São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(L)ivros:

Cidadãos e escravos

"Repensando o Brasil do Oitocentos" analisa o papel de agentes como a imprensa na sociedade do século 19

FLÁVIO GOMES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O problema não está no passado, embora nele possamos encontrar caminhos de interpretação do presente. Possibilidades, pelo menos.
Afora o recorrente pessimismo de alguns, que se faz amigo das incompreensões supostamente bem intencionadas de outros, os sentidos de cidadania no Brasil -de ontem e de hoje- não são uma miragem, conversão política ou abstração sociológica.
Foram (e são) experiências na (da) história de milhares de homens e mulheres, entre instituições, símbolos, significados e expectativas. A construção da nossa (há quem insista na falta dela) cidadania nunca foi um defeito de origem, destino colonial manifesto ou passado pós-colonial inconcluso.
Foi -sempre- muito mais do que se diz. É isso que oferece a coletânea "Repensando o Brasil do Oitocentos", organizada por José Murilo de Carvalho e Lúcia das Neves. Não terá coro a ladainha de que se trata de mais um calhamaço acadêmico para convencer aqueles já convencidos especialistas. O tema ajuda, e os mais de 20 autores não perderam a chance.
Com alguns excelentes artigos, a coletânea consegue bom equilíbrio -tarefa nem sempre fácil- entre erudição, informação e reflexão. A origem da publicação já revela a importância e abrangência de projetos envolvendo instituições e pesquisadores de vários Estados.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro apoiaram um conjunto de investigações históricas em torno da temática da cidadania e nação no século 19, o Oitocentos.
Coordenado por um generoso esforço de juntar historiadores com renovados aportes teóricos e metodológicos, resultou numa formidável amostra dos Brasis.

Elitismo e exclusão
Público, periódicos, senhores, teatros, escravos, marinheiros, conservadores, privado, clientes, Parlamento, palcos, monarquistas, senzalas, livros, republicanos, partidos políticos, patrões, raça, liberais, músicas e escravidão são revisitados com lentes poderosas.
Emergem culturas e políticas; personagens, cenários e protagonistas da vida social -urbana e rural- de Brasis, só na aparência distantes de nós num tempo perdido.
Os eixos que organizaram o livro -salvo-conduto para um público leitor mais amplo- se destacam. Do universo das ideias, do cenário dos espaços públicos -também ruas e tabernas-, o leitor é levado aos gabinetes parlamentares e às redações de jornais; e, depois, conduzido às salas de reuniões de sociedades secretas e associações ou salões das apresentações musicais e teatrais, mundos da cultura política oitocentista. Chegará também às senzalas e aos casebres.
Assim vai passear por uma sociedade desigual, fortemente hierarquizada e com escravidão. Elitismo e exclusão sob a lógica senhorial, de intelectuais e de políticos travestidos de donos do poder e das mentes não produziram somente vítimas, mas clientes, dependentes, críticos e rebeldes, letrados ou não. Gente de verdade, e não categorias ou coadjuvantes como na história dos manuais.
Por exemplo, o Estado tem o seu lugar em várias análises, mas nada por demais espaçoso. Isso vale também para a suposta ausência de conflitos e tensões. Um aprendizado da leitura será a percepção de como polarizações são insuficientes para adentrar terrenos movediços, locais silenciosos, espaços interditos onde a cidadania -em sentidos múltiplos de ausências e evocações- se fez presente.
Aqui ou acolá, neste ou naquele capítulo ou autor, seria fácil buscar exemplos. Chamaria a atenção para as abordagens indicativas sobre o papel da imprensa, formas de diálogos com a sociedade envolvente a indicar projetos de nação e povo.
Como salientou o historiador Marco Morel numa obra sobre o tema ["As Transformações dos Espaços Públicos", ed. Hucitec], verdadeira "explosão da palavra pública" no Oitocentos.
Silêncios estrondosos de um passado que permanentemente se atualiza no Brasil entre opinião pública, liberdade de imprensa e imaginário político.
Uma dica desnecessária para os leitores atentos.

País multifacetado
Ponto alto igualmente para os capítulos primorosos de destacados especialistas da temática da escravidão e da pós-emancipação. Poderes locais, racialização, expectativas de direitos inscritos na lei e nos costumes, percepções e protestos faziam da cidadania e liberdade alvos em constante movimento.
Um Brasil? Acho que não. Seriam Brasis de fronteiras e identidades multifacetadas.
E outros modos de vê-los se colocam nas leituras possíveis (e desdobramentos) desta coletânea. Interessados em geral, com ofício na história, professores, políticos, estudantes, empresários, trabalhadores, funcionários e gestores públicos sempre vão querer mais deste avanço historiográfico em termos de outros espaços do Oitocentos.
Não só salões, jornais e jornalistas do Rio de Janeiro, gabinetes e disputas parlamentares da corte imperial ou senhores e senzalas do Sudeste. Mas igualmente da especificidade de áreas urbanas escravistas em Porto Alegre [RS] até a natureza de um escravismo tardio no Maranhão.
Passando pela combinação de portugueses com migrantes cearenses na Amazônia e se aproximando de imigrantes europeus que dividiram ferramentas, senzalas e tabernas com escravos, libertos e africanos ainda na década de 1850 em lavouras paulistas.
E alcançar tanto a emancipação no Ceará e no Amazonas bem antes da Lei Áurea (1888) como a mobilização operária abolicionista no Rio de Janeiro através de comícios.
Uma coletânea para quem tem fôlego. Para invadir um "longo século", pensar e repensar. Sem firulas ou desfaçatez, os desafios contemporâneos clamam por isso.

FLÁVIO GOMES é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Negros e Política (1888-1937)" (ed. Zahar).


REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

Organizadores: José Murilo de Carvalho e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 60 (602 págs.)


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: +lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.