõe a isso. O recente pronunciamento de Bush definiu claramente a posição norte-americana quanto a isso. Esse posicionamento pode mudar no futuro próximo, certamente, estando na estrita dependência dos interesses estratégicos do governo norte-americano. Isso porque os Estados Unidos abrigam as grandes corporações biotecnológicas do mundo, não podendo seu governo ficar imune às pressões daí advindas.

Bastidores do espetáculo
A promessa do médico italiano Severino Antinori de engendrar o primeiro clone em alguns poucos meses explodiu como uma bomba em todo o mundo. A mídia internacional deu um grande destaque a esse pronunciamento. O cenário da experiência estaria agora num além das fronteiras estabelecidas, para fugir das legislações dos Estados, numa "no man's land", que é a cena por excelência do imaginário. Com isso os debates saíram novamente dos laboratórios científicos e passaram a ser travados na cena pública.
O respeitável público acompanha tudo isso sempre atônito, manifestando um vivo interesse à medida que o seu destino está sendo aí decidido. O que isso tudo nos anuncia como possibilidade, tanto de vida quanto de sobrevida? Parece que é essa a indagação que está sempre presente para as pessoas nas notícias que circulam. Nesse interesse efetivo, o público se movimenta aqui entre dois pólos. Com efeito, entre o júbilo e a angústia o público oscila nessa experiência, marcada sempre que é pela inquietude. Isso porque tal experiência é atravessada pela volúpia, não existindo aqui nenhuma neutralidade.
Ao que tudo indica, a ciência se volta hoje para a clonagem terapêutica, e não para a reprodutiva. Isso não apenas por razões ética e política mas também científica. Aquela, com efeito, se mostra ainda arriscada nos seus resultados, considerando o que ocorre de problemático no registro da experimentação animal. Não obstante as bravatas de Antinori, este representa um grupo isolado na comunidade científica, à medida que as objeções à clonagem humana são bastante consistentes. Ao lado disso, as resistências éticas são poderosas, de forma que a clonagem reprodutiva se inscreve nos bastidores do espetáculo, fonte de inspiração fecunda para a "science fiction".
"Science fiction" ou não, no entanto, esses experimentos incidem poderosamente no imaginário contemporâneo, passando a colonizá-lo. Convive-se atualmente não mais com a sua possibilidade, mas com a sua efetividade. Esse é o real que se esboça já diante de nós de maneira insofismável. A mídia empreende aqui um verdadeiro trabalho de sapa, colocando água nas resistências morais ainda presentes no imaginário.
Procura-se, assim, desconstruir o horror que a clonagem reprodutiva ainda evoca. Isso porque a convivência com a imagem do duplo é sempre aterrorizante para a subjetividade, pois coloca em questão a certeza na identidade. A indagação crucial que se coloca aqui é como a subjetividade é afetada por tudo isso. A resposta que enunciei no início deste ensaio se condensa na palavra imortalidade. Porém é preciso explorar devidamente o que isso quer dizer, percorrendo os diferentes campos semânticos que se condensam nesse fantasma.
O que esses experimentos sugerem para o imaginário é, antes de mais nada, o alongamento da vida.
Não obstante essa já ter se alongado bastante hoje, com os avanços tecnológicos da medicina, a população quer sempre muito mais no que tange a duração da vida. Isso porque a morte se coloca para nós ainda como algo da ordem do horror. Dessa maneira, no bojo dos avanços científicos se atualiza o


O público acompanha tudo isso sempre atônito, manifestando um vivo interesse à medida que o seu destino está sendo aí decidido


desejo de imortalidade que está sempre presente no Ocidente. Como se sabe, a finitude da existência é a fonte primordial de angústia para a subjetividade, porque a morte é a nossa única certeza. Todo o resto pode ser incerto, mas que a morte nos espera como o mestre absoluto não existe sombra de dúvida. A marca da finitude é o que torna, em contrapartida, todas as nossas incertezas insuportáveis, justamente porque atualizam a presença da morte nas suas entrelinhas. São os signos da morte que nos espreitam nos interstícios das incertezas sempre angustiantes, justamente porque aquela é a nossa única certeza. Com a morte temos um encontro marcado, não dispondo de todo o tempo para fazer o que quisermos.

A anulação da dor
Além disso, esses experimentos prometem algo a mais que está no direto desdobramento do fantasma da imortalidade, qual seja, de que a dor vai desaparecer de nossa existência. Isso porque a dor presentifica a morte, porque anuncia a nossa impossibilidade de dominar os acontecimentos. Esses nos ultrapassam sempre, apesar de nosso desejo de nos opormos a isso. A questão da dor nos remete para as perdas que perpassam a existência. Essa é atravessada por aquelas, de maneira que existir é poder suportar as perdas que acontecem o tempo todo. Das perdas reais às ideais, passando pelas decepções e a dor, a finitude nos assalta sempre nas nossas incertezas. É justamente isso que torna a existência sempre trágica, apesar de todos os artifícios que utilizamos para ludibriar o encontro marcado com a morte. As clonagens terapêutica e reprodutiva se delineiam como um bálsamo para a finitude. Se a primeira promete o alongamento da vida, a segunda nos anuncia a imortalidade. Em ambas, portanto, uma transformação antropológica radical se enuncia e toca frontalmente nossos limites. Isso porque nos permitiriam mais tempo para viver, transformando as marcas de nossa herança amaldiçoada. Com isso, poderíamos adiar o encontro marcado com o mestre absoluto e ter o júbilo de subjugá-lo. É do triunfo sobre a morte que se trata aqui. Além disso, teríamos mais tempo para cicatrizar as nossas feridas, possibilitando, assim, não o domínio da contingência, mas, certamente, que pudéssemos nos refazer das perdas e decepções. Tudo se passa, enfim, como se pudéssemos sempre recomeçar, dominando a finitude e ludibriando o destino tão funesto. É preciso considerar ainda, contudo, que a inscrição da clonagem no imaginário social não é nova. Vale dizer, aquela é mais um capítulo na já longa história da medicalização ocidental, iniciada na passagem do século 18 para o século 19, pela qual a normalização (Foucault) se produziu e se reproduziu de maneira sempre contínua, rompendo com todos os obstáculos que a isso se opusessem. As fronteiras foram permanentemente ultrapassadas, sejam essas de natureza ética, jurídica e religiosa, de forma que aquela se implantou como marca de civilidade. A construção da medicina científica foi o paradigma desse processo, sendo sempre em nome do saber que essa se autorizou na colonização do social, inicialmente pelas práticas da polícia médica e, posteriormente, da higiene social. Nos diferentes registros da clínica e da medicina social, a medicina realizou diversas cartografias do espaço social, configurando-se com os discursos da saúde pública e do preventivismo. Tudo isso constituiu uma viragem importante na nossa tradição, à medida que se constituiu aquilo que Foucault denominou de biopoder e bio-história, sobre os quais se fundaram o poder do Ocidente desde o século 19. Isso porque o que a sociedade disciplinar delineou, em oposição à anterior sociedade soberana, foi que a qualidade de vida seria a condição de possibilidade para a riqueza das nações.

Ponto nevrálgico
Com isso, a normalização dos corpos e dos espíritos se destacou como o ponto nevrálgico do processo disciplinar, no qual a medicina se transformou no paradigma de onde derivaram as diferentes ciências humanas, preocupadas com que essas sempre estivessem no traçado de fronteiras entre os territórios sempre fluidos do normal, do anormal e do patológico.
Assim o Ocidente se deslocou do imperativo do fazer morrer e deixar viver, presente na ordem soberana, para a inovação que se enunciou então, qual seja, fazer viver e deixar morrer. Foi nessa viragem triunfante que o biopoder se constituiu, ao retirar as prerrogativas da soberania, prometendo sempre a imortalidade, a abolição da dor e das perdas. Vale dizer, o projeto de medicalização incide diretamente no imaginário da finitude, prometendo transformar os fundamentos dessa.
É isso ainda que está em causa nos atuais desdobramentos do biopoder. O que se promete ainda, por meio das diferentes modalidades de clonagem, é a ultrapassagem da finitude humana, de maneira que a imortalidade seja, enfim, possível. Por isso mesmo, tudo isso ocupa tanto os nossos corações e mentes, nos inquietando sempre, em nossa oscilação entre angústia e júbilo.

Joel Birman é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de, entre outros, "Gramáticas do Erotismo" (ed. Civilização Brasileira).


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