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Jürgen Habermas escreve sobre o filósofo alemão, autor de "Eros e Civilização"
O centenário de Marcuse e os ritmos diversos da filosofia e da política
JÜRGEN HABERMAS
especial para a Folha
Quando da morte de Sophie, sua
primeira mulher, Herbert Marcuse escreveu a Horkheimer e Pollock (3 de maio de 1951): "É falsa a
idéia de que a morte faz parte da
vida, e deveríamos levar Horkheimer bem mais a sério quando diz
que só com a abolição da morte os
homens serão realmente livres e
felizes". A vida eterna já aqui sobre a Terra -Marcuse se apropriou por um viés vitalista dessa
idéia pouco protestante, derivada
de Condorcet. Ainda não chegamos a este ponto, apesar dos avanços da tecnologia genética. De outro modo, Marcuse estaria aqui
para constatar a curiosa coincidência de seu centésimo aniversário com uma outra comemoração:
"1898 - 1968 - 1998" foi o moto de
um recente encontro em Gênova,
dedicado à memória de Marcuse.
Lá estavam os admiradores acadêmicos do filósofo, mas o verdadeiro foco de interesse passional
correu por conta do duplo papel
do mentor quando da rebelião estudantil. Como se a coincidência
de datas fizesse mais por Marcuse
do que a memória de sua obra filosófica.
A baixa cotação de escritos antes
publicados em grandes tiragens é
muitas vezes mero sintoma do esgotamento de uma influência demasiado marcante. Foi o que
aconteceu a Adorno: sua obra, entretanto, segue sendo um desafio
para o presente -e com justiça.
Até mesmo os trabalhos de Horkheimer preservam, no contexto
da escola que inspiraram, o mesmo interesse de antes. Mas, no caso de Herbert Marcuse, o perfil de
autor acadêmico recua diante do
papel histórico de mentor e exemplo político.
Estamos familiarizados com as
oscilações na acolhida de filósofos
de maior ou menor estatura. Mas a
repercussão de posições políticas,
mais presas a seu contexto histórico do que as obras filosóficas, conhece ritmos diferentes, de menor
fôlego. No caso de Marcuse, parece ter-se produzido um curto-circuito entre os ritmos da obra e do
personagem político. O peso do
pensamento filosófico foi arrastado pela maré de desvalorização do
engajamento político. Seria demasiado fácil apresentar-se como
porta-voz de um à custa do outro.
E aí mora, se não estou enganado,
o perigo de uma dupla distorção
óptica -tanto no que diz respeito
ao engajamento quanto em relação à filosofia.
Em comparação com os outros
membros do círculo próximo a
Horkheimer, Marcuse era certamente o de temperamento mais
político. Participou em 1918 de um
conselho de soldados ("Soldatenrat") berlinense e 60 anos mais
tarde ainda falava com decepção
sobre o "fracasso da revolução
alemã, que meus amigos e eu presenciamos (...) quando do assassinato de Karl (Liebknecht) e Rosa
(Luxemburg)". Durante a Segunda Guerra Mundial, Marcuse trabalhou na seção política do Office
of Strategic Services (Escritório de
Serviços Estratégicos), preparando análises do campo inimigo e assim contribuindo à sua maneira
para a luta contra o regime que o
expulsara da Alemanha.
No começo dos anos 60, o movimento pelos direitos civis nos
EUA o trouxe de volta à política;
pouco depois, participou da oposição à Guerra do Vietnã e, por
fim, tornou-se influência maior
nos movimentos estudantis dos
dois lados do Atlântico. Entretanto, esse ativismo intermitente não
deve nos impedir de ver que Marcuse, ainda em comparação com
Horkheimer e Adorno, foi uma figura eminentemente acadêmica
-daquele tipo que segue as regras
do ofício e escreve livros eruditos.
Heidegger o familiarizou com os
temas e os padrões da filosofia
contemporânea. Marcuse, o primeiro "Heideggermarxist", redige sua tese de doutorado em estilo
convencional e, por volta de 1930,
publica trabalhos em revistas acadêmicas de renome. É Marcuse, e
não Adorno, quem assume o papel de filósofo quando Horkheimer transfere o Instituto para Nova York -chega mesmo a escrever um comentário escolar ao ensaio "Teoria Tradicional e Teoria
Crítica".
Em 1941, com um estudo histórico-sistemático sobre o surgimento
da teoria social a partir da filosofia
hegeliana, Marcuse conquista o
devido reconhecimento também
entre seus pares: "Razão e Revolução" suporta qualquer comparação com o famoso "De Hegel a
Nietzsche", de Karl Löwith. Mesmo "Eros e Civilização", seu livro mais radical e em certo sentido
mais "pessoal", é apresentado
por Marcuse como contribuição a
uma discussão acadêmica.
"O Homem Unidimensional" é
sua obra mais conhecida, mas decerto não a melhor; publicado em
1964, o livro termina, ainda em
tom pessimista, com uma citação
de Benjamin: "Tão-só em nome
dos desesperançados nos foi dada
a esperança" -isto é, sem aquela
"conexão com a práxis" ("Praxisbezug") que os estudantes logo
criariam.
No prefácio a "Razão e Revolução", Marcuse justifica o interesse
de um estudo sobre Hegel, afirmando que "o surgimento do fascismo exige imperiosamente uma
nova interpretação da filosofia hegeliana". Do mesmo modo, se for
verdade que a obra de Marcuse se
formou à sombra da vida política
de outrora, então as transformações sofridas desde então pela história contemporânea devem nos forçar
a uma nova leitura de sua
obra: trata-se
menos de ler
sua filosofia "a
uma nova luz"
do que de pôr à
prova nossos
juízos prévios
sobre o papel
político do autor.
A cuidadosa
documentação que Wolfgang Kraushaar há pouco
reuniu sobre
"A Escola de
Frankfurt e o
Movimento
Estudantil"
("Die Frankfurter Schule
und die Studentbewegung") permite, a partir do
caso da República Federal
da Alemanha,
examinar as
posições de
Marcuse no calor do movimento de 1968.
Pontos importantes se
encontram já
no discurso de
Marcuse em 22
de maio de
1966, diante de
um congresso
sobre o Vietnã
promovido pelo SDS na Universidade de Frankfurt. Marcuse
parte do "contraste entre a riqueza social, o progresso técnico e o
domínio da natureza, por um lado, e, por outro, a utilização de todas essas forças para a perpetuação da luta pela existência em nível
nacional e internacional (...) a despeito de toda pobreza e miséria".
Hoje em dia, com o fim da corrida
armamentista entre as superpotências, a "utilização destrutiva
da riqueza acumulada" é certamente menos evidente que nos
dias da Guerra do Vietnã. Mas a
era do capitalismo globalizado,
que em certa medida faz com que
índices de desemprego e valores
de ações subam no mesmo ritmo,
confirma por outra via a denúncia
marcusiana de "uma união fatal
entre produtividade e destrutividade".
Marcuse percebeu que as atuais
relações de produção mais liberam que entravam as forças produtivas. Questiona então o modelo produtivista de emancipação
social. Muito antes do Clube de
Roma, ele se bate contra "a deplorável concepção de produtividade
progressista, para o qual a natureza está ali, grátis, pronta para ser
pilhada". Nesse meio tempo, o
movimento ecológico trouxe esse
tema à consciência de todos. Marcuse procurava distinguir o socialismo do capitalismo "não tanto
pelo grau de desenvolvimento das
forças produtivas, mas sim em seu
redirecionamento, pré-condição
para a abolição do trabalho, a autonomia das necessidades e o apaziguamento da luta pela existência".
Também a tese do "fim da sociedade do trabalho" está hoje na
boca de todos: é patente que proporções crescentes da população
economicamente ativa são "supérfluas" do ponto de vista da reprodução da sociedade. Uma pesquisa ampla mostrou que, nos países da OCDE (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento
Econômico), o produto social inteiro é criado por 20% da população em condições de trabalho.
Também a avaliação marcusiana
dos potenciais de protesto está
longe de ser irrealista. Ele não via
na União Soviética um contrapeso
ao Ocidente capitalista; tampouco
partilhava da opinião de que a miséria e a resistência das massas exploradas representassem todos os
interesses gerais da sociedade. Nos
EUA já se esboçava então uma outra configuração de maioria e minoria. A uma maioria integrada se
opunham minorias marginalizadas sem poder de ameaça efetiva. É
por isso que Marcuse deposita sua
esperança na sensibilidade moral
de jovens, intelectuais, mulheres,
grupos religiosos etc.
As forças motrizes morais devem acorrer em auxílio dos interesses materiais dos humilhados e
ofendidos: "Uma das coisas que
aprendi (...) é que moral e ética
não são mera superestrutura ou
mera ideologia". Como bom idealista, Marcuse fala da "solidariedade da razão e do sentimento".
Desde que os sociólogos vêm
constatando a transformação das
orientações valorativas ("Wertorientierungen"), cada vez menos
materiais e mais "pós-materiais", também essa visão marcusiana ganha em plausibilidade.
Claro está que esses argumentos
não bastam para explicar o grande
eco que Marcuse teve junto ao público estudantil. Foram os impulsos de uma filosofia vitalista de
matizes freudianos que lhe garantiram ressonância junto à geração
do pós-guerra. Marcado ele mesmo pelos movimentos juvenis da
virada do século, Marcuse teve faro para o caráter de contestação
cultural do movimento estudantil,
para o ímpeto peculiar da revolta e
para a auto-imagem dos rebeldes:
"Essa oposição é simultaneamente uma revolta sexual, moral, intelectual e política. Nesse sentido, é
uma revolta total, voltada contra o
sistema como um todo".
De resto, esta última afirmação
deixa entrever como essa descrição existencialista é um convite a
ligar a revolta juvenil ao conceito
histórico-filosófico de "inversão
do todo", isto é, com o conceito
de revolução. Marcuse jamais chegou a confundir a revolta com
uma revolução; mas atribuiu a ela
o papel de fagulha inicial. Ele sugere a seus ouvintes que se considerem como parte de um futuro movimento revolucionário. Contraprova disso são suas declarações
ambíguas quanto à questão da violência.
Ainda em junho de 1967 ele toma
distância da facção liberal da SDS,
numa observação dirigida contra
Knut Nevermann: "De modo algum identifiquei humanidade
com não-violência. Pelo contrário, falei de situações em que é do
interesse da humanidade recorrer
à violência". Essa tendência é reforçada pela visão racionalista-autoritária ("vernunftautoritär") e
elitista da filosofia, que Marcuse
herdou, como outros companheiros de geração, do currículo politicamente questionável do ensino
secundário alemão -Hannah
Arendt, por exemplo, não está
muito longe disso.
A ilusória identificação da juventude rebelde com uma vanguarda revolucionária explica parcialmente a atual maré baixa da
obra filosófica de Marcuse. O passo em falso de então dificulta hoje
a tarefa de dissociar retrospectivamente a produção acadêmica daquele momento político, daquele
contexto histórico que o próprio
Marcuse promovera à condição de
critério de verdade. Não é a primeira vez que uma filosofia soçobra contra aquela mesma história
que ela antes elevara a "criterium
veri et falsi".
Mas este veredicto contém um
tom sardônico imerecido. Não faz
jus ao conteúdo de verdade das
análises de Marcuse. Ele captou a
imbricação entre a produtividade
do progresso econômico e a destrutividade de suas consequências
sociais por meio de conceitos invocatórios e totalizantes -isto é,
por meio de conceitos que nos
soam estranhos hoje. Apresentou
seus diagnósticos por meio da
imagem de uma sociedade totalitária fechada porque acreditava ter
que introduzir um vocabulário capaz de abrir olhos embaciados para fenômenos desapercebidos,
apresentando estes mesmos fenômenos a uma contraluz nua e crua.
Tudo isso mudou. Não há leitor
de jornal que se engane sobre
a imbricação entre produtividade e destrutividade. Nossos governos se enredaram numa corrida de
desregulamentação que, na última
década, levou a uma obscena desigualdade social e a dramáticas diferenças de renda, à deterioração
das infra-estruturas culturais, ao
desemprego crescente e à marginalização de uma população miserável cada vez maior. Não precisamos de uma nova linguagem para
reconhecer tudo isso, uma vez que
já não nos imaginamos em uma
"sociedade da abundância".
Também a situação cultural se
modificou. O pós-modernismo
desarmou a auto-imagem da modernidade. Já não se sabe se a concepção democrática de uma sociedade que se auto-regula politicamente pela vontade e pela consciência de seus cidadãos é uma
simpática idéia fora de moda ou
uma perigosa utopia. Em conjunto
com uma antropologia pessimista,
o neoliberalismo nos acostuma
dia após dia a uma situação mundial em que desigualdade e exclusão passam por fatos naturais.
Ao longo dos dois últimos séculos, nossas constituições haviam
incorporado uma perspectiva bastante diversa. Precisaremos talvez
de uma linguagem renovada para
que, contra a mera adequação a
imperativos funcionais, essa visão
normativa das coisas não caia de
vez em esquecimento?
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