|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O homem desconfiado
Histórico
de corrupção
no país sugere ao brasileiro uma crise nas instituições que, na verdade, não existe, diz Fábio Wanderley Reis
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Crises são testes para
as instituições. E o
Brasil assiste a crises
reiteradas, o que tem
um lado bom: a estabilidade institucional se mantém, diferentemente do que se
via no século passado.
O cientista político Fábio
Wanderley Reis, professor
emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, considera,
seguindo esse raciocínio, que
não há uma crise institucional
no Brasil, mas uma crise política. "E mesmo essa crise não há
razão para ver em termos demasiado negativos."
O autor de "Tempo Presente
- do MDB a FHC" (ed. UFMG)
considera que há "um erro de
avaliação" de parte da classe
média diante do governo e das
instituições públicas, visível a
partir da manutenção da força
eleitoral de Lula e do "fracasso"
de movimentos como o Cansei.
Leia a seguir trechos da entrevista que concedeu à Folha:
FOLHA - As instituições brasileiras
estão em crise?
FÁBIO WANDERLEY REIS- Não vejo
crise, pelo menos num sentido
mais sério da palavra, em que a
gente pudesse ver um perigo de
turbulência mais séria, mais
profunda, que significasse algo
como um golpe de Estado ou
coisa parecida.
Temos certamente conflitos,
problemas de corrupção, investigações que envolvem gente
recentemente ligada ao governo, como no caso do julgamento no STF [do caso mensalão],
mas o que estamos presenciando são as instituições em funcionamento.
O fato de que as instituições
enfrentem crises e consigam
processá-las é um fator de fortalecimento das instituições, é
passar por testes.
FOLHA - Como compara o enfrentamento de crises na atual conjuntura e em outros períodos, como o
governo Collor ou a ditadura?
REIS- Na era Collor, houve a
edição inicial de um fenômeno
análogo ao que vemos agora. O
funcionamento das instituições naquela época também foi
adequado.
Isso contrasta com o período
anterior, o período que culmina com a ditadura de 1964 a
1985, em que tivemos uma série de enfrentamentos que sem
dúvida comprometiam as instituições. A diferença por excelência entre as crises pré-85 e
hoje é que havia um enfrentamento entre esquerda e direita
com alcance institucional.
O que estava em jogo, na percepção dos atores decisivos, era
a forma de conformar o processo político-econômico cotidiano, que tipo de Constituição
haveria para o país. Estava em
jogo a ameaça de revolução socialista ou socializante.
FOLHA - O que seria uma ameaça
para as instituições hoje?
REIS - Não vejo ameaça. Há um
quadro de fluidez que tem a ver
com as conseqüências da crise
que se deflagra em 2004 e tem
seu auge em 2005, no primeiro
governo Lula. Ao não redundar
essa crise na inviabilização da
figura de Lula -o lulismo continua forte-, isso teve conseqüências negativas também para os outros partidos de peso.
FOLHA - Criou uma imagem negativa para os partidos?
REIS - E redundou numa crise,
no sentido de uma desorientação. Assim como o PT está numa crise de identidade, de relações complicadas com Lula, o
PSDB tem problemas parecidos: a dificuldade que teve para
definir o candidato à Presidência em 2006, o jogo entre Alckmin e Serra, a campanha melancólica de Alckmin -tendo
de abjurar de posições que o
partido adotava há tempos e
tendo de se afastar da figura de
FHC, a tensão atual entre Aécio
e Serra pela candidatura.
Isso sem falar do PFL, que
perdeu fragorosamente as últimas eleições e sofreu profundas modificações, inclusive
com nome mudado. Temos um
quadro de fluidez que deve envolver uma reestruturação em
nível partidário. Aí temos um
elemento de incerteza importante, mas nada que envolva
risco institucional mais sério.
FOLHA - Há uma crise política, não
institucional?
REIS - E também não há razão
para vê-la em termos demasiado negativos. A figura de Lula
se mantém forte, e isso pode vir
a ser instrumental para essa
reestruturação necessária.
FOLHA - A desconfiança generalizada em relação às instituições se
tornou uma histeria?
REIS - O senador e governador
de Minas Gerais Milton Campos [1900-72] fazia a distinção
entre eleitorado e opinião pública: esta seria apenas parte do
eleitorado, só os setores mais
informados -isto é, da classe
média para cima.
Vemos agora essa dissociação com uma nitidez singular: o
fato de que Lula venha mantendo uma penetração intensa no
eleitorado popular e isso conviva com uma rejeição clara na
classe média e em movimentos
como o Cansei é expressivo
dessa dissociação.
FOLHA - A opinião pública pode estar afetando o funcionamento das
instituições -por exemplo, no rumo do caso do promotor Thales?
REIS - Certamente a opinião
pública sempre tem um peso.
Num caso como esse, a coisa vai
além da opinião pública mobilizada politicamente, afeta as
pessoas de uma maneira mais
convergente, toca também a
faixa popular. A conexão política desse caso é remota.
FOLHA - A indignação contra o corporativismo não teria conexão com
o caso?
REIS - Nesse sentido, temos indícios favoráveis no que refere
ao funcionamento das instituições -apesar de reedições, como essa, de um certo corporativismo, que se manifesta em todos os Poderes.
Ainda que haja idas e vindas,
como nesse caso, as instituições estão funcionando.
FOLHA - Então, o que é preciso mudar para aumentar a credibilidade
das instituições junto da população?
REIS - Há um componente, especialmente no que refere à
corrupção, que é cultural. Temos uma cultura que tende à
complacência com o comportamento à margem das regras.
Há pesquisas internacionais
que mostram reiteradamente
algo bem indicativo disso: os
brasileiros são singularmente
desconfiados em relação às outras pessoas.
Segundo a organização
World Value Surveys, as respostas positivas para "você pode confiar nas outras pessoas?",
que ficam na faixa de 60% nos
países escandinavos, no Brasil
estão em torno de 3%.
É uma disposição de desconfiança, associada à corrupção, a
uma criminalidade que se expande, à instabilidade que marcou a política nacional no século 20. Isso ficou caracterizado
durante a crise que atingiu o
PT, em que se tentava dissociar
"crimes graves" de "crimes sem
importância", como o crime
eleitoral. Como é possível falar
em crimes sem importância?
Só numa cultura realmente
leniente. Para mudar a cultura,
é preciso mudar algumas normas, como na reforma política
em discussão.
FOLHA - Que acha da proposta de
haver uma constituinte para a reforma política?
REIS - É algo inviável. É lamentável que, apesar da retórica de
reforma, a conduta dos responsáveis tenha sido na realidade
avessa à mudança. Mas é preciso lutar pela reforma.
Algumas propostas são importantes: o financiamento público de campanha, pois a riqueza privada interfere no direito de ser votado. Sou favorável ao voto em lista, não há razão para temer oligarquias partidárias dentro da gravidade
dos assuntos em jogo. Não há
por que temer experimentar algumas dessas regras.
FOLHA - Que acha da Proposta de
Emenda Constitucional que dá estabilidade a contratados por indicação
política sem concurso público?
REIS - Sem dúvida, há de parte
dos parlamentares uma insensibilidade em relação à opinião
pública, clara em diversos episódios. Parece claro que estão
dispostos a realizar gastos vistos como inaceitáveis pelas
pessoas informadas, como aumento dos próprios salários.
Mas a opinião pública também pode redundar em conseqüências patológicas.
Há, por exemplo, um movimento em pauta: o voto aberto
ou secreto no Congresso. Não
sei se cabe lutar pelo voto aberto; o eleitor tem o direito garantido de votar na cabine para não
sofrer pressões; com o parlamentar, não é diferente.
FOLHA - O processo do mensalão
no STF é uma caso de pressão da opinião pública?
REIS - É um exemplo de atitude
indesejável. Numa estrutura
institucional em que o órgão
tem de tomar decisões imparciais, pode ser prejudicial a exposição ao público. A Suprema
Corte dos EUA é um bom
exemplo, as sessões são públicas, mas há momentos de discussão fechados.
FOLHA - Qual dos três Poderes é o
mais frágil na atual conjuntura, seja
por pressão externa, seja por pressão dos outros Poderes?
REIS - O Executivo tem um
trunfo especial: a legitimação
trazida pela eleição de Lula
com forte apoio do eleitorado.
O conjunto de regras que regulam as relações resultam em
que às vezes o presidente fique
fragilizado no Congresso, à
mercê do apoio dos partidos.
É isso o que se pretendeu
com a idéia de divisão dos Poderes: um limita o outro.
Mas eles deveriam convergir,
não brigar, o que complica nossa situação.
No Judiciário há problemas
de desmoralização por corporativismo e suspeitas de corrupção. Há interferência do Judiciário nos outros poderes, como se estivesse legislando, por
exemplo no caso dos pequenos
partidos, que inviabilizou a
proposta do Congresso [O STF
derrubou, em dezembro passado, a proposta de criação de
uma votação mínima para que
os partidos tenham direito, entre outros, ao fundo partidário,
o que ameaçaria a existência
dos partidos menores].
Texto Anterior: Após idas e vindas, efetivação de promotor foi suspensa Próximo Texto: Os Dez + Índice
|