|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A cor da igualdade
A favor
"A divisão já existe, está escrita na nossa sociedade", diz Luiz Felipe de Alencastro
DA REDAÇÃO
Para Luiz Felipe de
Alencastro, o debate
sobre a introdução de
cotas está chegando
tarde ao Brasil. Signatário do manifesto a favor
das ações afirmativas, o professor titular de história do Brasil
na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos
Viventes" (Companhia das Letras) não acha que a universalização e qualificação do ensino
sejam suficientes para mudar
injustiças históricas.
Em entrevista à Folha, defende as práticas adotadas nos
EUA, que teriam permitido o
acesso dos negros a posições de
destaque na sociedade. (MS)
FOLHA - O sr. é a favor da adoção
de cotas?
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO - Sou,
assinei o manifesto na versão
modificada.
A primeira versão falava de
genocídio. E, como historiador,
é inaceitável falar isso. Houve
genocídio de populações ameríndia, indígena, enquanto a
questão do tráfico negreiro
eram empresas mercantis cujo
objetivo não era extinção nem
de etnias nem de grupos.
FOLHA - A adoção do sistema de
cotas não introduz um conflito e
uma tensão que não existem atualmente?
ALENCASTRO - A tensão existe o
tempo todo. Se você pegar as
vítimas da polícia nos ataques
recentes em São Paulo [15/5],
eram jovens e negros. O conflito existe o tempo todo e está
feito. A idéia de que se vai criar
um conflito onde não existe é a
mesma idéia de quando ocorreu a introdução do voto feminino, o voto das mulheres iria
dividir as famílias.
A tensão existe, está lá. Os
signatários do manifesto contra as cotas passam a vida viajando para os Estados Unidos,
onde encontram negros o tempo todo na sala de aula, que não
estão nas salas de aula deles,
numa população negra que é
muito maior. Acho que a divisão já existe, está escrita na
nossa sociedade.
FOLHA - Essa divisão que o sr. citou
é entre brancos e negros ou entre
elite e marginalizados?
ALENCASTRO - Ela é a reprodução do sistema. A Igreja Católica está há 500 anos no Brasil
evangelizando todo mundo, todos são filhos de Deus.
Mas aí você vai olhar o número de padres e só tem mil
padres negros para 12 mil padres brasileiros. No comando
do Exército e no Itamaraty isso
se reproduz e já causou problemas nas representações brasileiras na África.
Sobre o argumento de que isso é imitar coisas americanas,
não há só defeitos nos EUA.
Que eu saiba, o habeas corpus e
o federalismo não são heranças
nem do direito português nem
dos costumes tupiniquins. Foram copiados diretamente do
sistema americano e funcionam muito bem no Brasil.
Além disso, o Brasil e os EUA
são as únicas sociedades em
que a escravidão esteve embutida na organização do Estado
nacional, são os únicos países
que modernizaram a escravidão colonial.
A Folha [em 5/7/2006] fala
em seu editorial por que não
[ação afirmativa] para os homossexuais, os judeus? Porque
nem os judeus tiveram escravidão no Brasil, e os bissexuais
não sofrem discriminação hereditária. Os negros têm esse
duplo "handicap".
FOLHA - O fato de as pessoas precisarem declarar sua raça e sua cor
não é um retrocesso? Isso está ocorrendo inclusive nas escolas, com as
crianças.
ALENCASTRO - Desde o censo de
1980 isso existe. Bem, acho que
as crianças terão a opção de dizer "não sei".
FOLHA - A idéia não é justamente
despertar a consciência de raça?
ALENCASTRO - Não acho que seja
um absurdo você se habituar à
alteridade, à diferença. A idéia
de que todo negro tem que ser
bom jogador de futebol e sambista também é um estereótipo. Isso de colocar a identificação sempre existiu no Brasil,
até na carteira de identidade.
FOLHA - A universalização e a qualificação do ensino não seriam as
ferramentas mais eficientes para
mudar a porcentagem de negros
nas universidades?
ALENCASTRO - Os EUA, que são
o país mais rico do mundo,
acharam que não. Colin Powell
[ex-secretário de Estado dos
EUA] e Condoleeza Rice [atual
secretária de Estado] subiram
e alcançaram a posição em que
estão agora graças a políticas
afirmativas.
Hoje, nas universidades, não
há mais o sistema que havia antes porque a Suprema Corte
entendeu que o sistema de cotas era anticonstitucional. Mas
há um sistema de pontuação
que beneficia quem vem dos
bairros desfavorecidos.
A educação pública é uma
obrigação do Estado brasileiro.
A proibição dos votos aos analfabetos, que durou até 1985, foi
feita com o objetivo explícito
de barrar a ascensão à cidadania aos ex-escravos. Já existia
no Império mas foi consolidada na República. A maioria da
população analfabeta adulta
era negra. Essa gente esteve excluída da cidadania na maior
parte do século 20.
Texto Anterior: Manifestos racham intelligentsia nacional Próximo Texto: Segregação universitária pode piorar no século 21, diz manifesto "pró" Índice
|