São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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A PÁSCOA DA AMÉRICA

WALT WHITMAN, CUJO LIVRO "FOLHAS DE RELVA" COMPLETA 150 ANOS, FOI O PROFETA QUE QUERIA ULTRAPASSAR O DESERTO, DEFINIDOR DE UMA AMÉRICA QUE ANSIAVA PELO DIA, PELA RESSURREIÇÃO, PELA "OUTRA COSTA"

HAROLD BLOOM

Caso o leitor seja norte-americano, cumpre saber que Walt Whitman é o pai e a mãe de sua imaginação mesmo que você, como eu, não tenha escrito um único verso na vida.
Há um bom número de obras literárias que poderiam candidatar-se a escritura secular dos Estados Unidos. Entre elas, estariam "Moby Dick", de [Herman] Melville, "As Aventuras de Huckleberry Finn", de Mark Twain, as duas séries de "Ensaios" e "A Conduta da Vida", de [Ralph Waldo] Emerson. Nenhuma delas, todavia, é tão central quanto a primeira edição de "Folhas de Relva" ["Leaves of Grass"], cujo sesquicentenário comemoramos [em julho passado].
Whitman, o bardo americano, nosso Homero e nosso Milton, abriu um novo caminho para o novo mundo. D.H. Lawrence, alternadamente enfurecido e fascinado por Whitman, viu no predecessor o poeta da Terra do Crepúsculo, compartilhando a litania de Melville sobre "o destino da raça branca". [William] Faulkner, o escritor dominante do século 20 norte-americano, continuou de onde Melville parara, no que hoje se pode ler como uma tetralogia: "Enquanto Eu Agonizava", "O Som e a Fúria", "Luz em Agosto" e "Absalão, Absalão!".
Os genuínos herdeiros domésticos de Whitman incluem "A Terra Devastada", de T. S. Eliot, "A Ponte", de Hart Crane, e "As Auroras do Outono", de Wallace Stevens. No estrangeiro, o catálogo é longo demais para uma compilação rápida: Lawrence, [Federico Garica] Lorca, [Fernando] Pessoa, [César] Vallejo, [Pablo] Neruda, [Jorge Luis] Borges e [Octavio] Paz talvez sejam os mais notáveis.
Walt Whitman foi o oficiante crucial daquilo que, conforme acredito, ainda chamaremos de "religião americana": a fusão momentânea de todas as denominações religiosas num amálgama de Entusiasmo e Gnosticismo que marcou o começo do fim do protestantismo europeu na América do Norte e que teve início no "revival" de Cane Ridge, em 1800. Os batistas do sul, pentecostais, mórmons, adventistas e outras variedades nativas são emanações persistentes do que aconteceu ali.
Os teólogos e profetas da "religião americana" incluem Emerson, Joseph Smith e Horace Bushnell, entre outros. O filósofo William James é seu psicólogo, e Walt Whitman será para todo o sempre seu poeta-profeta a cantar exclusivamente "canções de mim mesmo". Temos agora um Jesus norte-americano e um Espírito Santo norte-americano, e em boa medida banimos Yahweh -exceto quando este sai marchando como Deus Guerreiro, infinitamente esmagando as vinhas da ira.
O feito estético de Whitman ainda não é estimado e entendido como merece. Ele é o maior artista que seu país já produziu. Com efeito, nenhuma outra figura artística comparável surgiu nos últimos 400 anos em todas as Américas do Norte, Central, do Sul ou no Caribe. Seus seis grandes poemas: "Song of Myself", "The Sleepers", "Crossing Brooklyn Ferry" e a tríade elegíaca de "Out of the Cradle Endlessly Rocking", "As I Ebb'd with the Ocean of Life" e "When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd" só têm par no "Paraíso Perdido" de [John] Milton, na fecundidade infinita de Bach, na glória da Capela Sistina de Michelangelo -mestres barrocos do sublime.
Chamar o melhor de Whitman de barroco pode, a princípio, parecer paradoxal para um poeta que professa cantar o "eu espontâneo", mas Whitman não é um improvisador. Sua arte literária reflete o estudo consciencioso de seus precursores na língua inglesa, a despeito de toda a sua ambivalência nacionalista diante da tradição britânica.

Novo testamento
Whitman reentroniza o andrógino primal, "Adão cedo pela manhã". Ele é os nossos Vedas, o nosso Baghavad-Gita, os nossos Sutras e também o nosso Zohar, uma vez que é um pensador esotérico de extraordinária originalidade. Emerson foi o Elias ou o João Batista do Cristo norte-americano de Whitman. Walt não é tão enigmático, indefinível, evasivo e fascinante quanto o Jesus do Evangelho segundo São Marcos?
Whitman publicou por conta própria as "Folhas de Relva" e, de moto próprio, enviou o livro a Emerson, que respondeu ao esperto e atrevido promotor de si mesmo em 21 de julho de 1855: aquela era e, 150 anos depois, ainda é "a mais extraordinária obra de engenho e sabedoria que a América já produziu".
Emerson continuava assim: "Lê-lo é uma felicidade daquelas que só uma grande força pode proporcionar. Felicito-o por seus pensamentos livres e ousados, que me causam grande alegria. Vejo coisas incomparáveis, ditas incomparavelmente bem, como devem ser. Esfreguei meus olhos para estar certo de que esse raio de sol não era uma ilusão; mas a solidez do próprio livro é certeza suficiente. Ele possui os mais altos méritos, isto é, sabe instilar força e coragem". Emerson inventou a "religião americana", Whitman veio encarná-la.
Emerson deu mostra de todo o engenho e sabedoria que tinha ao louvar Whitman por seu engenho e sabedoria, mais que por sua exuberância e espírito democrático. Em sua condição de maior poeta norte-americano, Whitman é o formalista supremo muito embora "poesia formalista" seja uma redundância. Sua arte é feita de nuance, delicadeza, inventividade, conjunções intricadas de som e sentido. Toda forma poética, por mais novidadeira que seja, é necessariamente metafórica: substituição do literal pelo figurado. E nenhum outro poeta torna tão impossível deslindar o literal do figurado quanto Whitman.
Quanto mais profundamente lemos sua obra, tanto mais encontramos sua secreta força alusiva, sua consciência crescente das complexidades da tradição poética, que ele se lança a usurpar. Em sua luta por auto-suficiência, Whitman segue sendo shakespeariano e romântico-elevado, tão "wordsworthiano" quanto o próprio Emerson. O poeta James Wright celebrou "o velho Walt Whitman" menos por sua famosa dialética de "myself", "real me" ou "me myself" do que pela "delicadeza" de sua forma poética.
A alma delicada e incognoscível constituía o grande mistério de Whitman e também de Emerson, que a sintetizou por ambos na fórmula da "alma superior" (over-soul): "A alma mira sempre adiante, criando um mundo à sua frente, deixando outros mundos para trás", ou, mais enigmaticamente, "a alma só reconhece a alma".
O tropo primário de Whitman não é o eu vital ou seu duplo homoerótico, o "mim mesmo", mas a alma quádrupla, a persistente e imemorial litania: Noite, Morte, Mãe, Mar. Essa metáfora antiga e universal, ele a tornou peculiarmente norte-americana ao reafirmar o poder de sua mente poética sobre o universo da morte. Whitman, o Jesus norte-americano, ansiava pelo dia, pela ressurreição, pelo pai, pela linha da costa, e desse anseio criou o poema de nosso clima que James Wright batizou como "ode costeira" (shore ode). As elegias egóticas de Whitman são a resposta norte-americana à "ode crítica" (crisis ode) do romantismo inglês de Wordsworth, a seu poema "Intimations of Immortality", a "Dejection: An Ode", de Coleridge, à "Ode to the West Wind", de Shelley, às grandes odes de Keats.
Whitman é mais obscuro que eles. Para os românticos britânicos, a perda real é compensada pelo ganho imaginativo; para nós, como para Emerson, fazendo eco a Lear, "nada se ganha com nada" ou "nada virá do nada".
Como Elias ou João Batista, o bardo de "Folhas de Relva" também "vai-se embora" para o Deserto, mas este é apenas uma etapa de sua viagem, e o ermo está longe de ser informe: o paradigma dessa nova poesia norte-americana é a Bíblia inglesa da "King James Version", com nuanças de William Tyndale e Miles Coverdale, gênios da tradução cujo estilo sublime só encontra igual em Chaucer, Shakespeare, Milton, Blake, Wordsworth e Whitman. O ápice da arte de Whitman é um Êxodo regido pela metáfora da partida da Ur dos caldeus ou do Egito rumo à Terra Prometida de uma América ainda por descobrir. Por mais que Whitman grite "Kosmos!", não adivinho nele nenhuma consciência cósmica new age. Seus primeiros cadernos contêm as sementes dessa partida, vista como Ressurreição:

"Em vão pregaram-me cravos nas [mãos.
Relembro a crucificação e a
[coroação sangrenta.
Relembro os escárnios e os insultos [brutais
O sepulcro e o linho branco [libertaram-me
Estou vivo em Nova York e San [Francisco,
Volto a trilhar as ruas dois mil [anos depois.
Nem todas as tradições hão de [vitalizar as igrejas
Elas não são vivas, são só [argamassa e tijolo frios,
Eu posso construir uma igual, e tu [também:
Um livro não é um um homem"

Whitman acabou por conquistar até mesmo o velho Henry James, que na juventude publicara uma resenha negativa de "Drum-Taps". Naquela ocasião, o jovem e estouvado Henry James insistira que o público norte-americano rejeitaria Whitman em prol de uma cultura superior. Mais tarde, e mais sábio, o mestre do romance norte-americano pedia que lhe lessem "Lilacs" em voz alta e chorava, como eu choro, diante das magníficas harmonias finais de nosso poema maior:

"Porém, para guardar a um e [todos, recuperá-los da noite,
O canto, o canto deslumbrante do [pássaro pardacento,
E o cântico a acompanhá-lo, eco [em minh'alma despertado,
Com a estrela fúlgida e pendente [de semblante pleno de pesar,
Com os que me tomam a mão [atraídos pelo canto do pássaro,
Camaradas meus, e eu em seu [meio, e para guardar para sempre [sua memória, [pelos mortos a quem tanto amei,
Pela alma a mais suave e sábia de [todos os meus dias e terras [e isso por amor a ele,
Lilás e estrela e pássaro enleados [ao cântico em minh'alma,
Lá em meio aos pinheiros olorosos [e aos cedros em sombra imersos."

Esses tons de órgão, mais que tennysonianos, são o complemento antitético da simplicidade confiante que se abre para nós em 1855:

"Eu me celebro a mim,
E o que eu aceito, tu aceitarás,
Pois cada átomo que a mim [pertence, também pertence a ti.
Eu vagueio e convido minh'alma,
Vagueio e me deito a meu [bel-prazer... contemplando uma [folha de relva estival."

Muito embora Whitman viesse a negá-lo, foi Emerson que tornou possíveis as primeiras "Folhas de Relva". Emerson atribuiu a Whitman a "expansão apalachiana" de nossa literatura. "Sadio como o Sol" foi um dos tributos finais de Whitman a Emerson.
Dentre as anedotas em torno a Whitman, a minha favorita é a de sua última visita a um Emerson já senil. Nosso maior poeta dispôs sua cadeira de modo que pudesse olhar de frente as feições benignas de seu mentor, e ambos ficaram ali em silêncio, Whitman em devaneio amoroso, Emerson na trágica solidão de uma vítima de Alzheimer. Foi o ato final de um grandioso drama de influência ainda em curso na cultura literária americana.


Harold Bloom é professor de literatura na Universidade Yale e autor de, entre outros, "O Cânone Ocidental" (Objetiva).
Tradução de Paulo Henriques Britto e Samuel Titan Jr.


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