São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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Milagre de concreto

Talento excepcional de Niemeyer mantém arquitetura brasileira aprisionada no modernismo e incapaz de formular questões atuais

OTAVIO LEONÍDIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

N o fim de sua vida, em 1954, levei Oswald de Andrade à segunda Bienal. Era o Ibirapuera de Niemeyer, da oficialização definitiva da arquitetura e da arte modernas que daria Brasília. Estávamos naquela tarde praticamente sós, sob as arrojadas estruturas de concreto e cercados de arte abstrata. Oswald sentia-se como um dos principais autores daquela conquista. Ele chorou. Era como se tivesse vencido uma longa batalha" (carta de Rudá de Andrade a Antonio Candido, 9/8/1970).
O extraordinário e imprevisto sucesso da chamada "arquitetura moderna brasileira" vem mexendo com corações e mentes de brasileiros há mais de meio século, e por razões não muito difíceis de compreender.
O compromisso do movimento modernista com o programa da "brasilidade" -tacitamente firmado em meados da década de 1920- havia sido um grande achado, mas a verdade é que, na prática, não resolvera absolutamente os problemas modernistas. Ser, a um só tempo, moderno e genuinamente brasileiro era um programa oportuno; restava, no entanto, definir como realizar esse programa, e era justamente aí que a realidade estética mostrava toda sua capacidade de resistência: contrariamente ao esperado, os meios pelos quais o "escrever brasileiro" se concretizaria pareciam, cada vez mais, indecifráveis.
Tomado por um crescente sentimento de fracasso, Mário de Andrade chegava ao fim da vida duvidando do valor de sua obra, desconfiando de seu passado. Mesmo "Macunaíma" lhe parecia uma obra "ratada", "a obra-prima que não ficou obra-prima".
Contudo, se o desejo de "escrever brasileiro" se mostrava cada vez mais inalcançável, o mesmo não ocorria com a inusitada experiência de projetar e construir brasileiro. E não éramos nós, brasileiros, que afirmávamos isso: era o mundo -as nações industrializadas, a cujo concerto o Brasil, pela primeiríssima vez, era instado a participar na qualidade de convidado de honra. Nossas credenciais: a arquitetura moderna brasileira, a arquitetura celebrada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o qual, já em 1943, por meio da exposição Brazil Builds, abria as portas do cenário internacional à "inovadora" arquitetura de Oscar Niemeyer e companhia.

Obra única
A arquitetura de Niemeyer e companhia? Eis uma questão que, não por acaso, ocupa a atenção de observadores há meio século. Segundo a interpretação de um dos mais influentes críticos e historiadores da arquitetura moderna, Sigfried Giedion, a arquitetura moderna brasileira não era obra de um ou outro expoente (Niemeyer incluído), uma vez que, em suas palavras, "se certas características são particularmente visíveis na obra de certas individualidades excepcionais, elas não estão todavia ausentes do nível médio da produção arquitetônica, algo que não se verifica na maior parte dos países".
Se, de fato, era assim, como então justificar não apenas o evidente protagonismo (precocemente) alcançado por Niemeyer -único arquiteto brasileiro verdadeiramente celebrado nacional e, sobretudo, internacionalmente? E ainda: como negar a evidência de que a sua é uma obra única, dotada de uma assinatura inconfundível e que não foi capaz de produzir nenhuma descendência direta (à exceção dos incorrigíveis niemeyerianos fracassados)? Surpreendentemente ou não, a resposta mais contundente a ambas as perguntas foi dada pelo grande campeão da arquitetura moderna brasileira, Lucio Costa.
Foi Costa quem, em entrevista concedida à revista "Pampulha" (1979), não obstante seu próprio trabalho de construção narrativa de uma "arquitetura moderna brasileira", afirmou sem reservas: "O movimento da arquitetura dita brasileira contemporânea, no fundo, é Oscar Niemeyer [...]. Por isso quando o Oscar escreve, fala "nós isso, nós aquilo", ele está falando é dele, a "arquitetura brasileira" é a arquitetura dele".
De fato, é mesmo difícil imaginar o extraordinário sucesso (nacional e internacional) da arquitetura moderna brasileira sem a existência da obra em tudo excepcional de Oscar Niemeyer -sem o Pavilhão Brasileiro na Exposição de Nova York (1939, parceria com Lucio Costa), sem a Pampulha, sem a Casa das Canoas.
E se, de toda evidência, é a essa obra que se deve creditar, mais do que a qualquer outra, a concretização de um desejo tido até então como irrealizável (o desejo visceral e incontornável de ingresso no mundo moderno), não deve surpreender o lugar que ela e seu autor ocupam no sistema cultural brasileiro do século 20. Verdadeiro "milagre" (palavras de Lucio Costa), Oscar Niemeyer, não por acaso, chega aos cem anos cada vez mais monumental -espécie de semideus nacional que, graças a seu inigualável feito estético-cultural, pode tudo ou quase tudo (afirmações como a de que Walter Gropius era um arquiteto medíocre e a de que a Bauhaus era "uma merda" dão bem a medida do famoso repertório niemeyeriano de boutades duvidosas).
Significativamente, a mesma obra que nos franqueou o acesso ao mundo moderno (e que fez Oswald de Andrade chorar copiosamente) é também aquela que nos impede de deixá-lo. Não penso especialmente na persistente atuação, hoje, do Niemeyer projetista (o qual, munido de uma espécie de salvo-conduto, não apenas segue sendo o arquiteto oficial do Brasil contemporâneo, mas goza igualmente de uma temerária liberdade para modificar suas próprias obras, quase sempre para pior).
Penso sobretudo na dificuldade que a cultura arquitetural brasileira tem de formular questões contemporâneas, vale dizer, questões que exorbitam a agenda modernista, redefinem a agenda moderna e nos lançam -possivelmente órfãos, acomodados que estamos no familiar espaço moderno- no mundo contemporâneo. As questões que (Oswald talvez não percebesse) inelutavelmente distanciavam a marquise de Niemeyer de boa parte daquilo que, a partir do início da década de 1950, a Bienal de São Paulo passava a expor ao público brasileiro.


OTAVIO LEONÍDIO é arquiteto e professor da Pontifícia Universidade Católica (RJ).


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