São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

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Ponto de Fuga

No fundo da mina


"Duas Senhoras" é um filme divertido. Seu humanismo, feminino, doméstico, traz uma centelha de otimismo diante das loucuras violentas e coletivas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Todo mundo, ou quase, foi ver "Avatar", de James Cameron.
Quem não foi, ainda irá. Ou, então, não vai porque não gostou já antes de ir, crente de que tudo o que Hollywood faz é um lixo artístico e ideológico, muito abaixo de qualquer inteligência que se tenha a si mesma em alta estima.
De qualquer jeito, "Avatar" é um forte acontecimento cinematográfico. Que tenha sido possível investir tanto dinheiro para criar esse belo sonho em 3D e que tanta gente tenha se disposto a ir vê-lo consola um pouco num mundo que não oferece tantos momentos assim de prazer pleno.
Mas ninguém, ou quase, foi ver "Duas Senhoras", de Philippe Faucon, pela boa razão de que ele foi lançado comercialmente nestas semanas da virada do ano, tão ingratas para o público, e numa única sala, a do Cinesesc, em São Paulo.
Nos antípodas das superproduções e blockbusters, "Duas Senhoras" é um filme curto [73 min.], de baixíssimo orçamento, sem trucagem alguma e com atores não profissionais.
Não tem ação, por assim dizer. Uma das senhoras cuida da outra, imobilizada numa cadeira de rodas. Esse dado simples se complica com o fato de que uma é muçulmana e a outra é judia, e que suas origens deveriam opor uma à outra.
Ocorre que as duas moram na França, mas vieram da Argélia; o passado no mesmo país, antes da fratura provocada pela guerra, cria cumplicidades entre elas. A senhora judia, paralítica, é pesada. Isso impõe o contato físico, a conivência de gestualidade feminina, que transborda para a afinidade dos sentimentos, fazendo crenças e convicções políticas passarem para o segundo plano.

Touch
Cineasta delicado, Philippe Faucon aproxima-se com pudor de seus personagens. Sabe, no entanto, captar as energias, estridentes ou apaziguadas, que os atravessam.
"Duas Senhoras" é um filme divertido. Seu humanismo, feminino, doméstico, traz uma centelha de otimismo diante das loucuras violentas e coletivas. Philippe Faucon é também o autor de "A Traição" [2005], notável filme sobre a guerra da Argélia [1954-62], no qual certezas e desconfianças se entretecem em angústias crescentes. Salvo erro, "A Traição" só foi exibido no Brasil em festivais e algumas mostras.

Toca
"É um desenho animado, mas não para crianças", avisa a bilheteira amável. Cuidado excessivo: "O Fantástico Sr. Raposo", de Wes Anderson, a partir do livro escrito por Roald Dahl, celebra a vida como sobrevivência, graças à sua fantasia inteligente e maluca. Matreiro e autocentrado como o Ulisses da "Odisseia", o Sr. Raposo é ácido, elegante, sofisticado. Fala com o timbre de George Clooney; sua mulher, adorável, tem a voz de Meryl Streep.
O rato, vilão asqueroso, foi dublado por Willem Dafoe. Quando morre, sua oração fúnebre dá o tom irônico e muito fino dos diálogos: "Redenção? Decerto. Mas no fim, ele é apenas outro rato morto numa lixeira ao lado de um restaurante chinês".
Pepita
"Quanto Dura o Amor?", filme de Roberto Moreira, circula discretamente por algumas salas. É mais desigual que o precedente "Contra Todos" [2003], do mesmo diretor, cujo sentido trágico impunha uma unidade poderosa.
Desenha vidas em contraponto, e algumas são mais privilegiadas que outras. Não importa. O filme se tinge sempre de solidão, melancólica, verdadeira, mesmo nos momentos cômicos. Os atores, notáveis, são dirigidos por mão de mestre. A câmera extrai de São Paulo a poesia urbana que lhe é própria e a cidade se torna um meio orgânico no qual os personagens se desencontram.


jorgecoli@uol.com.br


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