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A PÁSCOA DA AMÉRICA
WALT WHITMAN, CUJO LIVRO "FOLHAS DE RELVA" COMPLETA 150 ANOS,
FOI O PROFETA QUE QUERIA ULTRAPASSAR O DESERTO, DEFINIDOR DE UMA AMÉRICA
QUE ANSIAVA PELO DIA, PELA RESSURREIÇÃO, PELA "OUTRA COSTA"
HAROLD BLOOM
Caso o leitor seja norte-americano, cumpre saber que
Walt Whitman é o pai e a
mãe de sua imaginação mesmo que você, como eu, não tenha escrito um único verso na vida.
Há um bom número de obras literárias que poderiam candidatar-se a
escritura secular dos Estados Unidos. Entre elas, estariam "Moby
Dick", de [Herman] Melville, "As
Aventuras de Huckleberry Finn", de
Mark Twain, as duas séries de "Ensaios" e "A Conduta da Vida", de
[Ralph Waldo] Emerson. Nenhuma
delas, todavia, é tão central quanto a
primeira edição de "Folhas de Relva" ["Leaves of Grass"], cujo sesquicentenário comemoramos [em julho passado].
Whitman, o bardo americano,
nosso Homero e nosso Milton, abriu
um novo caminho para o novo
mundo. D.H. Lawrence, alternadamente enfurecido e fascinado por
Whitman, viu no predecessor o poeta da Terra do Crepúsculo, compartilhando a litania de Melville sobre
"o destino da raça branca". [William] Faulkner, o escritor dominante do século 20 norte-americano,
continuou de onde Melville parara,
no que hoje se pode ler como uma
tetralogia: "Enquanto Eu Agonizava", "O Som e a Fúria", "Luz em
Agosto" e "Absalão, Absalão!".
Os genuínos herdeiros domésticos
de Whitman incluem "A Terra Devastada", de T. S. Eliot, "A Ponte", de
Hart Crane, e "As Auroras do Outono", de Wallace Stevens. No estrangeiro, o catálogo é longo demais para uma compilação rápida: Lawrence, [Federico Garica] Lorca, [Fernando] Pessoa, [César] Vallejo, [Pablo] Neruda, [Jorge Luis] Borges e
[Octavio] Paz talvez sejam os mais
notáveis.
Walt Whitman foi o oficiante crucial daquilo que, conforme acredito,
ainda chamaremos de "religião
americana": a fusão momentânea de
todas as denominações religiosas
num amálgama de Entusiasmo e
Gnosticismo que marcou o começo
do fim do protestantismo europeu
na América do Norte e que teve início no "revival" de Cane Ridge, em
1800. Os batistas do sul, pentecostais, mórmons, adventistas e outras
variedades nativas são emanações
persistentes do que aconteceu ali.
Os teólogos e profetas da "religião
americana" incluem Emerson, Joseph Smith e Horace Bushnell, entre
outros. O filósofo William James é
seu psicólogo, e Walt Whitman será
para todo o sempre seu poeta-profeta a cantar exclusivamente "canções
de mim mesmo". Temos agora um
Jesus norte-americano e um Espírito
Santo norte-americano, e em boa
medida banimos Yahweh -exceto
quando este sai marchando como
Deus Guerreiro, infinitamente esmagando as vinhas da ira.
O feito estético de Whitman ainda
não é estimado e entendido como
merece. Ele é o maior artista que seu
país já produziu. Com efeito, nenhuma outra figura artística comparável
surgiu nos últimos 400 anos em todas as Américas do Norte, Central,
do Sul ou no Caribe. Seus seis grandes poemas: "Song of Myself", "The
Sleepers", "Crossing Brooklyn
Ferry" e a tríade elegíaca de "Out of
the Cradle Endlessly Rocking", "As I
Ebb'd with the Ocean of Life" e
"When Lilacs Last in the Dooryard
Bloom'd" só têm par no "Paraíso
Perdido" de [John] Milton, na fecundidade infinita de Bach, na glória
da Capela Sistina de Michelangelo
-mestres barrocos do sublime.
Chamar o melhor de Whitman de
barroco pode, a princípio, parecer
paradoxal para um poeta que professa cantar o "eu espontâneo", mas
Whitman não é um improvisador.
Sua arte literária reflete o estudo
consciencioso de seus precursores
na língua inglesa, a despeito de toda
a sua ambivalência nacionalista
diante da tradição britânica.
Novo testamento
Whitman reentroniza o andrógino
primal, "Adão cedo pela manhã".
Ele é os nossos Vedas, o nosso Baghavad-Gita, os nossos Sutras e também o nosso Zohar, uma vez que é
um pensador esotérico de extraordinária originalidade. Emerson foi o
Elias ou o João Batista do Cristo norte-americano de Whitman. Walt
não é tão enigmático, indefinível,
evasivo e fascinante quanto o Jesus
do Evangelho segundo São Marcos?
Whitman publicou por conta própria as "Folhas de Relva" e, de moto
próprio, enviou o livro a Emerson,
que respondeu ao esperto e atrevido
promotor de si mesmo em 21 de julho de 1855: aquela era e, 150 anos
depois, ainda é "a mais extraordinária obra de engenho e sabedoria que
a América já produziu".
Emerson continuava assim: "Lê-lo
é uma felicidade daquelas que só
uma grande força pode proporcionar. Felicito-o por seus pensamentos livres e ousados, que me causam
grande alegria. Vejo coisas incomparáveis, ditas incomparavelmente
bem, como devem ser. Esfreguei
meus olhos para estar certo de que
esse raio de sol não era uma ilusão;
mas a solidez do próprio livro é certeza suficiente. Ele possui os mais altos méritos, isto é, sabe instilar força
e coragem". Emerson inventou a
"religião americana", Whitman veio
encarná-la.
Emerson deu mostra de todo o engenho e sabedoria que tinha ao louvar Whitman por seu engenho e sabedoria, mais que por sua exuberância e espírito democrático. Em sua
condição de maior poeta norte-americano, Whitman é o formalista
supremo muito embora "poesia formalista" seja uma redundância. Sua
arte é feita de nuance, delicadeza, inventividade, conjunções intricadas
de som e sentido. Toda forma poética, por mais novidadeira que seja, é
necessariamente metafórica: substituição do literal pelo figurado. E nenhum outro poeta torna tão impossível deslindar o literal do figurado
quanto Whitman.
Quanto mais profundamente lemos sua obra, tanto mais encontramos sua secreta força alusiva, sua
consciência crescente das complexidades da tradição poética, que ele se
lança a usurpar. Em sua luta por auto-suficiência, Whitman segue sendo shakespeariano e romântico-elevado, tão "wordsworthiano" quanto
o próprio Emerson. O poeta James
Wright celebrou "o velho Walt
Whitman" menos por sua famosa
dialética de "myself", "real me" ou
"me myself" do que pela "delicadeza" de sua forma poética.
A alma delicada e incognoscível
constituía o grande mistério de
Whitman e também de Emerson,
que a sintetizou por ambos na fórmula da "alma superior" (over-soul): "A alma mira sempre adiante,
criando um mundo à sua frente, deixando outros mundos para trás",
ou, mais enigmaticamente, "a alma
só reconhece a alma".
O tropo primário de Whitman não
é o eu vital ou seu duplo homoerótico, o "mim mesmo", mas a alma
quádrupla, a persistente e imemorial
litania: Noite, Morte, Mãe, Mar. Essa
metáfora antiga e universal, ele a tornou peculiarmente norte-americana
ao reafirmar o poder de sua mente
poética sobre o universo da morte.
Whitman, o Jesus norte-americano,
ansiava pelo dia, pela ressurreição,
pelo pai, pela linha da costa, e desse
anseio criou o poema de nosso clima
que James Wright batizou como
"ode costeira" (shore ode). As elegias egóticas de Whitman são a resposta norte-americana à "ode crítica" (crisis ode) do romantismo inglês de Wordsworth, a seu poema
"Intimations of Immortality", a
"Dejection: An Ode", de Coleridge, à
"Ode to the West Wind", de Shelley,
às grandes odes de Keats.
Whitman é mais obscuro que eles.
Para os românticos britânicos, a perda real é compensada pelo ganho
imaginativo; para nós, como para
Emerson, fazendo eco a Lear, "nada
se ganha com nada" ou "nada virá
do nada".
Como Elias ou João Batista, o bardo de "Folhas de Relva" também
"vai-se embora" para o Deserto, mas
este é apenas uma etapa de sua viagem, e o ermo está longe de ser informe: o paradigma dessa nova poesia norte-americana é a Bíblia inglesa da "King James Version", com
nuanças de William Tyndale e Miles
Coverdale, gênios da tradução cujo
estilo sublime só encontra igual em
Chaucer, Shakespeare, Milton, Blake, Wordsworth e Whitman. O ápice
da arte de Whitman é um Êxodo regido pela metáfora da partida da Ur
dos caldeus ou do Egito rumo à Terra Prometida de uma América ainda
por descobrir. Por mais que Whitman grite "Kosmos!", não adivinho
nele nenhuma consciência cósmica
new age. Seus primeiros cadernos
contêm as sementes dessa partida,
vista como Ressurreição:
"Em vão pregaram-me cravos nas
[mãos.
Relembro a crucificação e a
[coroação sangrenta.
Relembro os escárnios e os insultos
[brutais
O sepulcro e o linho branco
[libertaram-me
Estou vivo em Nova York e San
[Francisco,
Volto a trilhar as ruas dois mil
[anos depois.
Nem todas as tradições hão de
[vitalizar as igrejas
Elas não são vivas, são só
[argamassa e tijolo frios,
Eu posso construir uma igual, e tu
[também:
Um livro não é um um homem"
Whitman acabou por conquistar
até mesmo o velho Henry James,
que na juventude publicara uma resenha negativa de "Drum-Taps".
Naquela ocasião, o jovem e estouvado Henry James insistira que o público norte-americano rejeitaria
Whitman em prol de uma cultura
superior. Mais tarde, e mais sábio, o
mestre do romance norte-americano pedia que lhe lessem "Lilacs" em
voz alta e chorava, como eu choro,
diante das magníficas harmonias finais de nosso poema maior:
"Porém, para guardar a um e
[todos, recuperá-los da noite,
O canto, o canto deslumbrante do
[pássaro pardacento,
E o cântico a acompanhá-lo, eco
[em minh'alma despertado,
Com a estrela fúlgida e pendente
[de semblante pleno de pesar,
Com os que me tomam a mão
[atraídos pelo canto do pássaro,
Camaradas meus, e eu em seu
[meio, e para guardar para sempre
[sua memória,
[pelos mortos a quem tanto amei,
Pela alma a mais suave e sábia de
[todos os meus dias e terras
[e isso por amor a ele,
Lilás e estrela e pássaro enleados
[ao cântico em minh'alma,
Lá em meio aos pinheiros olorosos
[e aos cedros em sombra imersos."
Esses tons de órgão, mais que
tennysonianos, são o complemento
antitético da simplicidade confiante
que se abre para nós em 1855:
"Eu me celebro a mim,
E o que eu aceito, tu aceitarás,
Pois cada átomo que a mim
[pertence, também pertence a ti.
Eu vagueio e convido minh'alma,
Vagueio e me deito a meu
[bel-prazer... contemplando uma
[folha de relva estival."
Muito embora Whitman viesse a
negá-lo, foi Emerson que tornou
possíveis as primeiras "Folhas de
Relva". Emerson atribuiu a Whitman a "expansão apalachiana" de
nossa literatura. "Sadio como o Sol"
foi um dos tributos finais de Whitman a Emerson.
Dentre as anedotas em torno a
Whitman, a minha favorita é a de
sua última visita a um Emerson já senil. Nosso maior poeta dispôs sua
cadeira de modo que pudesse olhar
de frente as feições benignas de seu
mentor, e ambos ficaram ali em silêncio, Whitman em devaneio amoroso, Emerson na trágica solidão de
uma vítima de Alzheimer. Foi o ato
final de um grandioso drama de influência ainda em curso na cultura
literária americana.
Harold Bloom é professor de literatura na
Universidade Yale e autor de, entre outros,
"O Cânone Ocidental" (Objetiva).
Tradução de Paulo Henriques Britto e Samuel Titan Jr.
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