São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A pressa e a retórica do confronto

Associated Press - 21.jun.2001
"Fim do jogo" diz a pichação em inglês em janela destrída de um banco durante os protestos contra a reunião do G-8 em Gênova


DEZ TESES SOBRE A GLOBALIZAÇÃO

[por Amartya Sen]

As dúvidas sobre a ordem econômica mundial, que se estendem para bem além dos protestos organizados, precisam ser encaradas à luz da presença simultânea de pobreza abjeta e prosperidade sem precedentes no mundo em que vivemos. Mesmo que o mundo seja incomparavelmente mais rico do que no passado, é também um lugar de privações extraordinárias e atordoante desigualdade.
É preciso que tenhamos em mente esse contraste elementar quando consideramos o ceticismo generalizado quanto à ordem mundial e até mesmo a paciência do público geral com os protestos ditos antiglobalização, a despeito do fato de serem muitas vezes frenéticos, tumultuados e até violentos. Os debates sobre a globalização merecem uma compreensão mais clara das questões subjacentes, que tendem a ficar submersas sob a retórica de confronto, de um lado, e as respostas apressadas, de outro. Alguns pontos gerais merecem atenção especial.
1. Os protestos contra a globalização não tratam da globalização. Os manifestantes classificados como adversários da globalização dificilmente, de maneira geral, merecem esse rótulo, já que seus protestos podem ser considerados como alguns dos eventos mais globalizados do mundo contemporâneo. Os manifestantes em Seattle, Melbourne, Praga, Québec e outras partes não são apenas garotos locais, mas homens e mulheres de todo o mundo que se dirigem aos lugares dos eventos a fim de fazer queixas de alcance global.
2. A globalização não é novidade nem se limita à ocidentalização. Ao longo de milhares de anos, a globalização vem progredindo por meio de viagens, comércio, migração, difusão de influências culturais e disseminação de conhecimento e compreensão (envolvendo por exemplo a ciência e a tecnologia).
As influências se fizeram sentir em diferentes direções. Por exemplo, perto do final do milênio que se encerrou há pouco, a direção desse movimento era em geral do Ocidente para o resto do mundo, mas, no começo do mesmo milênio, a Europa estava absorvendo a ciência e a tecnologia chinesas e a matemática árabe e a indiana. Existe uma herança mundial de interação, e as tendências contemporâneas se enquadram nessa história.
3. A globalização em si não é uma loucura. Ela enriqueceu o mundo científica e culturalmente e além disso beneficiou muitos povos em termos econômicos. A pobreza ubíqua e vidas "cruéis, brutais e curtas" dominavam o mundo não muitos séculos atrás, com apenas alguns bolsões de rara afluência. Para a superação dessa penúria, a tecnologia moderna e as inter-relações econômicas exerceram grande influência. O sofrimento dos pobres em todo o mundo não pode ser revertido enquanto se impedir que eles desfrutem das grandes vantagens da tecnologia contemporânea, da eficiência conhecida do comércio e intercâmbio internacional e dos méritos sociais e relacionados a uma vida em sociedades abertas, de preferência a fechadas. O que é preciso é uma distribuição mais equânime dos frutos da globalização.
4. A questão central, direta ou indiretamente, é a desigualdade. O principal desafio se relaciona à desigualdade, de uma maneira ou de outra, entre os países e dentro deles. As desigualdades relevantes incluem disparidades de afluência, mas também assimetrias descomunais em poder político, econômico e social. Uma questão crucial é como dividir os ganhos potenciais da globalização entre os países ricos e pobres e entre diferentes grupos dentro desses países.
5. A preocupação primária é o nível de desigualdade, não o ritmo quase imperceptível de mudança. Ao alegar que os ricos estão ficando mais ricos e os pobres mais pobres, os críticos da globalização escolhem, com grande frequência, o campo de batalha errado. Ainda que muitas das seções mais pobres da economia mundial se tenham saído mal (por diversos motivos, tanto internos quanto externos), é difícil estabelecer uma tendência clara e geral. Muito depende dos indicadores escolhidos e das variáveis em torno das quais se julga a desigualdade e a pobreza.
Mas esse debate não precisa ser decidido como uma precondição para levar adiante o trabalho quanto à questão central. As preocupações básicas se referem aos níveis maciços de desigualdade e pobreza, e não a um possível aprofundamento dessas situações nos países marginais. Mesmo que os patronos da ordem econômica contemporânea estejam certos ao alegar que os pobres em geral tenham progredido um pouco (o que, na verdade, não é uma tendência uniforme), a necessidade convincente de prestar atenção imediata e concentrada à pobreza chocante e à desigualdade atordoante do mundo não desaparece.
6. A questão não é só determinar se existe algum ganho para todas as partes, mas se a distribuição dos ganhos é justa. Quando a cooperação proporciona ganhos, pode haver diversos arranjos alternativos que beneficiem cada uma das partes envolvidas, em contraste com a ausência de cooperação. O que é necessário, portanto, é perguntar se a distribuição dos ganhos é equânime ou aceitável, e não só se existe ganho para todas as partes (o que pode ser o caso em arranjos alternativos).
Como J.F. Nash -o matemático e especialista em teoria dos jogos- discutiu mais de meio século atrás (em um estudo chamado "O Problema da Barganha", publicado pela "Econometrica" em 1950 e mencionado pela Real Academia Sueca quando lhe foi concedido o Prêmio Nobel de Economia), na presença de ganhos advindos de cooperação a questão central não é determinar se um resultado obtido em conjunto é melhor para todos, se comparado ao resultado da ausência de cooperação (há inúmeras alternativas válidas nesse sentido), mas sim determinar se a divisão dos benefícios auferidos é mais justa.
Se alegarmos, para falar em analogia, que os arranjos de uma família particularmente desigual e sexista são injustos, não é preciso demonstrar que as mulheres se teriam saído comparativamente melhor caso não houvesse famílias, mas sim que a partilha dos benefícios do sistema familiar é um processo altamente desigual e injusto para elas no estágio atual das coisas.
7. O uso da economia de mercado é consistente com diversas condições institucionais diferentes, e elas podem produzir resultados diferentes. A questão central não deveria ser adotar ou não a economia de mercado. Não é possível atingir a prosperidade econômica sem usá-la extensamente. Mas o reconhecimento desse fato, longe de encerrar a discussão, serve apenas para iniciá-la. A economia de mercado pode gerar muitos resultados diferentes, dependendo da maneira como os recursos físicos forem distribuídos, de como os recursos humanos forem desenvolvidos, de que "regras do jogo" estiverem em vigor etc. -e em todas essas esferas o Estado e a sociedade têm papéis, tanto dentro de cada país quanto no mundo. O mercado é uma instituição dentre muitas.
Além da necessidade de diretrizes públicas que protejam os pobres (relacionadas a saúde e educação básicas, geração de empregos, reforma agrária, linhas de crédito, proteções legais, direitos femininos e muitas mais), a distribuição dos benefícios da interação internacional depende igualmente de uma variedade de arranjos globais (entre os quais arranjos comerciais, leis de patentes, iniciativas médicas, intercâmbio educacional, projetos de disseminação tecnológica, diretrizes ecológicas e ambientais etc.).
8.° A atual arquitetura econômica, financeira e política do mundo, herdada do passado (incluindo o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outras instituições), foi em larga medida estabelecida nos anos 40, depois da conferência de Bretton Woods, em 1944. Naquela altura, a maior parte da Ásia e da África vivia ainda sob domínio imperialista, a tolerância quanto à pobreza e a insegurança era muito maior, a idéia dos direitos humanos era ainda muito fraca, o poder das ONGs (organização não-governamentais) ainda não havia surgido, o ambiente não era visto como particularmente importante e a democracia definitivamente não era considerada um direito mundial.
9.° 0Mudanças tanto políticas quanto institucionais 0são necessárias. As instituições internacionais existentes tentaram, com empenho variado, responder às mudanças da conjuntura. O Banco Mundial, sob a condução de James Wolfensohn, revisou suas prioridades. As Nações Unidas, particularmente sob o comando de Kofi Annan, tentaram desempenhar um papel maior, a despeito de suas dificuldades financeiras.
Mas é preciso que haja mais mudanças. De fato, a estrutura de poder que sustenta a arquitetura das instituições em si precisa ser reexaminada à luz da nova realidade política, da qual a profusão de protestos globalizados é apenas uma forma vagamente correta de expressão. O balanço do poder que refletia a situação dos anos 40 também precisa ser reexaminado. Considerem o problema da administração de conflitos, as guerras locais e os gastos com armamentos. Os governos dos países do Terceiro Mundo devem arcar com boa parte da responsabilidade pela chocante continuação da violência e do desperdício, mas o comércio de armas é igualmente encorajado pelas potências mundiais, muitas vezes as maiores fontes de exportação de armas.
De fato, como o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para 1994 indica, não só os cinco maiores exportadores mundiais de armas eram os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mas também respondiam, somados, por 86% das armas exportadas durante o período coberto pelo relatório. Não é difícil explicar a incapacidade dos líderes mundiais para enfrentar os mercadores da morte. As dificuldades encontradas recentemente para obter apoio para um programa conjunto de repressão às armas ilícitas (proposto por Kofi Annan, secretário-geral da ONU) é apenas uma pequena ilustração de um grande obstáculo relacionado ao equilíbrio mundial de poder.
10.°° 000A construção global é a resposta necessária às 000dúvidas globais. Os protestos contra a globalização são eles mesmos parte do processo geral de globalização, ao qual não há alternativa nem um bom motivo para que se procure uma.
Mas, embora tenhamos motivos suficientes para dar apoio à globalização no melhor sentido dessa idéia, há também questões institucionais e de política criticamente importantes, que precisam ser tratadas ao mesmo tempo. Não é fácil dispersar as dúvidas sem tratar seriamente das preocupações básicas que as motivam. Isso, evidentemente, não deveria causar surpresa.


Amartya Sen é diretor do Trinity College da Universidade de Cambridge e ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998. É autor de, entre outros, "Desigualdade Reexaminada" (ed. Record) e "Desenvolvimento como Liberdade" (Companhia das Letras).
Tradução de Paulo Migliacci.




Texto Anterior: Eric Hobsbawm: A falência da democracia
Próximo Texto: + poema - Ferreira Gullar: Rainer Maria Rilke e a morte
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.