São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

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Perdendo o bonde

Marco cultural brasileiro, esse meio de transporte foi exemplo de uma sociabilidade que não existe mais nas atuais formas de locomoção das metrópoles

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Há certos fatos, para a vida das pessoas, que marcam a transição de uma época para outra.
Muitas vezes, são acontecimentos sabidamente relevantes, como, por exemplo, o antes e o depois da crise econômica iniciada em 1929 ou o antes e o depois da Segunda Guerra.
Talvez, forçando um pouco a nota, mudanças na aparência de pouca importância possam marcar também a separação entre dois tempos -o do presente e "os velhos bons tempos", como os saudosistas gostam de dizer. Isso acontece, por exemplo, para a gente que viveu a época dos bondes nas grandes cidades brasileiras e assistiu à sua desaparição, aí pelos anos 60 do século passado.
A extinção do bonde marca a passagem de um tempo para outro porque ele não era apenas um meio de transporte, mas um espaço de sociabilidade cujo reflexo se encontra em crônicas, em contos e na música popular brasileira.

O som do bonde
Quem, entre os mais velhos, forçando um pouco a memória, não se lembra de "Não Pago o Bonde", marcha de 1937, na voz de Odete Amaral; de "Tem Galinha no Bonde" (1942), marcha cantada por Aracy de Almeida; ou mesmo de "O Bonde São Januário" (1940), um samba de encomenda, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, na voz de Ciro Monteiro, destinado a louvar os méritos do trabalho, em oposição à malandragem, como impunham os ideólogos do Estado Novo?
Entretanto mesmo os mais velhos, se forem ao excelente repositório das coleções de José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi (http://ims.uol.com.br), ficarão surpreendidos ao constatar que a temática já surgia em princípios do século 20, em discos chiados, com o anúncio "Casa Edison, Rio de Janeiro" -a exemplo de "Condutor de Bonde" (1904-07) e "Rolo em um Bonde" (1907-12). Quem sabe até os bondes puxados a burro tenham tido, no século 19, seus excelsos cantores.
Nas nossas grandes cidades, numa época em que os automóveis particulares eram ainda relativamente raros e caros, os bondes -e, em menor medida, o ônibus- foram o transporte por excelência da classe média. Bondes abertos ou fechados -estes últimos os vermelhos camarões que desciam como bólidos as ruas em declive de São Paulo, satirizados numa moda de viola com o título de "Bonde Camarão" (1929-30), do então célebre humorista Cornélio Pires e de Mariano da Silva.
Nos bondes abertos, onde as fileiras de bancos de madeira para oito passageiros estendiam-se no seu interior, a socialização era maior, seja entre as pessoas sentadas, seja entre as que se postavam nos estribos, por gosto ou por falta de espaço. Neles iam os jovens pingentes, pendurados como certos brincos, para demonstrar que já eram homens feitos, capazes de realizar façanhas acrobáticas, ao descer do veículo em velocidade, com classe e destreza suficientes para não se esborrachar no chão de paralelepípedos.

Tim, tim
Um personagem central dos bondes abertos era o condutor, acrobata por necessidade profissional, que passava pelos magotes de gente nos estribos e cobrava as passagens. Ele desempenhava sua tarefa cuidadosamente, não porque fosse um fiel servidor do "polvo canadense" -a The São Paulo Tramway Light & Power Company, chamada popularmente de Light-, mas porque, segundo as más línguas, tirava uma boa lasca das cobranças.
Muita gente garantia que havia uma nítida desproporção entre o dinheiro recebido e o que era registrado no aparelho marcador das passagens, colocado à vista de todos.
A onomatopéia de cada registro tornou-se famosa e foi lembrada em livros e músicas populares, dentre eles o belo álbum de Fernando Portela "Bonde - Saudoso Paulistano" (ed. Terceiro Nome) e a marcha "Toca o Bonde", de 1937-38, na voz de Alzirinha Camargo, que começa dizendo: "Toca o bonde, tim tim, um prá Light, dois prá mim".
Nos bancos do bonde aberto, corriam as conversas com o passageiro ou a passageira do lado, sobre o tempo, a carestia, a pressa insuportável da vida moderna ou, ainda, brotavam aqui e ali alusões tímidas que ensaiavam namoros.
Explodiam também muitos protestos contra os que, ao entrar no veículo, perturbavam as pessoas já acomodadas, esbarrando nelas com enormes tranqueiras, pisando em seus pés, ou deixando respingar as gotas dos guarda-chuvas molhados.
Todas essas coisas desapareceram com a extinção do bonde, por volta dos anos 60. Cada vez mais a classe média se enfiou nos automóveis, depois acrescentou o hábito dos vidros fechados e o ar-condicionado, isolando-se das cenas de miséria e violência das ruas. Depois, pelo menos uma faixa da gente pobre, mesmo em piores condições, seguiu caminho semelhante.
Como os automóveis, em breve, vão se transformar em objetos inúteis, paralisados por falta de espaço, quem sabe surja, dentre as alternativas em andamento, a idéia da volta dos antigos bondes. Infelizmente, ainda assim, muito pouca coisa seria como dantes, pois a sociabilidade perdida não dependia apenas dos bondes, mas das formas de um certo tipo de convivência social que desapareceu para sempre.


BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).


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