São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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Ensaios reunidos em "Ética e Estética" discutem as visões apocalípticas sobre o declínio da cultura moderna

Prudência da filosofia

Franklin Leopoldo e Silva
especial para a Folha

Ética e Estética": tema persistentemente oportuno e portador de uma inquietação presente no pensamento, se entendemos que a interdição dos poetas na cidade de Platão e a afirmação adorniana da impossibilidade da poesia depois de Auschwitz não desmentem a intimidade entre as idéias do Bem e do Belo nem a resistência da palavra ao horror e à violência. Essa dupla face da implicação recíproca já deveria ser suficiente para nos indicar que não se trata de relação entre valores abstratos, mas de referência mútua atuante na constituição e compreensão de nossa experiência de realidade. Os ensaios reunidos na revista parecem inspirados por esse traço comum: a arte nos abre dimensões além da realidade para fortalecer nossos laços com a realidade, e o imaginário abre instâncias de compromisso insuspeitadas no nosso trato habitual com as coisas e os outros. Talvez seja essa a causa de encontrarmos em todos os textos cruzamentos entre a particularidade da análise e um horizonte de universalidade que nos induzem a observar, nas imbricações históricas e diferenciadas do ético e do estético, reiterações de um interesse originário que as obras e as teorias renovam inesgotavelmente. Não seria essa a forma mais autêntica de procurar nessas percepções de retorno ao mundo que são as obras de arte os modos de identificação profunda de nossa realidade? Seja na estilização do mundo pelo critério da aparência, que Nietzsche teria encontrado entre os gregos; seja na finalidade aberta que nos faz atualmente valorizar a produção artística na sua incompletude constitutiva; seja a consideração do imperativo da subjetividade como indissociável do fazer artístico; seja a inerência da liberdade à parte como acontecimento em que a verdade se faz presença; seja o advento da obra como a ocasião moral de avaliarmos nossas recusas de perceber o mundo; seja a responsabilidade, que pesa sobre nós, contemporâneos de tantas rupturas reais e ilusórias, pela compreensão da atualidade de nossa emoção; esses, dentre outros temas tratados nos ensaios que compõem a revista, nos convidam, antes de tudo, a refletir cuidadosamente acerca do destino da modernidade. E o que ressalta do conjunto dos textos, se nos for permitida uma hipótese da unidade relativa a essa pluralidade, é uma certa recomendação de prudência na consideração da síndrome apocalíptica que estaria na base de muitas avaliações da história e da cultura contemporâneas. Afirmações incisivas acerca da morte do sujeito, da superação da arte, da falência da capacidade de recepção das produções do imaginário, do desaparecimento de uma consciência de inserção cultural pela abstração da memória, da dissolução de todos os cânones podem muito bem não se referirem a um realismo nostálgico que identificaria as insuficiências da nossa época.


Somente de uma posição ética pode nascer uma perspectiva de resistência cultural


Orgulho mal disfarçado
Podem testemunhar, pelo contrário, algo como um sentimento mal disfarçado de orgulho pelo caráter destruidor do presente, por vezes nítido na exacerbação das rupturas e no enaltecimento de uma busca selvagem de formas inéditas de representação. Talvez uma consideração menos presunçosa da originalidade do nosso presente revelasse muito mais transformações do que invenções radicais; e talvez a pretensão destruidora subjacente à exacerbação dos rompimentos indique menos a consciência da originalidade do que a incapacidade de estarmos à altura de uma atualidade que estamos ainda longe de compreender e, assim, de figurar.
Essa questão é importante porque a consciência que uma "época" tem de si mesma estabelece os fundamentos éticos para a constituição da imagem que faz de si mesma: como os sujeitos podem figurar e narrar aquilo que de fato os constitui e revela a eles mesmos a situação histórica vivida.
Dessa maneira, se o kitsch, a publicidade, a massificação e o consumismo podem ser vistos como restrições da subjetividade e bastardia da representação, são por outro lado manifestações reveladoras de características intrínsecas à nossa cultura. Se podemos ver aí o belo degradado, deveríamos assumir a responsabilidade por essa degradação porque somente de uma posição ética pode nascer uma perspectiva de resistência cultural. Contribuir para que isso se efetive está certamente entre os grandes méritos desses ensaios.
Se a arte moderna se caracteriza pela exploração ilimitada de possibilidades, se é verdade que o preceitualismo é coisa do passado, então a responsabilidade cresce com a dificuldade e a multiplicidade de experiências potencializa o risco inerente à escolha. Talvez não se possa viver indefinidamente o "fim de uma era" como a suspensão de todos os projetos, pois até mesmo esse término é uma experiência que, como todas as outras, deve ser, ao menos tentativamente, compreendida, criticada e transcendida. Dessa tarefa o artista, o crítico e o teórico não podem se eximir. O juízo, como atribuição de significações e valores éticos, estéticos e políticos às práticas humanas é a efetuação da liberdade responsável. O quadro que essa coletânea de ensaios nos oferece esboça uma oportunidade para esse trabalho, a partir dos diversos assuntos e perspectivas que são objetos de discussão.

Franklin Leopoldo e Silva é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "Bergson -Intuição e Discurso Filosófico" (ed. Loyola).


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