São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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As fábricas de monalisas

Em Dafen, na China, 2.700 pintores instalados em 145 ateliês reproduzem telas de Da Vinci, Van Gogh e Picasso que são exportadas em ritmo incessante ao Ocidente

Peter Parks - 22.jun.2006/France Presse
Pintor segura reprodução da "Monalisa", de Leonardo da Vinci (1452-1519), em ateliê na cidade chinesa de Dafen (sul)


FEDERICO RAMPINI

A uma hora de carro da metrópole industrial de Shenzhen, ao sul da China, Dafen revela imediatamente algo diferente a quem chega ali. O vaivém nas rodovias é sempre intenso, mas de repente as estradas começam a ter nomes insólitos, escritos também em inglês, como "Rua do Retrato Da Vinci".
Em vez dos logotipos das marcas de jeans ou de sapatos, de computadores ou de celulares, vêem-se os cartazes das oficinas que anunciam a "Gioconda" ou "A Criação de Adão", da capela Sistina.
Para os habitantes, isso é normal: Dafen é conhecida em toda a China como "a cidade dos pintores". Não no sentido que teve a Paris dos impressionistas ou a Viena de Klimt. Não é aqui que se deve buscar a vanguarda criativa chinesa, os jovens artistas experimentais.
Em nenhum outro lugar do mundo se concentram tantos artesãos da paleta e do pincel. Pelo último censo, 2.700. Pintam dia e noite, em ritmo contínuo, em 145 "fábricas de arte" concentradas nos quilômetros quadrados com a mais alta densidade de retratistas do mundo.
Desde 2002, início do boom de Dafen, daqui partiram milhões de quadros, enviados para a Ásia, EUA e Europa, na maior parte reproduções de obras-primas famosas.
Mais cedo ou mais tarde, todos já vimos cópias de Gauguin, Toulouse Lautrec ou Picasso: às vezes nas casas da pequena burguesia ou na sala de espera de um dentista norte-americano de Iowa. Também podemos topar com um solícito pintor de reproduções que tenta vender telas a turistas que passam pelas calçadas da Piazza Navona, em Roma, ou de Montmartre, em Paris. Mas aqui estamos em outra escala.
Os chineses intuíram que, também nesse campo, seria possível dar o grande salto rumo à especialização industrial e a produção de massa. Existe um mercado inimaginável, capaz de absorver quantidades ilimitadas de matisses por 15 euros [R$ 42] ou rembrandts de 30 euros [R$84].
A pequena burguesia de muitos países emergentes quer dar um estilo à decoração de suas casas. As multinacionais asiáticas querem acrescentar um toque ocidental a seus escritórios. Os grandes hotéis de turismo de massa precisam pendurar alguma coisa em milhões de novos apartamentos. O mesmo vale para os cruzeiros de férias e até hospitais.

Impressionistas por peso
Todo o planeta está tomado por guindastes que erguem grandes edifícios, e alguém terá de "vestir" todas as paredes. Dafen produz para eles. Os caminhões dos comerciantes vão e vêm dos ateliês dos pintores aos portos de Shenzhen e de Hong Kong, onde navios cargueiros aguardam lotes de impressionistas -Renoir, Manet e Monet- vendidos por peso.
Na Rússia predomina Tintoretto. No Extremo Oriente, os "Girassóis" de Van Gogh continuam no topo das vendas.
Mais de 300 galerias expõem ao público uma amostragem do trabalho dos pintores. Em Dafen se pinta de tudo, sob encomenda. Não faltam os enormes retratos dos "pais da pátria": Mao Tse-tung, Zhou Enlai e Deng Xiaoping ainda gozam, claro, de uma clientela de nostálgicos do comunismo.
Mas, por uma involuntária ironia, ali são vendidos em vitrinas ao lado de "O Beijo" de Klimt, de uma sensual Sophia Loren copiada do célebre cartaz do filme "La Ciociara" ("Duas Mulheres", 1960) e do trio de jogadores Ronaldo, Rivaldo e Roberto Carlos.
Os artesãos chineses estão conectados à internet. Querem um retrato de seus filhos? Enviem por e-mail uma foto digital e, por 100 euros [R$ 278], mãos hábeis farão um óleo sobre tela, uma têmpera ou um acrílico, na medida exata para sua sala de jantar.
A confusão nas vitrinas não deve enganar. Atrás, nas oficinas que abastecem os comerciantes, impera a divisão industrial do trabalho. Os ateliês dos artistas são na verdade linhas de montagem: dezenas de pintores por sala, sentados ou em pé diante de cavaletes, imersos no cheiro forte dos vernizes, trabalham em ritmo infernal com pincéis e espátulas, a fim de cumprir os prazos de entrega. Os chefes de seção geralmente são ex-professores de desenho, e o resto da mão-de-obra é constituído de jovens diplomados nos liceus artísticos.
Trabalham até 11 horas por dia e dormem na fábrica. Ganham conforme a quantidade de telas pintadas. Em média, um jovem artesão pode ganhar dez euros [R$ 28] por dia, que é mais que o dobro do salário de um operário. Há as oficinas dos impressionistas e as do Renascimento italiano, os retratistas e os pintores de paisagem, o quarteirão das naturezas-mortas e a zona do surrealismo.
Chen Xiangjun, 39, está um degrau acima da maioria. Trabalha sob encomenda, mas tem seu próprio negócio. Conquistou uma reputação em Dafen. É um dos pintores de giocondas.
Convida-me a visitar sua casa -casa e oficina, é claro. É um cômodo no primeiro andar de um edifício, onde sou recebido por filas de calcinhas estendidas para secar, um cheiro de couve na panela e uma pequena mulher diligente, que logo sai para comprar uma latinha de Coca-Cola para oferecer à visita (e cliente potencial).

R$ 215 cada monalisa
"Estudei arte clássica na universidade", diz. "Posso pintar qualquer coisa, é só me darem uma foto. Não me peçam para trabalhar de memória, porque é muito mais difícil. A "Monalisa" é o meu forte. Posso pintá-la em três ou quatro dias, óleo sobre tela, trabalhando mais de oito horas por dia. Meu preço depende sempre das horas trabalhadas, da familiaridade com o tema que me pedem e das dimensões da tela. Posso lhe vender uma boa monalisa por 800 yuans [R$ 215]."
Mostra uma que acabou de pintar. Tem as faces ligeiramente mais cheias em relação ao original, os cabelos são menos cuidados, as cores talvez um pouco luminosas demais, a perspectiva da paisagem ao fundo é simplificada. E, naturalmente, o sorriso misterioso de Leonardo não se deixa reproduzir com facilidade.
Vale os 80 euros [R$ 215] negociáveis? Chen talvez perceba que o visitante não está inteiramente convencido e se explica melhor. "Esta eu fiz meio depressa, é para um cliente que queria gastar o mínimo. A qualidade é proporcional ao tempo que o senhor me concede. Por exemplo, se devo terminar em poucos dias, a monalisa fica com a pele mais escura. Se o senhor me pagar mais, lhe faço uma bela pele, branquíssima, como uma verdadeira rainha."
A poucos metros da casa de Chen, a senhora Hengchao administra uma oficina de três andares onde dezenas de jovens estão ocupados em reproduzir guaches napolitanas do século 19. A proprietária me leva a um pequeno depósito onde se amontoam pilhas de reproduções: o guache napolitano sai por 20 euros [R$ 55].
"Um comerciante de Shenzhen", diz ela, "compra centenas dessas para revender na Itália". A senhora não quer revelar a técnica de "envelhecimento". O produto final é cheio de rugas, a tela é amarelada até no verso, as cores têm uma pátina de antigo. Certamente há quem se deixe enganar, a julgar pelas abundantes encomendas do exportador de Shenzhen.

Zona cinzenta
Em sua oficina estamos numa "zona cinzenta", um tipo de ofício em que a cidade dos pintores se aproxima de outras indústrias chinesas especializadas na contrafação, na pirataria, na violação de copyright.
Mas o grande negócio de Dafen é outro. A cidade dos pintores não tenta enganar. Os milhões de quadros que exporta para o mundo todo são cópias evidentes, declaradas, feitas com absoluto candor. Leonardo da Vinci não é trapaceado em seus direitos de autor. E, presumivelmente, todos os clientes sabem que a "Monalisa" autêntica ou os "Girassóis" de Van Gogh não estão à venda, muito menos por R$ 220.
Muito antes que no Ocidente Walter Benjamin escrevesse "A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica", muito antes que Andy Warhol desencadeasse a ironia da pop-art na multiplicação de imagens famosas, há mais de 2.000 anos a tradição confuciana exalta o gesto de copiar como uma homenagem amorosa e devota dirigida ao artista original.
A história da arte na China traz essa marca. Na estética chinesa o que é belo não é o objeto de arte, mas são o gesto do artista ao criá-lo e a infinita repetição desse gesto que o tornam eterno. Em quem copia há humildade, há tensão voltada ao aprendizado.

Vontade de aprender
No pós-guerra e até os anos 1970, os "piratas" por excelência eram os japoneses. Nas feiras industriais do Ocidente, avisos proibiam categoricamente que as delegações japonesas portassem máquinas fotográficas, porque eles fotografavam para refazer os produtos americanos, ingleses, alemães.
Aquela época deixou uma herança: a liderança mundial do Japão na ótica de precisão, lembrança de um tempo em que a máquina fotográfica foi para eles uma arma estratégica. Em muitos outros setores tecnológicos o "made in Japan" é tão avançado que renunciamos a competir.
Nesse sentido, os chineses de hoje são os japoneses de ontem. Têm a mesma obstinação em estudar quem está mais à frente deles. A pirataria é contrária às regras, mas também trai uma grande vontade de aprender. Essa estranha cidade parece uma metáfora de toda a China, com seus 2.700 pintores que suam na linha de montagem, alugando seus pincéis a serviço dos nossos desejos.

Este texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.


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