São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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Peter Burke

Uma história social do lixo

Tudo tem uma história. O clima, os sonhos, ideais de limpeza e formas de sociabilidade, por exemplo, tudo muda ao longo dos séculos, e essas mudanças podem ser mais bem compreendidas quando as relacionamos com o que acontecia na mesma época. Dois importantes historiadores do século 20, Gilberto Freyre e Fernand Braudel, dedicaram grande energia ao estudo da história social dos alimentos, das roupas e dos móveis, procurando o que Freyre chamou de "pormenores significativos". Levando sua discussão um pouco mais adiante, eu gostaria de afirmar que até o lixo tem uma história. Em primeiro lugar, o que é considerado lixo varia entre uma cultura e outra. O lixo, assim como a sujeira, é simplesmente material no lugar errado. O que se considera lixo é uma espécie de indicador que revela os valores de determinada cultura. Na China tradicional, por exemplo, todo pedaço de papel com algo escrito era considerado valioso. Não deveria ser jogado fora, mas podia ser queimado com ritual e respeito.

"Antiguidades"
Os objetos variáveis que são considerados lixo oferecem valiosos indícios das mudanças gerais em uma cultura, como afirmou Michael Thompson em "Rubbish Theory" (1979), um livro com o subtítulo de "A Criação e Destruição de Valor". Na Grã-Bretanha, por exemplo, objetos domésticos das décadas de 1920 e 1930 geralmente foram desprezados como "porcarias" na década de 50, mas passaram a ser colecionados com crescente entusiasmo como "antiguidades" na década de 80. "Minha tia teve um mas jogou fora" era o nome de uma loja de móveis usados em Cambridge nos anos 90 (hoje desapareceu, supostamente vitimada pelas mudanças na moda que explorava). Um futuro antropólogo poderia escrever páginas interessantes sobre o aumento do entusiasmo pela coleção de selos na Europa e nos Estados Unidos no século 20. Outra maneira de escrever a história do lixo seria examinar a mudança dos procedimentos para descartá-lo, ou seja, a história do lixo ou dos resíduos em seu ambiente, especialmente o ambiente urbano, onde o lixo muitas vezes é demasiadamente visível, com sacos se acumulando nas ruas em consequência de greves de lixeiros em Londres, Nápoles, Paris e outros lugares. Hoje a escala do problema é impressionante, para não dizer alarmante: 13 mil toneladas de lixo são removidas diariamente das ruas de São Paulo. O tratamento do lixo tem sido um problema urbano há muito tempo, embora fosse um problema de escala relativamente pequena no passado, porque as cidades também eram relativamente pequenas em escala. Em 1500, por exemplo, é improvável que houvesse mais de quatro cidades européias com uma população de 100 mil habitantes (Veneza, Paris, Nápoles e Istambul). Nessa época, os procedimentos para a remoção do lixo eram relativamente informais, como haviam sido na Antiguidade -atirava-se um tal volume de lixo nas ruas das cidades antigas que seu nível se elevou gradativamente, de modo que hoje os arqueólogos podem escavar através dessas camadas e descobrir o que as pessoas comiam em diferentes séculos. Há muito existem regulamentações municipais referentes ao lixo, mas até o final do século 19 foram relativamente desprezadas. Por exemplo, em diversas cidades européias, de Edimburgo a Faenza, os moradores tinham permissão para esvaziar baldes de água suja na rua, desde que antes gritassem pela janela para dar aos passantes uma oportunidade de se abrigar. Em Faenza eles deviam gritar "guarda, guarda" e, em Edimburgo, curiosamente, "gardy loo", uma corruptela do francês "gardez l'eau", língua que a maioria dos escoceses desconhecia, apesar da tradicional aliança entre os dois países. Os regulamentos municipais gradualmente se tornaram mais severos, na medida em que as cidades cresciam e a densidade da população aumentava. As pessoas que praticavam ofícios "sujos", como açougueiros e peixeiros, eram empurradas para as bordas da cidade, juntamente com os negócios ruidosos (ferreiros, por exemplo) e malcheirosos (fabricantes de velas). Na Itália, uma das partes mais urbanizadas da Europa no final da Idade Média, o controle do lixo era levado especialmente a sério. Em Siena, por exemplo, a municipalidade contratava porcos para manter as ruas mais ou menos limpas, enquanto em Bolonha a disposição do lixo foi regulamentada por uma série de leis, desde o século 13 até o 16. Em outros lugares, o antigo regime urbano muitas vezes lidou com o lixo em base ocasional, e não regular, isto é, simplesmente deixava que se acumulasse até que um evento incomum exigisse uma ação.


Em diversas cidades européias, de Edimburgo a Faenza, os moradores tinham permissão para esvaziar baldes de água suja na rua, desde que antes gritassem pela janela para dar aos passantes uma oportunidade de se abrigar


Ameaça à segurança
Na cidade relativamente pequena de Angers, por exemplo, pouco antes de o rei Luís 11 da França fazer uma visita oficial foram retiradas nada menos que 109 carroças de dejetos, o que nos permite imaginar a aparência do lugar antes disso. Em Bordeaux, as pilhas de refugos fora dos portões da cidade eram tão altas que foram consideradas um perigo para a saúde e a segurança, já que ofereciam uma maneira de escalar as muralhas.
Segundo Lewis Mumford, que passou a vida estudando as cidades, os padrões de higiene urbana, incluindo a coleta de lixo, eram relativamente altos na Idade Média, declinando depois do ano de 1500 e ainda mais rapidamente após 1800, com a ascensão das primeiras cidades industriais. Em Manchester, no início do século 19, por exemplo, uma aldeia que havia rapidamente se expandido numa cidade fabril, não havia nenhuma orientação para dispor dos dejetos humanos ou industriais.
A Manchester do século 19 é um símbolo adequado do capitalismo desregulamentado, da necessidade de lucrar sem se importar com as consequências. No entanto algumas pessoas perceberam que até o lixo poderia gerar lucros. Na Roma do século 18 os proprietários de lojas pagavam pelo serviço de limpeza das ruas, e o empresário recebia dos camponeses para os quais vendia dejetos humanos e animais como adubo.
Na Paris no século 19, uma companhia limitada, a Compagnie Parisienne des Vidanges, executava um serviço semelhante. Nas fábricas de carros de Detroit, em meados do século 20, a empresa coletava o papel em que os trabalhadores embrulhavam seus sanduíches, já que tanto lixo desse tipo se acumulava diariamente na fábrica que se tornava rentável vendê-lo para reciclagem.
Algumas idéias que consideramos claramente modernas e inspiradas pela preocupação com o ambiente têm uma história mais longa e um motivo diferente. A idéia de colocar três recipientes na rua para conter diferentes tipos de lixo foi apresentada em Paris em 1767 e novamente em Nova York em 1895. A idéia não foi adotada, mas comercialmente tinha sentido. Afinal, lixo é simplesmente material no lugar errado.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (ed. Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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