São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ entrevistas históricas Frans Krajcberg fala sobre sua relação com a natureza e rememora sua experiência na guerra A consciência da revolta e da destruição da Sucursal do Rio
Frans Krajcberg está prostrado no sofá de um pequeno apartamento na Urca (Rio de Janeiro). Pela janela
aberta não entra a mais mínima brisa: a janela dá para uma rocha que reverbera impiedosamente a luminosidade incandescente do verão carioca. Os termômetros
marcam 39ºC. O ventilador de teto gira devagar, como que
cortando a duras penas blocos compactos de calor.
Com o fim da guerra, por que não ficou na Polônia? Voltei à cidade onde nasci e minha família morava, Kozienice. Fui em casa e bati na porta. Uma senhora abriu. Tudo estava como antes. Só que minha família não estava lá. Meus pais e irmãos morreram em campos de concentração ou desapareceram. A senhora começou a me xingar de uma maneira horrível, por eu ser judeu. Em vez de pegar um revólver e dar um tiro nela, comecei a chorar. Voltei a Varsóvia. Decidi que sairia daquele país e nunca mais voltaria. Peguei um trem e, ao atravessar o rio na fronteira com a Tchecoslováquia, joguei na água as sete medalhas que recebi na guerra. Fui para a Alemanha. Ter perdido a sua família o levou a não querer ter outra? Nunca senti falta de viver com alguém. Não consigo viver com outra pessoa. Tenho amigas, vivemos juntos um, dois, três meses, mas não consigo continuar junto. Fez algum curso de arte na Alemanha? Estudei em Stuttgart com Willy Baumeister, que fora professor da Bauhaus. Ele era um grande professor. Não ficava dizendo faça isso ou aquilo, como os acadêmicos. Todo mundo podia fazer tudo o que quisesse. Os alunos penduravam seus desenhos e quadros na parede. Ele aparecia nas manhãs de sábado e analisava todos os trabalhos. E escolhia o melhor e dava um prêmio em dinheiro, tirado do seu próprio bolso. Um dia ele me chamou para jantar na sua casa e disse: "Vá embora, aqui não é o seu lugar". Eu estava completamente perdido. Ele recomendou que eu fosse para Paris. Deu uma carta de apresentação para um grande amigo dele, Fernand Léger. Estudou com Léger em Paris? Não. Sem falar uma palavra de francês, tive dificuldade em chegar a Léger. Felizmente ele falava russo. Fora casado com uma russa. Conversando, mencionei que estivera em Vitebski, e ele perguntou se conhecera lá a família Chagall. Respondi que sim. Ele então falou com Chagall, que me recebeu: queria saber notícias de sua família na Rússia. Fiquei quatro meses na casa de Chagall. Um dia, o dono de uma agência foi jantar lá. O dono da agência disse que podia me arrumar uma viagem para o Brasil. Eu nem sabia direito onde era o Brasil. Respondi que qualquer lugar me servia. Ele falou que eu precisava ir ao consulado com uma moça e contar que iria me casar com ela no Brasil. O Brasil proibia que moças solteiras imigrassem sozinhas. Fui lá, peguei na mão da moça, que tremia, e disse aos funcionários que iria casar com ela. A moça pagou a minha passagem de navio, na terceira classe. Ela viajou de primeira e nunca mais nos vimos. E no Brasil, como foi? Cheguei ao Rio. Sem dinheiro, sem falar português, sem conhecer ninguém. Dormia na praia de Botafogo. Não aguentava a miséria. Fui para São Paulo de trem, clandestino. Em São Paulo, fui ao Museu de Arte Moderna. Cicillo Matarazzo foi maravilhoso: me deu trabalho. Eu fazia tudo, até varria o museu. Conheci Mario Zanini, que me levou para trabalhar numa empresa de azulejos. Pintei azulejos, inclusive alguns dos do painel do Portinari para o prédio do Ministério da Educação. O painel já estava pronto, mas, como roubavam os azulejos, era preciso pintar novos. Aí veio a primeira Bienal, a de 1951, e ajudei a apresentar as obras para o júri. Eu tinha cinco quadros. Apresentei meus quadros ao júri e fui embora. Dois deles foram selecionados para Bienal. Eram quadros expressionistas. Foi quando conheci Volpi e Waldemar Cordeiro. Como era Volpi? Volpi era maravilhoso. Parecia um caboclo. Era um grande desenhista. Não discutíamos arte. Fui à casa de Volpi em Itanhaém e fiquei três meses lá. Conheci o talento de Volpi. Conheci o espírito e a pureza desse homem. Volpi fazia concretismo? Ele não sentia nem podia sentir o concretismo. Ele foi levado ao concretismo por uma psicanalista que comprava todas as suas obras. Volpi foi o homem mais puro que conheci no Brasil. Ele tinha talento para tudo. Seu talento estava na maneira como preparava as cores. Ele mesmo preparava as telas, ele nunca as comprava. Volpi jamais entrou no primitivismo, mas estava entre ele e o modernismo. A pureza desse homem era tão forte que a mim ele transmitia sossego, calma e uma grande apreciação do homem puro. Esse foi Volpi. E Waldemar Cordeiro? Gostava do Waldemar Cordeiro. Mas a arte dele nunca me disse nada. Ele gostava de liderar, tanto que esteve à frente do movimento concreto, que chegou ao Brasil na Bienal de 1951. Foi nessa época que acabou o trabalho com o azulejo e o Lasar Segall sugeriu que eu fosse para o Paraná. Fazer o que no Paraná? Ser engenheiro das indústrias de papel Klabin. Fui porque não aguentava o convívio urbano. Não aguentava mais os homens. Continuava perdido. Fui para Monte Alegre. Trabalhei como engenheiro de construção e desenhista. Construí uma cabana no meio do mato. Gostava de pintar, de observar a natureza. Bebia muito. Todo dia. Saindo da fábrica, comprava uma garrafa de cachaça e bebia tudo. Era um desespero. Estava quase para me suicidar. Um dia, não consegui nem andar. Estava magro. Levaram-me para o hospital. Ainda assim, comecei a me recuperar: tive em Monte Alegre o primeiro contato com a natureza brasileira. Vivia no meio dela. Nunca a natureza me perguntou de onde eu vinha, se era naturalizado, qual a minha religião. Isso me deu grande alegria. Comecei a desenhar plantas e pintava ladrilhos. Por que saiu de Monte Alegre? Um dia, não aguentei mais: meus olhos estavam cheios de fumaça. O Paraná estava em chamas, tantas eram as queimadas, para depois plantar café. Fui para o Rio, onde conheci o escultor Sergio de Camargo. O pai dele me ofereceu a casa dele em Laranjeiras, onde fui trabalhar. Convidei o Franz Weissmann, que também não tinha onde trabalhar, para fazer o ateliê dele lá. Como era Sergio de Camargo? Sergio era meu amigo, gostava dele. Mas, perto de Volpi, Sergio não tinha nada. A gente não tem coragem de falar certas coisas no Brasil. Por exemplo, aqui se fala em "arte brasileira". Mas não existe arte brasileira. Existe arte feita no Brasil. Eu levei Sergio de Camargo para Paris, depois. Ele na época fazia pequenas bonecas, bonequinhas de barro. Ele não tinha necessidade de lutar pela sobrevivência, não precisava disso. A família da mãe dele era considerada a Matarazzo da Argentina. E o pai dele também era riquíssimo. Foi em Paris que ele começou a fazer alguma coisa. Mas bebia muito, fumava muito, estava sem saída. Até que um dia dei um aperto muito forte nele. Ele então se mexeu. E aí começou a andar com o grupo neoconcretista, conseguiu uma galeria em Londres que divulgava a sua obra. Conseguiu outra no Brasil. Sua obra está aí até hoje. E o que acha da obra de Franz Weissmann? Um dos maiores escultores daqui se chama Franz Weissmann. Por quê? Porque se não houvesse Franz Weissmann não haveria Amilcar de Castro. No tempo do ateliê em Laranjeiras, o sr. já se considerava um artista? Não sei. Essa palavra "artista", querendo significar "super-homem", não vai bem comigo. Mas a arte foi um meio de sobreviver. Em Laranjeiras, eu pintava a memória da natureza no Paraná. Em 1957, mandei alguns quadros para a Bienal de São Paulo. E Weissmann mandou esculturas. Ele ganhou o prêmio de melhor escultor da Bienal. Eu, o de melhor pintor. Peguei o dinheiro e fiz uma festa enorme. O Bruno Giorgi foi, o Milton Dacosta ficou bêbado. Então fui para Paris.
Por que quis sair do Brasil? Precisava sair de perto do peso do ambiente artístico. Conheci os críticos, Mario Pedrosa e Ferreira Gullar. Conheci o neoconcretismo, que era considerada a única arte brasileira. Mas nada daquilo me convencia: eu havia estudado com Willy Baumeister, da Bauhaus. Gullar e Mario Pedrosa não entendiam como eu podia ser amigo de Franz Weissmann. Foi uma ditadura. Mario Pedrosa escreveu um artigo sobre a minha premiação na Bienal dizendo que o prêmio deveria ter sido dado a Ivan Serpa. Ele não considerava a minha arte brasileira. Eu não entendia por que eles consideravam o neoconcretismo uma arte brasileira. Esqueceram a Bauhaus, esqueceram a arte européia do século 20. Além disso, tive de abandonar a pintura: estava intoxicado pelas tintas e não podia pintar mais. Sem poder pintar, sem saber o que fazer, e sentindo o peso do ambiente artístico, fui para Paris. Por que Paris? Porque em Paris o movimento artístico fervia. Você tropeçava em artistas em Montparnasse. Não havia dogmas. Eu queria estar junto das discussões, com o movimento. Mas intercalava minha vida em Paris com estadas em Ibiza, na Espanha, para ficar perto da natureza. Você não vai acreditar: em Paris, eu cortava os quadros que pintara no Rio para fazer colagens. E me perguntava: eu mereci o prêmio da Bienal? Começava a fazer relevos em Ibiza e os terminava em Paris. Por que voltou ao Brasil? Depois de ganhar o prêmio Cidade de Veneza, na Bienal de Veneza de 1964, senti que precisava renovar o contato com a natureza. Não a pequena natureza de Ibiza, mas a grande natureza do Brasil. Pensei em me instalar em São Luís, no Maranhão. Acabei ficando em Cata Branca, em Minas Gerais. E depois, nos anos 70, me instalei em Nova Viçosa, no sul da Bahia. O Estado da Bahia me deu o terreiro. Oscar Niemeyer, Chico Buarque, um monte de gente comprou terrenos em Nova Viçosa, mas só eu fiquei. O que o atraiu em Nova Viçosa? O mangue. O movimento dos manguezais. A infiltração de luzes nos manguezais, os caranguejos coloridos. As formas sobre as formas. Pensei: o tachismo é nada perto desse movimento. A abstração não existe na natureza. Inconscientemente os artistas copiam o que enxergam na natureza. E a natureza é isso: nasce, vive e morre. Mas o mangue também é hostil: há calor, há os cheiros, há a lama, os espinhos, a dificuldade de andar... Nada é pior que a vida urbana, que as leis que regem a vida nas cidades. Vivemos sem liberdade nenhuma nas cidades. Nas cidades, vivemos em bunkers. Se queremos saber o que está acontecendo, ligamos a televisão, e ela diz para não fumarmos mais, para irmos sempre à direita, para não olhar para baixo, para olhar para cima. No mangue, não. É então que nasce a sua arte com preocupação ecológica? Pouco depois de me instalar em Nova Viçosa, fiz uma exposição no Centro Georges Pompidou, em Paris. Três vezes por semana, eu ia lá e mostrava fotos do Brasil e dialogava com o público. Depois dessas conversas, compreendi que o meu desejo não era apenas o de trabalhar com a natureza. Compreendi também que deveria defender a natureza com o meu trabalho. Voltei para o Brasil e comecei a fazer grandes viagens, a ver toda a destruição, a fotografar, a captar e trazer a morte para mostrar: "Vejam, onde havia uma bela árvore, hoje existe um pedaço de carvão". Isso é arte? Se é arte ou não, é assunto para os outros. Não interessa se as pessoas gostam ou não do que faço. Todos têm o direito de gostar ou não de minha arte, de achar que faço arte ou não. Sou revoltado contra o que está acontecendo. Contra a luta do homem contra o homem, do homem contra a natureza, do homem contra a vida. O meu trabalho é a única maneira de me expressar. Se começo a gritar na rua, me botam num hospital de doidos. Há estética em transformar o mangue em material artístico? Meu trabalho às vezes chega ao estético, mas sem querer. Não é todo dia que eu consigo fazer um trabalho que grite alto, como eu gostaria. Às vezes ele cai um pouquinho no estético, sem que eu tenha intenção. A sua arte anterior à fase ecológica fazia sentido? A expressionista, sem dúvida. Ela nasceu de um movimento social, nasceu da miséria que atingiu a Alemanha, nasceu da revolta contra essa miséria. A Revolução chegou à Rússia por acaso. Ela estava prevista para chegar antes na Alemanha, com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. A Revolução chegou ao país errado, à Rússia miserável, com seus 80% de analfabetos. Então, a Revolução ficou no ar. E a história mostrou que Stálin fez tantos estragos quanto Hitler. Stálin fez um grande mal ao movimento marxista. Então, a arte pode ser bela ou não, pode ser política ou não, isso não é o mais importante. As colagens de Matisse não eram políticas, por exemplo. Elas eram revolucionárias: um homem de mais de 80 anos tinha a coragem de mudar a sua arte, de ser jovem e de arriscar. Por que o sr. não fotografa seres humanos? Não sou fotógrafo. Fotografo para guardar certas imagens da natureza. Imagens que vão se perder para sempre, porque a natureza está sempre mudando. Adoro crianças. Mas homens, não. Tentei muito me aproximar dos homens. Hoje tenho alguns amigos. Se bem que a amizade verdadeira seja muito rara. Não consigo me adaptar aos homens. Está satisfeito com o seu lugar nas artes, com a maneira como é visto pelos críticos? Bem, sempre escrevem que sou um artista polonês radicado no Brasil. Às vezes me pergunto como ficar brasileiro. Não sinto que não sou daqui. Estou naturalizado há mais de 50 anos. Então, como ser brasileiro? Outro dia, posso ter cometido uma gafe: eu disse que o Brasil não foi descoberto, que foi invadido. Aqui existia um povo e houve uma invasão. A história do Brasil, apesar de mal contada, é uma história, uma história de violências. Mas não se fala sobre isso. Aqui também não há diálogo. Quando quero dialogar, tenho de ir a Paris. Não há estímulo para a arte. Trabalhamos todos individualmente. Mal e mal sabemos o que acontece em São Paulo e no Rio. É tudo muito provinciano. O que se poderia fazer para incentivar a arte? É preciso haver diálogo. E é preciso não fazer certas coisas. Agora mesmo, vão trazer o museu Guggenheim para o Rio. Vão gastar uma fortuna para trazer artistas americanos, como acontece no Guggenheim da Espanha. Mas lá houve uma coisa específica: Bilbao estava numa decadência absoluta, e o museu foi construído, com dinheiro da Espanha e da prefeitura, para atrair turistas. Mas e aqui? Vão gastar dinheiro para trazer o Guggenheim enquanto nossos museus estão abandonados, quando não há movimento cultural? Queremos copiar quem? Não há diálogo sobre esses assuntos. Sente-se mais feliz hoje? Detesto a palavra "feliz". Gostaria de saber como me sentir feliz. Estou mais consciente das coisas que faço, mais consciente da minha revolta. Pelas cartas que recebo, sinto que a consciência da destruição vem aumentando. Não posso dizer mais que isso. Seria absurdo de minha parte dizer que estou mais feliz. O sr. continua perdido como há 60 anos ou se encontrou? Sinto que estou mais perto da força que me dá tranquilidade para viver: a natureza. Texto Anterior: + entrevistas históricas: Cortar o ferro Dobrar o ferro Próximo Texto: + livros: Cartografias simbólicas Índice |
|