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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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"Diálogos com Iberê Camargo" reúne textos de críticos como Ferreira Gullar e Lorenzo Mammì, que situam o pintor no contexto dos movimentos artísticos de sua época

Anti-heróico, circunspecto e realista

Luiz Armando Bagolin
especial para a Folha

Embora seja um livro escrito a muitas mãos, recolha de falas em seminário organizado no final do ano passado em Porto Alegre, "Diálogos com Iberê Camargo" insiste em afirmar, o que parece ser o seu principal objetivo, o resgate da pintura de Iberê dos comentários que açodadamente a restringiram ao isolamento em relação às ocorrências artísticas que lhe foram coevas bem como à circulação puramente expressionista, conforme a história da arte vigente. Não por acaso, Sônia Salzstein, também responsável pela organização, apresenta em seu ensaio as razões de uma dupla "negatividade". Em primeiro lugar, é negada a existência de uma "história da arte brasileira", entendida pela autora como "ramificação subsidiária" de um aparato ideológico que sempre visou a "internacionalização da modernidade européia" entre nós. Por isso, Salzstein se propõe, circunspecta, a analisar a teia de significações que se trama a partir da própria obra de Iberê, permanentemente em devir, porquanto capaz de flectir-se em acontecimentos presentes. Em segundo lugar, há a circunspecção no próprio pintor, que, para a autora, o posicionaria entre a defesa de "métier", alojando-o inconteste na tradição (a partir de De Chirico e outros), e a redução fenomenológica da arte, crescente desde o final dos anos 50, como ação simples e pura; essa posição incerta reatualizaria incessantemente a crise em Iberê, interna, mas não romântica nem metafórica como tábula rasa de alguma vanguarda, mas indicial, capaz de atirar a pintura ao "informe" e à "anomia", legando a sua matéria "à própria sorte" -assim representando uma espécie de paroxismo que torna essa pintura anti-heróica por excelência, mas lugar de inesperado realismo. Manter-se pintor, negando a pintura ou vice-versa: essa é a dialética que se apresentaria para Iberê Camargo, não o "moderno tardio", alijado nas representações "de campanha", mas o Iberê contemporâneo, vinculado aos acontecimentos mais radicais, desde que indignado, nas artes de seu presente. No que lhe é diverso, Iberê se associa ao experimentalismo que grassou na arte brasileira a partir do conclave concreto e neoconcreto em geral, de Mira Schendel, em particular, conforme propõe Salzstein, à medida que sua pintura lhe agencia todo o corpo e também o nosso, invocando-se pública -mesmo que referisse a um sujeito arredio ao contato, como depõe o próprio artista em muitos textos. Não por acaso, também essas articulações procuram se reafirmar no interior da coletânea em diálogo entre a organizadora e o artista José Resende, que é, no todo, interessante, pois contrapõe Salzstein, insistente, a Resende, reticente, na tarefa de legitimar a contemporaneidade de Iberê Camargo diante das teses, no mais das vezes, estereotipadas, que o isolam num "auto-exílio" expressionista, como já referido. É exatamente por isso que chama a atenção perceber, ao lado dessa tarefa (pelo menos como impressão deste leitor), o comparecimento de textos que, não obstante referendarem autores importantes em nosso meio cultural, repropõem aquelas teses, improcedentes como discursos "sobre" ou "com" as obras, como se queira, pois demasiadamente sumarizados diante do pensamento que subjaz na própria pintura iberiana. Estranha-se, por exemplo, o ensaio de Paulo Venancio Filho, que insiste na chave romântica e na explicitação da obra a partir do vivido, o que é impertinente, pois torna a pintura "índice de um impulso individualista", revoltosa, na via, possivelmente, da categoria expressionista worringeriana, o que deveria se explicitar.

Duplo isolamento
Bem melhor o ensaio de Paulo Duarte, que explicita o "pôr-se-a-obra-em-face-da-verdade" heideggeriano; entretanto novamente produz-se efeito de duplo isolamento, pois um "Iberê-ilha" é arrostado somente por um "Goeldi-ilha", enquanto aquele inaugura pintura combativa em que espessidão se toma por efeito não-sensacional, mas sentimental: a angústia. Esquecem-se ainda os colegas que os efeitos empastados desregrando as formas, ora justapondo-as, ora empilhando-as na contrafação à representação, não são pela primeira vez "atacados" por Iberê, mas já se apresentam na arte brasileira, entre outros, nos Timóteos da Costa.
É, por outro lado, importante a contribuição de Lorenzo Mammì, que apresenta em seu ensaio ilação sobre o possível contato entre Iberê e a "escola romana" da década de 30, que aglutinou artistas como Scipione, Mafai, Basaldella, entre outros. Tendo em vista que Iberê Camargo esteve na Itália em fins da década de 40, muito provavelmente, propõe Mammì, o artista brasileiro poderia ter "instintivamente" entrado em contato com aquele expressionismo regenerado, ou seja, o da consciência da importância do "métier" a serviço da liberdade de expressão plástica.
Por fim, é preciosa a descrição de Iberê pintando e depois, olhando-se no espelho, feita por Carlos Vergara no início de seu depoimento, assim como a narrativa de Ferreira Gullar (de 1995) acrescentada a título de introdução a esta edição, que, me parece, será fundamental para a atual produção da crítica sobre arte brasileira.


Luiz Armando Bagolin é professor de estética na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e de história da arte na Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG).

Diálogos com Iberê Camargo
208 págs., R$ 29,00
Sônia Salzstein (org.). Fundação Iberê Camargo/ Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/3218-1444).


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