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PONTO DE FUGA
Sons antigos
Jorge Coli
especial para a Folha
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sentia, na palavra
cantada, uma língua una e indissociável. É fácil comprovar: o mesmo texto, posto em música por dois compositores diferentes, não "diz" a mesma coisa. A fusão
entre verbo e música é misteriosa e resiste bastante à penetração analítica. Ainda que transfigurada pela música, a palavra, no entanto, guarda uma coerência de significações determinadas pela razão. O texto conduz o
canto a sentidos que são claramente compreendidos
pelo ouvinte. Os compositores do período barroco sabiam disso e, atentos aos poderes emotivos das artes,
conceberam um modo de exprimir certos sentimentos
que escapam à racionalidade dos vocábulos. Levaram a
voz para além do léxico. Com o vocalise, ela deixa de articular sílabas, de formar significações, manifestando,
sem intermediário, fúria, amor, loucura. Entregue a si
mesma, a expressão vocal embriaga-se de música para
encarnar as grandes paixões da alma.
Uma gravação brasileira, histórica, acaba de ser reeditada em CD (Eldorado), trazendo obras do século 18.
Ela contém o "Recitativo e Ária", de um anônimo autor
baiano, que foi descoberto por Régis Duprat, e a cantata
"Mariposa", do peruano Orejon y Aparicio (1705-1765).
O disco original, realizado em 1965, com o soprano Marília Siegl, sob a regência de Olivier Toni, guardou, intactos, seus poderes emotivos. As duas admiráveis
composições, no jogo entre palavra e não-palavra, entre
sentido e sentimento, exploram, a fundo, as ambiguidades e paradoxos da música que se torna alma e discurso.
Transes - "Mariposa", de Orejon y Aparicio, evoca as
"asas da fé" que se queimam, com sofrimentos, na luz
divina: os vocalises tornam-se então clamores em que a
dor, extática, mescla-se ao prazer.
A composição do anônimo baiano é uma "laudatória", que celebra um alto funcionário da coroa portuguesa, qualificado ali com os epítetos de "herói, egrégio,
douto, peregrino". No longo recitativo, a voz não cessa
de dizer-se incapaz de louvar tão ilustre personagem.
Atenta, a música, por meio das modulações, da orquestração, comenta cada passo do texto, fazendo-se heróica ou grave, imitando, com pizicatos, a lira de Anfião e
de Orfeu. O recitativo conclui que a voz deve calar-se.
Mas, na ária, há uma pirueta admirável: mesmo que o
canto seja fraco e indigno, o afeto se agiganta em contato com o objeto a ser louvado. Como se exprime esse
afeto? Pelas palavras? Não: pelos vocalises. A voz, que se
dizia impotente, então parte em extraordinários malabarismos vocais que põem à prova todo cantor. Não é
mais o canto, em que se mistura música e poesia, que
exprime a grandeza: sem palavras, ele é afeto, sentimento e, portanto, não apenas pode, mas deve, mostrar-se
em seu esplendor.
Teclas - Ponteio é um termo ligado à viola caipira que
entrou para o mundo dos recitais e salas de concertos.
Evoca preludiar, dedilhar. Camargo Guarnieri (1907-1993) denominou, com ele, um gênero dentro de sua
música: de 1931 a 1959 compôs 50 ponteios para piano.
São peças breves, que concentram, em cada uma, forma
perfeita e inspiração incandescente. É um momento
maior dentro da escrita para piano do século 20.
Ressurreição - Camargo Guarnieri nunca se entregou
aos achados felizes, às melodias sedutoras, à insistência
nos ritmos dolentes, como fazia Villa-Lobos. Enxuto,
ele constrói em concisão que exige respeito pelo rigor.
Impõe ao pianista, por isso mesmo, uma leitura muito
estrita, mas carregada de espessura emotiva. É como se
o fundamento romântico, de que essa música é feita,
buscasse limitar-se para aumentar sua intensidade.
Os 50 "Ponteios" de Camargo Guarnieri haviam sido
gravados em vinil, no ano de 1979. Essa versão reaparece agora num álbum de dois CDs, publicados pela Funarte. É imperativo ouvi-los, reouvi-los. Intérprete máxima de Guarnieri, Laís de Souza Brasil, com sua sonoridade sensual e encorpada, faz fluir como ninguém a
contenção pulsante dessa música.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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