São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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Ponto de fuga

Luminosidade e pulsação

A devoção sincera e fervorosa de Almeida Prado é como a de Rafael Sanzio, no Renascimento, em cujas pinturas as matérias, sensuais, são investidas pela beleza superior

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Primeiro, é a energia que toma o ouvinte. Depois as melodias sem asperezas, sem buscar estranhamentos que perturbem. Virtuosidade, também. Em tudo, angústia aveludada; o drama desesperado se passa como num palácio que fosse prisão sem saída. Angústia nobre de suicida aristocrata, feita de fatalismo.
Nelson Freire interpretou o concerto nš 4 de Rachmaninov, com a Orquestra Sinfônica do Estado de SP, em apresentação recente. Toque elegíaco. Os dedos corriam rápidos e invisíveis. Sala São Paulo apinhada. Aplausos em estrépito.

Anjo
Nelson Freire sorri sempre com discrição. Parece o cachorrinho Droopy, dos desenhos animados. Sua presença nos concertos é acontecimento maior, que o público, com razão, reconhece.
Mas ocorreu, naquela noite, um outro acontecimento de primeira importância. Foi, antes de Rachmaninov, a estréia mundial de uma cantata composta por Almeida Prado: "Salmo 23 - O Senhor É Meu Pastor", com texto em hebraico. Orquestra discreta, como na de Sétima de Beethoven, menos os trompetes, mais a celesta, a harpa e um sino de vaca.
Coro infantil, e dois solistas, em associação inusual: um menino e um barítono. Representam Davi quando pastor, ainda criança, e Davi maduro, que virou rei. Davi era músico, e a harpa, seu instrumento. Almeida Prado controla a escrita musical sem abafar as qualidades vivas da inspiração.
A nova cantata emana de seu universo sonoro próprio, de dimensão universal, em que tudo existe segundo um princípio: a beleza harmoniosa que une todas as partes. O modo como os sons se ligam, se encadeiam, se ajustam, não nasce de uma estrutura seca, a ser revestida pelos timbres. A matéria sonora não vem desdenhada nem tratada como um aposto nem submetida à tirania da forma. Também não é empregada como truque de sedução sensual.
O sensível é o inteligível, o corpo se faz espírito e o espírito se faz corpo. A devoção sincera e fervorosa de Almeida Prado é como a de Rafael Sanzio, nos tempos do Renascimento, em cujas pinturas as matérias, sensuais, são investidas pela beleza superior que as eleva. Em que a grandeza, instintiva, é feita de suavidade.

Fonte
Almeida Prado não se acanha diante das sugestões concretas. Duas frases escritas por ele, extraídas do programa, que se referem à cantata "Salmo 23": "Sente-se a presença de um ré maior transfigurado, como uma luminosidade matinal". "Os quatro tímpanos tocam numa pulsação pétrea."

Vitrola
Dois CDs, dentre os belos, dos que a Osesp vem gravando: a Nona Sinfonia de Beethoven (ed. Osesp, 2006) e as Bachianas 2, 3, 4, de Villa-Lobos (ed. Bis, 2005). Regência de Roberto Minczuk. No primeiro, o quarteto vocal faz o que pode, com esforço. O Beethoven de Minczuk magnetiza por outras razões. Une contrários; analítico e rigoroso, é aéreo, translúcido e incandescente. Como se o maestro tivesse sido tocado, ao mesmo tempo, pelos dedos de Bruno Walter e de Toscanini.
No segundo, o das Bachianas (Jean Louis Steuerman é o pianista na de nš 3), Minczuk mostra-se finíssimo nos detalhes da orquestração. Recusa concessões a qualquer pitoresco tentador. Villa-Lobos se faz novo. É sensual e lânguido, sempre, mas emergindo em perfeita continuidade rítmica, leve, nuançado. As melodias fortes, generosas, pendem menos para a eloqüência sublinhada que para a poesia verdadeira.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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