São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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Lolitas em Buenos Aires

UM ESCRITOR BRASILEIRO EM CRISE NA ARGENTINA É VISITADO POR UM GRUPO DE MENINAS "CRIADAS À BASE DE MUITO DANONINHO" NESTE CAPÍTULO DO ROMANCE "GOLPE DE AR", DE FABRÍCIO CORSALETTI, A SER LANÇADO NO INÍCIO DE SETEMBRO


Elas entraram em casa fazendo estardalhaço. Jogaram os sapatos pro alto, fizeram sorteios pra definir a ordem de uso do chuveiro e depois me pediram alguma coisa pra beber


FABRÍCIO CORSALETTI

Na mesma noite da comida natural, a Lis me telefonou perguntando se elas podiam ir até a minha casa tomar banho, porque a água quente do albergue tinha acabado. Desliguei o telefone, fui até o Liber -o café na esquina da Libertad com a Libertador- e comprei quatro garrafas de Norton Clasico, decidido a embebedar as meninas e ficarmos íntimos de uma vez.
Também comprei pão e presunto e arrumei a cama, o chão do banheiro limpei com um pedaço de papel higiênico. Lavei uns copos e escancarei a janela pra trocar o ar. Escovei os dentes e abri uma garrafa. Antes de atender o interfone, virei o copo de vinho tinto, que já estava pela metade: - Oi.
E a resposta foi um coro de seis vozes afinadíssimas cantando o samba: "Na hora da sede você pensa em mim, lá lá iá Pois eu sou o seu copo d'água..." Corri até o elevador, mas não aguentei esperar.
Desci pela escada, pulando os degraus de dois em dois, e quando cheguei no saguão do prédio e ergui os olhos até a porta de vidro da entrada, fiquei desconcertado com o que vi: na calçada, formando um rígido semicírculo, as meninas -o Zeca entre elas- trocavam olhares cúmplices, as mãos coladas nas coxas, como que em posição de sentido. Sem saber o que aquilo significava, eu não tinha nenhuma opção além de ir devagar até elas e esperar que elas mesmas me dessem uma resposta.
Abri a porta, e a explicação foi a volta do coro, agora em versão buarquiana: "Pensou que eu não vinha mais, pensou Cansou de esperar por mim Acenda o refletor Apure o tamborim..." Foi quando percebi que estava perdido. Mas não importava. Eu não tinha nenhum motivo pra me defender.
Subimos em sete num elevador pra quatro; espremido entre as meninas, eu olhava pra cada uma delas durante o mesmo intervalo de tempo, e se por acaso enroscava o olhar nas sobrancelhas da Marta, rápido procurava o pescoço da Sílvia ou os olhos da Mel. Não estava disposto a escolher nem muito menos a errar o alvo.
Atento e novamente tranquilo, eu estava à espera de tudo o que tinha ficado em aberto desde o encontro com a Lis na escadaria do museu -ou na festa do Sérgio um ano antes-, ou desde o seu telefonema naquela noite: a gente pode ir aí tomar banho?

 

Elas entraram em casa fazendo estardalhaço. Jogaram os sapatos pro alto, puxaram um colchão de debaixo do sofá e se esparramaram pela sala. Fizeram sorteios pra definir a ordem de uso do chuveiro e depois me pediram alguma coisa pra beber. Servi o vinho e preparei uma rodada de sanduíches de presunto -em alguns coloquei geleia de pêssego.
Elas comiam e bebiam, cantavam e queriam saber de Buenos Aires. "Boliche" é um bar, um boteco ou uma boate? "Salir de joda" é cair na balada? A gente quer muuuiiito conhecer um "boliche"! Hoje eu pre-ci-so "salir de joda"! Por que você não põe um som pra gente dançar, hein?
Porque eu não tinha aparelho de som. Durante um tempo pensei em comprar um, mas depois me acostumei a ficar sem música, o que era conveniente pra minha situação financeira mais ou menos precária. Elas disseram que não tinha problema e cantaram um samba pra me consolar, enquanto matavam mais uma garrafa de Norton. Bêbadas, iam pra lá e pra cá pelo apartamento, e eu fiz questão de deixar bem claro que elas podiam mexer em tudo, fuçar nos livros e na geladeira, na estante da sala e no armário do banheiro.
Horas depois, a Sílvia foi até o quarto e voltou carregando a meia dúzia de livros que eu deixava do lado da cama, no criado-mudo. Ao mesmo tempo que ela distribuía um romance pra cada uma das meninas -o Zeca ficou sem-, lamentava não ter encontrado os meus livros.
A Lis sabia que eu tinha dois livros de poesia publicados e devia ter contado isso pras meninas. Expliquei que tinha trazido só um livro do Brasil, o de crônicas do Rubem Braga; os outros eram livros emprestados pela Daniela, todos em castelhano. Não tinha nenhum dos meus livros ali comigo. Surpresa, a Sílvia perguntou se eu não tinha vontade de fazer contato com escritores argentinos. Eu disse que não. A Marta concluiu que eu era estranho, e a Mel quis saber o que afinal eu tinha ido fazer em Buenos Aires, até que a Lis sugeriu que a gente brincasse de jogo da velha, paciência ou forca. Elas escolheram a forca, e eu desci pro Liber pra comprar mais duas garrafas de vinho.
No caminho do café tentei pensar em alguma coisa que não tivesse a ver com as meninas, mas foi inútil. Eu precisava entender de onde elas tinham saído. Elas falavam sobre moda, teatro, dança, literatura, cinema, música popular -disso pareciam conhecer bastante-, política e bares descolados. Tinham sido criadas à base de muito Danoninho e muita "Folha de S.Paulo" -a ONU era como a casa distante de uma tia legal.
Todas tinham algum artista ou intelectual na família ou eram amigas de alguém mais ou menos famoso. Algumas delas já tinham feito vários anos de análise, e quando lhes revelei que a minha analista em São Paulo era freudiana senti que de certa forma me esnobaram. Elas estavam de férias em Buenos Aires e queriam apenas se divertir.

 

De volta ao apartamento, abri as garrafas e aprontei novos sanduíches, que entreguei pras meninas antes de me sentar no chão entre a Marta e a Lis. Tirei os tênis, por sugestão da Lis, mas mantive as meias, brancas e sujas. As outras meninas estavam descalças -o Zeca pegou meu chinelo-, mas a Lis usava meias coloridas, e a Marta, meias azuis. Elas estavam discutindo Godard. - "Acossado" é o melhor!
- Prefiro "O Desprezo"! - Eu achei uma bosta o "Elogio ao Amor"! Eu concordava com elas e bebia, e era continuamente surpreendido pelo cheiro úmido dos cabelos recém-saídos do banho. Elas vinham do quarto, onde entravam pra se vestir, e elogiavam a água quente do chuveiro. Até que se davam conta de que o banho tinha levado embora a embriaguez e vasculhavam a sala em busca de um copo vazio e uma garrafa cheia.
As garrafas estavam sempre comigo; então eu enchia novamente os copos, e elas ficavam bêbadas de novo. Teve um momento que o Zeca falou que não suportava mais o tique-taque do despertador, e eu, antes de me censurar, joguei o relógio no chão e pisei com força em cima dele; os ponteiros voaram cada um pra um canto da sala, pra delírio do Zeca e sei lá o quê das meninas, que me olhavam sem dizer nada.
Mas a Sílvia não estava bem. Vomitou na privada e na pia do banheiro; a Marta lhe deu um segundo banho e limpou o que precisava ser limpado. Demoraram um bom tempo trancadas no banheiro. Quando voltaram, o Zeca tinha ido embora com a Mel e a Sandra. Sugeri que a Marta dormisse com a Sílvia no quarto, eu dormiria na sala, sem problemas.
Mas ela pediu pra Lis, que me conhecia melhor, ficar no seu lugar. Tirei lençóis limpos do armário, fiz a cama com a ajuda da Lis, levei dois copos d'água pro quarto, fechei a porta e dormi na sala, na bagunça adolescente da sala -que tinha adquirido uma cara inteiramente nova depois da chegada daquelas meninas inacreditáveis.

FABRÍCIO CORSALETTI é escritor. Este texto é o segundo capítulo de "Golpe de Ar", a ser lançado pela editora 34.



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