São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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Ponto de Fuga

Novo olhar e velhas obras

Setores inteiros da produção artística outrora na sombra surgem ao olhar atual do historiador e de um público mais vasto; tudo é bom, tudo se tornou bom

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Ao desdém com que, havia alguns anos, as criações ditas acadêmicas eram ignoradas se seguiram atenção carinhosa e estudos aprofundados. A mudança se consumou. O museu D'Orsay, instalado numa magnífica estação de trem de Paris, há 21 anos, tornou-se o núcleo internacional mais espetacular dessa reviravolta. Seu acervo recobre o período de 1848 a 1914.
A novidade maior do museu D'Orsay foi misturar, com a mesma evidência, vanguarda e passadismo em arte. Revelou assim redes intrincadas de relações que os recortes grosseiros feitos pela hegemonia moderna impediam de ver. Soube desenvolver uma série de mostras que trouxeram à tona artistas franceses e internacionais de primeira grandeza: Maurice Denis ou Eakins, Böcklin, Mehoffer ao lado de Manet, ou Munch e Mondrian.
A última dessas exposições ocorreu no semestre passado.
Foi consagrada a um grande artista esquecido: Jules Bastien-Lepage (1848-84). Célebre no seu tempo, Bastien-Lepage, entre tantos outros, com o tempo sofreu desprezo. Foi percebido como um falso mestre que diluía seu realismo em clichês de camponeses felizes.
Na verdade, é um notável pintor de expressões inquietas, de almas alucinadas. Em suas paisagens, ricas de verdes admiráveis, inscrevem-se seres humanos num estranho descompasso de atitudes.

Modas
A evolução da história da arte lembra um vasto império que alarga cada vez mais os seus domínios. Desde a recuperação do barroco no fim do século 19 até, mais recente, a da arquitetura historicista e da pintura dita acadêmica, passando pela reconsideração do maneirismo, do art nouveau, do neoclassicismo, da pintura romântica, setores inteiros da produção artística outrora na sombra surgem ao olhar atual do historiador e de um público mais vasto. Tudo é bom, tudo se tornou bom. Os julgamentos exclusivos e gerais, selecionando no passado as correntes capazes de nutrir o gosto moderno, tornam-se cada vez menos eficazes e úteis.
As antigas posições críticas e históricas, de Wölfflin a Francastel, foram marcadas por fortes inflexões formalistas, confessas ou disfarçadas. A elas se enxertou um evolucionismo que selecionava obras em nome do progresso artístico, caminhando na direção dos critérios modernos.

Açougue
Os critérios modernos eram formais e teleológicos, acerados e exclusivos. Fora deles, nenhuma salvação. O progresso para as convicções modernas se satisfazia a si próprio. Proporcionava uma acentuada autonomia à história das formas em relação à história da cultura e punha de lado, no esquecimento (enquanto não-arte ou má arte), tudo aquilo que não lhe servia. No interior da produção artística de uma época, constituía um organismo vivo a partir de alguns artistas apenas.
O resto era carne morta.

Cruzamentos
A curiosidade, o interesse, os estudos particulares, as mudanças de sensibilidade alargaram o campo de investigações e destruíram a rigidez dessas atitudes. A complexidade das obras esquecidas e reconsideradas trouxe a exigência de novos modos de abordagem, específicos, apropriados.
Busca-se agora, na arte, o que a pode ligar -por interação, como agente, como resultado, como função- a outros setores, da cultura, da sensibilidade, da história, do tempo de hoje e do tempo que a engendrou.
Não mais apenas pela distância que as obras tomam com seu passado ou pela virtude que teriam em anunciar um qualquer futuro.


jorgecoli@uol.com.br

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