São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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PONTO DE FUGA

Sons antigos

Jorge Coli
especial para a Folha

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sentia, na palavra cantada, uma língua una e indissociável. É fácil comprovar: o mesmo texto, posto em música por dois compositores diferentes, não "diz" a mesma coisa. A fusão entre verbo e música é misteriosa e resiste bastante à penetração analítica. Ainda que transfigurada pela música, a palavra, no entanto, guarda uma coerência de significações determinadas pela razão. O texto conduz o canto a sentidos que são claramente compreendidos pelo ouvinte. Os compositores do período barroco sabiam disso e, atentos aos poderes emotivos das artes, conceberam um modo de exprimir certos sentimentos que escapam à racionalidade dos vocábulos. Levaram a voz para além do léxico. Com o vocalise, ela deixa de articular sílabas, de formar significações, manifestando, sem intermediário, fúria, amor, loucura. Entregue a si mesma, a expressão vocal embriaga-se de música para encarnar as grandes paixões da alma.
Uma gravação brasileira, histórica, acaba de ser reeditada em CD (Eldorado), trazendo obras do século 18. Ela contém o "Recitativo e Ária", de um anônimo autor baiano, que foi descoberto por Régis Duprat, e a cantata "Mariposa", do peruano Orejon y Aparicio (1705-1765). O disco original, realizado em 1965, com o soprano Marília Siegl, sob a regência de Olivier Toni, guardou, intactos, seus poderes emotivos. As duas admiráveis composições, no jogo entre palavra e não-palavra, entre sentido e sentimento, exploram, a fundo, as ambiguidades e paradoxos da música que se torna alma e discurso.
Transes - "Mariposa", de Orejon y Aparicio, evoca as "asas da fé" que se queimam, com sofrimentos, na luz divina: os vocalises tornam-se então clamores em que a dor, extática, mescla-se ao prazer.
A composição do anônimo baiano é uma "laudatória", que celebra um alto funcionário da coroa portuguesa, qualificado ali com os epítetos de "herói, egrégio, douto, peregrino". No longo recitativo, a voz não cessa de dizer-se incapaz de louvar tão ilustre personagem. Atenta, a música, por meio das modulações, da orquestração, comenta cada passo do texto, fazendo-se heróica ou grave, imitando, com pizicatos, a lira de Anfião e de Orfeu. O recitativo conclui que a voz deve calar-se. Mas, na ária, há uma pirueta admirável: mesmo que o canto seja fraco e indigno, o afeto se agiganta em contato com o objeto a ser louvado. Como se exprime esse afeto? Pelas palavras? Não: pelos vocalises. A voz, que se dizia impotente, então parte em extraordinários malabarismos vocais que põem à prova todo cantor. Não é mais o canto, em que se mistura música e poesia, que exprime a grandeza: sem palavras, ele é afeto, sentimento e, portanto, não apenas pode, mas deve, mostrar-se em seu esplendor.
Teclas - Ponteio é um termo ligado à viola caipira que entrou para o mundo dos recitais e salas de concertos. Evoca preludiar, dedilhar. Camargo Guarnieri (1907-1993) denominou, com ele, um gênero dentro de sua música: de 1931 a 1959 compôs 50 ponteios para piano. São peças breves, que concentram, em cada uma, forma perfeita e inspiração incandescente. É um momento maior dentro da escrita para piano do século 20.
Ressurreição - Camargo Guarnieri nunca se entregou aos achados felizes, às melodias sedutoras, à insistência nos ritmos dolentes, como fazia Villa-Lobos. Enxuto, ele constrói em concisão que exige respeito pelo rigor. Impõe ao pianista, por isso mesmo, uma leitura muito estrita, mas carregada de espessura emotiva. É como se o fundamento romântico, de que essa música é feita, buscasse limitar-se para aumentar sua intensidade.
Os 50 "Ponteios" de Camargo Guarnieri haviam sido gravados em vinil, no ano de 1979. Essa versão reaparece agora num álbum de dois CDs, publicados pela Funarte. É imperativo ouvi-los, reouvi-los. Intérprete máxima de Guarnieri, Laís de Souza Brasil, com sua sonoridade sensual e encorpada, faz fluir como ninguém a contenção pulsante dessa música.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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