São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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+ Sociedade

A filha do estrangeiro

Administradora do espólio do criador de "A Peste", Catherine Camus se queixa de viver sob o peso da imagem do pai, um dos principais autores do século 20

MARION VAN RENTERGHEM

Catherine Camus vive na rua Albert Camus. A poucos metros do cemitério onde está enterrado Albert Camus, em Lourmarin, no coração da região de Lubéron [no sudeste da França]. Ao lado do escritório onde, dia após dia, ela se ocupa com os assuntos ligados a Albert Camus. A pouca distância da Isle-sur-la-Sorgue, onde vivia René Char, o amigo íntimo com quem Camus mantinha uma correspondência afetuosa, extratos da qual a ed. Gallimard acaba de publicar ["Correspondance, 1946-1959", 272 págs., 20, R$ 54].
Ela tinha 14 anos naquele dia de 1960 em que um poderoso automóvel Facel Vega saiu repentinamente da rodovia, abandonando à posteridade um escritor já mítico.
Com o dinheiro ganho com o Prêmio Nobel, dois anos antes de sua morte chocante, Camus tinha comprado a pequena casa no vilarejo. Ele próprio a havia decorado para fazer uma surpresa para sua mulher, Francine, e os filhos gêmeos deles, Catherine e Jean. Eles a descobriram pouco antes de sua morte: pronta, com cada móvel em seu devido lugar.
Desde então, praticamente nada mudou. Nem mesmo Catherine, essa silhueta alta e discreta que nos aguarda com ar ausente sob a placa que diz "rua Albert Camus".
Um rosto triste e doce escondido atrás dos óculos. Um perfil que revela a semelhança com um pai demasiado célebre, demasiado presente, demasiado tudo. "Papai invade muito", Catherine reconhece.

Família
Na rua Albert Camus vivem dois cães, seis gatos, Catherine Camus, 62, e seu companheiro, 20 anos mais velho: Robert Gallimard. Editor e amigo de Camus, é claro, que conheceu Catherine ainda no berço e lhe levou, intactas, recordações do escritor que ela não podia ter.
Quanto aos cães e gatos, todos foram recolhidos da rua. É mais um hábito que Catherine herdou de seu pai. "A diferença", ela explica, "é que papai encontrava facilmente alguém para encarregar-se dos animais que recolhia: não se recusava um cachorro oferecido por Camus. Comigo é diferente."
Catherine e Jean não foram informados diretamente da morte de seu pai. Eles a adivinharam pelos olhares, os choros, pelo telefonema seguido pela chegada de uma multidão de pessoas ao apartamento.
Mas ninguém lhes disse o que aconteceu.


Um rosto triste, um perfil que revela a semelhança com um pai demasiado célebre, demasiado presente, demasiado tudo; "papai invade muito", diz Catherine


Sem dúvida acreditando estar fazendo o melhor por eles, evitou-se que fossem ao enterro. Refugiados na casa de amigos no bulevar Montparnasse [em Paris], eles não podiam sair à sacada, devido aos jornalistas.
"Quando seu pai morre e ele é famoso, ninguém pensa que você o perdeu. Aquela pessoa não é seu pai -ele pertence a todo mundo. Minha mãe estava no oeste, arrasada. E a nós, levando-se em conta tudo, não acontecera nada. Então você se vê totalmente sozinha. Órfã de pai desconhecido."
Numa brincadeira terna, Albert Camus apelidara os gêmeos de "a peste e o cólera". Catherine nasceu pouco após a publicação de "A Peste", na fase de plena glória de seu pai e já no meio da tormenta de suas infidelidades conjugais infinitas.
As crianças não sabiam que seu pai era famoso.

Acrobacias
"Eles nos manteve totalmente distantes disso. Era um papai. Jogávamos futebol com ele. Ele era severo, mas muito divertido, e conversava muito conosco. Nós o chamávamos de "Tranqüilizador" -o apelido lhe caía muito bem."
Quando sua mãe morreu, "a peste e o cólera" tinham 34 anos. E se tornaram, de fato, detentores dos direitos morais e patrimoniais sobre a imensa e polimorfa obra de Albert Camus. Jean é advogado, Catherine acabara de se tornar advogada também.
"Era evidente para todo mundo que eu devia me ocupar da obra. Para todo mundo, menos para mim." Já divorciada e mãe de dois filhos, ela abandonou tudo e aderiu à profissão de ter direitos. Ela retifica: "Deveríamos dizer, de preferência: de ter deveres".
Dito isso, ela não fez nada para se desfazer do encargo. Catherine confiou os arquivos à Cidade do Livro de Aix-en-Provence, mas se recusa a delegar a um profissional a vintena de pedidos de todos os tipos que recebe diariamente. Catherine Camus não consegue se afastar de Camus. Desse nó apertado pelos anos de ausência, por uma sombra esmagadora. "É um luto impossível", diz ela, como que se desculpando. "Camus está em toda parte.
Um dia cheguei a encontrar sua foto, como presente, no chocolate em pó Poulain." Então Catherine Camus, sozinha, faz as vezes de várias pessoas. Aos pedidos diversos, ela freqüentemente diz "sim". Ou não. "Se alguém vai arrasar Camus, não vou ajudá-lo. Todo mundo pode cuspir sobre Camus, mas não eu. Eu lhe devo demais."
"Catherine é uma herdeira leal e autorizada", constata Olivier Todd, autor de uma biografia do escritor ["Albert Camus -Uma Vida", ed. Record]. "Ela possui um grande número de textos inéditos, com certeza apaixonantes, que não quis me mostrar na íntegra -entre eles as cartas de Camus a Maria Casarès. Mas não censurou nada.

Diligência
Sozinha, Catherine editou os "Carnets 3" [Cadernos 3, coletânea de escritos de 1951 a 1959] e, sobretudo, "O Primeiro Homem" [no Brasil, pela ed. Nova Fronteira], essa obra-prima que foi encontrada, em estado inacabado, no banco do Facel Vega no dia do acidente.
Camus, que morreu triste e isolado, atacado por intelectuais de esquerda depois da publicação de "O Homem Revoltado" [Record], em 1951, e por ter preferido os seres humanos à história, conheceu uma reabilitação tardia após a queda do Muro de Berlim. A tarefa atual é a reedição de sua obra pela coleção Pléiade. "O boi continua a puxar seu arado", gosta de repetir Catherine.
Desde sua publicação, em 1942, "O Estrangeiro" [Record], de Camus, é o best-seller absoluto da Gallimard, ao lado de "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry: 6,5 milhões de exemplares já vendidos na França (em média 150 mil por ano), os direitos de tradução cedidos a 58 países, com traduções até mesmo em galês, nepalês e tâmil.
Catherine lembra que os direitos autorais (entre 8% e 14% do preço de cada livro) são divididos entre ela e seu irmão. Que o valor patrimonial da obra é estimado e submetido ao imposto sobre a fortuna. Ela deixa seus olhos grandes, destituídos de alegria, se voltarem para outro lado. "As pessoas têm uma idéia preconcebida de como deve ser a filha de Camus. Eu as decepciono, obrigatoriamente.
Eu gostaria muito de pertencer um pouco mais a mim mesma."


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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