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+(L)ivros:
Cidadãos e escravos
"Repensando o Brasil do Oitocentos" analisa o papel de agentes como a imprensa na sociedade do século 19
FLÁVIO GOMES
ESPECIAL PARA A FOLHA
O problema não está
no passado, embora nele possamos
encontrar caminhos de interpretação do presente. Possibilidades, pelo menos.
Afora o recorrente pessimismo de alguns, que se faz amigo
das incompreensões supostamente bem intencionadas de
outros, os sentidos de cidadania no Brasil -de ontem e de
hoje- não são uma miragem,
conversão política ou abstração sociológica.
Foram (e são) experiências
na (da) história de milhares de
homens e mulheres, entre instituições, símbolos, significados e expectativas. A construção da nossa (há quem insista
na falta dela) cidadania nunca
foi um defeito de origem, destino colonial manifesto ou passado pós-colonial inconcluso.
Foi -sempre- muito mais
do que se diz. É isso que oferece
a coletânea "Repensando o
Brasil do Oitocentos", organizada por José Murilo de Carvalho e Lúcia das Neves. Não terá
coro a ladainha de que se trata
de mais um calhamaço acadêmico para convencer aqueles já
convencidos especialistas. O
tema ajuda, e os mais de 20 autores não perderam a chance.
Com alguns excelentes artigos, a coletânea consegue bom
equilíbrio -tarefa nem sempre
fácil- entre erudição, informação e reflexão. A origem da publicação já revela a importância e abrangência de projetos
envolvendo instituições e pesquisadores de vários Estados.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico e a Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro apoiaram um
conjunto de investigações históricas em torno da temática
da cidadania e nação no século 19, o Oitocentos.
Coordenado por um generoso esforço de juntar historiadores com renovados aportes teóricos e metodológicos, resultou
numa formidável amostra dos Brasis.
Elitismo e exclusão
Público, periódicos, senhores, teatros, escravos, marinheiros, conservadores, privado, clientes, Parlamento, palcos, monarquistas, senzalas, livros, republicanos, partidos
políticos, patrões, raça, liberais,
músicas e escravidão são revisitados com lentes poderosas.
Emergem culturas e políticas; personagens, cenários e
protagonistas da vida social
-urbana e rural- de Brasis, só
na aparência distantes de nós num tempo perdido.
Os eixos que organizaram o
livro -salvo-conduto para um
público leitor mais amplo- se
destacam. Do universo das
ideias, do cenário dos espaços
públicos -também ruas e tabernas-, o leitor é levado aos
gabinetes parlamentares e às
redações de jornais; e, depois,
conduzido às salas de reuniões
de sociedades secretas e associações ou salões das apresentações musicais e teatrais,
mundos da cultura política oitocentista. Chegará também às senzalas e aos casebres.
Assim vai passear por uma
sociedade desigual, fortemente
hierarquizada e com escravidão. Elitismo e exclusão sob a
lógica senhorial, de intelectuais
e de políticos travestidos de donos do poder e das mentes não
produziram somente vítimas,
mas clientes, dependentes, críticos e rebeldes, letrados ou
não. Gente de verdade, e não
categorias ou coadjuvantes como na história dos manuais.
Por exemplo, o Estado tem o
seu lugar em várias análises,
mas nada por demais espaçoso.
Isso vale também para a suposta ausência de conflitos e
tensões. Um aprendizado da
leitura será a percepção de como polarizações são insuficientes para adentrar terrenos movediços, locais silenciosos, espaços interditos onde a cidadania -em sentidos múltiplos de
ausências e evocações- se fez presente.
Aqui ou acolá, neste ou naquele capítulo ou autor, seria
fácil buscar exemplos. Chamaria a atenção para as abordagens indicativas sobre o papel
da imprensa, formas de diálogos com a sociedade envolvente a indicar projetos de nação e
povo.
Como salientou o historiador
Marco Morel numa obra sobre
o tema ["As Transformações
dos Espaços Públicos", ed. Hucitec], verdadeira "explosão da
palavra pública" no Oitocentos.
Silêncios estrondosos de um
passado que permanentemente se atualiza no Brasil entre
opinião pública, liberdade de
imprensa e imaginário político.
Uma dica desnecessária para os
leitores atentos.
País multifacetado
Ponto alto igualmente para
os capítulos primorosos de destacados especialistas da temática da escravidão e da pós-emancipação.
Poderes locais, racialização,
expectativas de direitos inscritos na lei e nos costumes, percepções e protestos faziam da
cidadania e liberdade alvos em constante movimento.
Um Brasil? Acho que não. Seriam Brasis de fronteiras e identidades multifacetadas.
E outros modos de vê-los se
colocam nas leituras possíveis
(e desdobramentos) desta coletânea. Interessados em geral,
com ofício na história, professores, políticos, estudantes,
empresários, trabalhadores,
funcionários e gestores públicos sempre vão querer mais
deste avanço historiográfico
em termos de outros espaços do Oitocentos.
Não só salões, jornais e jornalistas do Rio de Janeiro, gabinetes e disputas parlamentares da
corte imperial ou senhores e
senzalas do Sudeste. Mas igualmente da especificidade de
áreas urbanas escravistas em
Porto Alegre [RS] até a natureza de um escravismo tardio no Maranhão.
Passando pela combinação
de portugueses com migrantes
cearenses na Amazônia e se
aproximando de imigrantes
europeus que dividiram ferramentas, senzalas e tabernas
com escravos, libertos e africanos ainda na década de 1850 em lavouras paulistas.
E alcançar tanto a emancipação no Ceará e no Amazonas
bem antes da Lei Áurea (1888)
como a mobilização operária
abolicionista no Rio de Janeiro através de comícios.
Uma coletânea para quem
tem fôlego. Para invadir um
"longo século", pensar e repensar. Sem firulas ou desfaçatez,
os desafios contemporâneos clamam por isso.
FLÁVIO GOMES é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de
"Negros e Política (1888-1937)" (ed. Zahar).
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS
Organizadores: José Murilo de Carvalho e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 60 (602 págs.)
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