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Ponto de fuga
Luminosidade e pulsação
A devoção sincera e fervorosa de Almeida Prado é como
a de Rafael Sanzio, no Renascimento, em cujas pinturas as matérias, sensuais, são investidas
pela beleza superior
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Primeiro, é a energia que
toma o ouvinte. Depois
as melodias sem asperezas, sem buscar estranhamentos que perturbem. Virtuosidade, também. Em tudo, angústia
aveludada; o drama desesperado se passa como num palácio
que fosse prisão sem saída. Angústia nobre de suicida aristocrata, feita de fatalismo.
Nelson Freire interpretou o
concerto nš 4 de Rachmaninov,
com a Orquestra Sinfônica do
Estado de SP, em apresentação
recente. Toque elegíaco. Os dedos corriam rápidos e invisíveis. Sala São Paulo apinhada.
Aplausos em estrépito.
Anjo
Nelson Freire sorri sempre
com discrição. Parece o cachorrinho Droopy, dos desenhos
animados. Sua presença nos
concertos é acontecimento
maior, que o público, com razão, reconhece.
Mas ocorreu, naquela noite,
um outro acontecimento de
primeira importância. Foi, antes de Rachmaninov, a estréia
mundial de uma cantata composta por Almeida Prado: "Salmo 23 - O Senhor É Meu Pastor", com texto em hebraico.
Orquestra discreta, como na
de Sétima de Beethoven, menos os trompetes, mais a celesta, a harpa e um sino de vaca.
Coro infantil, e dois solistas, em
associação inusual: um menino
e um barítono. Representam
Davi quando pastor, ainda
criança, e Davi maduro, que virou rei. Davi era músico, e a
harpa, seu instrumento.
Almeida Prado controla a escrita musical sem abafar as
qualidades vivas da inspiração.
A nova cantata emana de seu
universo sonoro próprio, de dimensão universal, em que tudo
existe segundo um princípio: a
beleza harmoniosa que une todas as partes. O modo como os
sons se ligam, se encadeiam, se
ajustam, não nasce de uma estrutura seca, a ser revestida pelos timbres. A matéria sonora
não vem desdenhada nem tratada como um aposto nem submetida à tirania da forma.
Também não é empregada como truque de sedução sensual.
O sensível é o inteligível, o
corpo se faz espírito e o espírito
se faz corpo.
A devoção sincera e fervorosa de Almeida Prado é como a
de Rafael Sanzio, nos tempos
do Renascimento, em cujas
pinturas as matérias, sensuais,
são investidas pela beleza superior que as eleva. Em que a
grandeza, instintiva, é feita de
suavidade.
Fonte
Almeida Prado não se acanha
diante das sugestões concretas.
Duas frases escritas por ele, extraídas do programa, que se referem à cantata "Salmo 23":
"Sente-se a presença de um ré
maior transfigurado, como
uma luminosidade matinal".
"Os quatro tímpanos tocam numa pulsação pétrea."
Vitrola
Dois CDs, dentre os belos,
dos que a Osesp vem gravando:
a Nona Sinfonia de Beethoven
(ed. Osesp, 2006) e as Bachianas 2, 3, 4, de Villa-Lobos (ed.
Bis, 2005). Regência de Roberto Minczuk. No primeiro, o
quarteto vocal faz o que pode,
com esforço. O Beethoven de
Minczuk magnetiza por outras
razões. Une contrários; analítico e rigoroso, é aéreo, translúcido e incandescente. Como se o
maestro tivesse sido tocado, ao
mesmo tempo, pelos dedos de
Bruno Walter e de Toscanini.
No segundo, o das Bachianas
(Jean Louis Steuerman é o pianista na de nš 3), Minczuk mostra-se finíssimo nos detalhes da
orquestração. Recusa concessões a qualquer pitoresco tentador. Villa-Lobos se faz novo.
É sensual e lânguido, sempre,
mas emergindo em perfeita
continuidade rítmica, leve,
nuançado. As melodias fortes,
generosas, pendem menos para
a eloqüência sublinhada que
para a poesia verdadeira.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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