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Milagre de concreto
Talento excepcional de Niemeyer mantém arquitetura brasileira aprisionada no modernismo e incapaz de formular questões atuais
OTAVIO LEONÍDIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
N
o fim de sua vida, em
1954, levei Oswald de
Andrade à segunda
Bienal. Era o Ibirapuera de Niemeyer,
da oficialização definitiva da arquitetura e da arte modernas que
daria Brasília. Estávamos naquela
tarde praticamente sós, sob as arrojadas estruturas de concreto e
cercados de arte abstrata. Oswald
sentia-se como um dos principais
autores daquela conquista. Ele
chorou. Era como se tivesse vencido uma longa batalha" (carta de
Rudá de Andrade a Antonio Candido, 9/8/1970).
O extraordinário e imprevisto
sucesso da chamada "arquitetura
moderna brasileira" vem mexendo com corações e mentes de brasileiros há mais de meio século, e
por razões não muito difíceis de
compreender.
O compromisso do movimento
modernista com o programa da
"brasilidade" -tacitamente firmado em meados da década de
1920- havia sido um grande achado, mas a verdade é que, na prática, não resolvera absolutamente
os problemas modernistas.
Ser, a um só tempo, moderno e
genuinamente brasileiro era um
programa oportuno; restava, no
entanto, definir como realizar esse programa, e era justamente aí
que a realidade estética mostrava
toda sua capacidade de resistência: contrariamente ao esperado,
os meios pelos quais o "escrever
brasileiro" se concretizaria pareciam, cada vez mais, indecifráveis.
Tomado por um crescente sentimento de fracasso, Mário de Andrade chegava ao fim da vida duvidando do valor de sua obra, desconfiando de seu passado. Mesmo
"Macunaíma" lhe parecia uma
obra "ratada", "a obra-prima que
não ficou obra-prima".
Contudo, se o desejo de "escrever brasileiro" se mostrava cada
vez mais inalcançável, o mesmo
não ocorria com a inusitada experiência de projetar e construir
brasileiro. E não éramos nós, brasileiros, que afirmávamos isso: era
o mundo -as nações industrializadas, a cujo concerto o Brasil, pela primeiríssima vez, era instado a
participar na qualidade de convidado de honra.
Nossas credenciais: a arquitetura moderna brasileira, a arquitetura celebrada pelo Museu de Arte
Moderna de Nova York, o qual, já
em 1943, por meio da exposição
Brazil Builds, abria as portas do
cenário internacional à "inovadora" arquitetura de Oscar Niemeyer e companhia.
Obra única
A arquitetura de Niemeyer e
companhia? Eis uma questão que,
não por acaso, ocupa a atenção de
observadores há meio século.
Segundo a interpretação de um
dos mais influentes críticos e historiadores da arquitetura moderna, Sigfried Giedion, a arquitetura
moderna brasileira não era obra
de um ou outro expoente (Niemeyer incluído), uma vez que, em
suas palavras, "se certas características são particularmente visíveis na obra de certas individualidades excepcionais, elas não estão
todavia ausentes do nível médio
da produção arquitetônica, algo
que não se verifica na maior parte
dos países".
Se, de fato, era assim, como então justificar não apenas o evidente protagonismo (precocemente)
alcançado por Niemeyer -único
arquiteto brasileiro verdadeiramente celebrado nacional e, sobretudo, internacionalmente?
E ainda: como negar a evidência
de que a sua é uma obra única, dotada de uma assinatura inconfundível e que não foi capaz de produzir nenhuma descendência direta
(à exceção dos incorrigíveis niemeyerianos fracassados)?
Surpreendentemente ou não, a
resposta mais contundente a ambas as perguntas foi dada pelo
grande campeão da arquitetura
moderna brasileira, Lucio Costa.
Foi Costa quem, em entrevista
concedida à revista "Pampulha"
(1979), não obstante seu próprio
trabalho de construção narrativa
de uma "arquitetura moderna brasileira", afirmou sem reservas: "O
movimento da arquitetura dita
brasileira contemporânea, no fundo, é Oscar Niemeyer [...]. Por isso
quando o Oscar escreve, fala "nós
isso, nós aquilo", ele está falando é
dele, a "arquitetura brasileira" é a
arquitetura dele".
De fato, é mesmo difícil imaginar o extraordinário sucesso (nacional e internacional) da arquitetura moderna brasileira sem a
existência da obra em tudo excepcional de Oscar Niemeyer -sem o
Pavilhão Brasileiro na Exposição
de Nova York (1939, parceria com
Lucio Costa), sem a Pampulha,
sem a Casa das Canoas.
E se, de toda evidência, é a essa
obra que se deve creditar, mais do
que a qualquer outra, a concretização de um desejo tido até então como irrealizável (o desejo visceral e
incontornável de ingresso no
mundo moderno), não deve surpreender o lugar que ela e seu autor ocupam no sistema cultural
brasileiro do século 20. Verdadeiro "milagre" (palavras de Lucio
Costa), Oscar Niemeyer, não por
acaso, chega aos cem anos cada vez
mais monumental -espécie de semideus nacional que, graças a seu
inigualável feito estético-cultural,
pode tudo ou quase tudo (afirmações como a de que Walter Gropius era um arquiteto medíocre e a
de que a Bauhaus era "uma merda" dão bem a medida do famoso
repertório niemeyeriano de boutades duvidosas).
Significativamente, a mesma
obra que nos franqueou o acesso
ao mundo moderno (e que fez Oswald de Andrade chorar copiosamente) é também aquela que nos
impede de deixá-lo.
Não penso especialmente na
persistente atuação, hoje, do Niemeyer projetista (o qual, munido
de uma espécie de salvo-conduto,
não apenas segue sendo o arquiteto oficial do Brasil contemporâneo, mas goza igualmente de uma
temerária liberdade para modificar suas próprias obras, quase
sempre para pior).
Penso sobretudo na dificuldade
que a cultura arquitetural brasileira tem de formular questões contemporâneas, vale dizer, questões
que exorbitam a agenda modernista, redefinem a agenda moderna e nos lançam -possivelmente
órfãos, acomodados que estamos
no familiar espaço moderno- no
mundo contemporâneo.
As questões que (Oswald talvez
não percebesse) inelutavelmente
distanciavam a marquise de Niemeyer de boa parte daquilo que, a
partir do início da década de 1950,
a Bienal de São Paulo passava a expor ao público brasileiro.
OTAVIO LEONÍDIO é arquiteto e professor da Pontifícia Universidade Católica (RJ).
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