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Perdendo o bonde
Marco cultural brasileiro, esse meio de transporte foi exemplo de uma sociabilidade que não existe mais nas atuais formas de locomoção das metrópoles
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Há certos fatos, para
a vida das pessoas,
que marcam a
transição de uma
época para outra.
Muitas vezes, são acontecimentos sabidamente relevantes, como, por exemplo, o antes
e o depois da crise econômica
iniciada em 1929 ou o antes e o
depois da Segunda Guerra.
Talvez, forçando um pouco a
nota, mudanças na aparência
de pouca importância possam
marcar também a separação
entre dois tempos -o do presente e "os velhos bons tempos", como os saudosistas gostam de dizer.
Isso acontece, por exemplo,
para a gente que viveu a época
dos bondes nas grandes cidades brasileiras e assistiu à sua
desaparição, aí pelos anos 60
do século passado.
A extinção do bonde marca a
passagem de um tempo para
outro porque ele não era apenas um meio de transporte,
mas um espaço de sociabilidade cujo reflexo se encontra em
crônicas, em contos e na música popular brasileira.
O som do bonde
Quem, entre os mais velhos,
forçando um pouco a memória,
não se lembra de "Não Pago o
Bonde", marcha de 1937, na voz
de Odete Amaral; de "Tem Galinha no Bonde" (1942), marcha cantada por Aracy de Almeida; ou mesmo de "O Bonde
São Januário" (1940), um samba de encomenda, de Ataulfo
Alves e Wilson Batista, na voz
de Ciro Monteiro, destinado a
louvar os méritos do trabalho,
em oposição à malandragem,
como impunham os ideólogos
do Estado Novo?
Entretanto mesmo os mais
velhos, se forem ao excelente
repositório das coleções de José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi (http://ims.uol.com.br), ficarão surpreendidos ao constatar que a temática
já surgia em princípios do século 20, em discos chiados, com o
anúncio "Casa Edison, Rio de
Janeiro" -a exemplo de "Condutor de Bonde" (1904-07) e
"Rolo em um Bonde" (1907-12). Quem sabe até os bondes
puxados a burro tenham tido,
no século 19, seus excelsos cantores.
Nas nossas grandes cidades,
numa época em que os automóveis particulares eram ainda relativamente raros e caros,
os bondes -e, em menor medida, o ônibus- foram o transporte por excelência da classe
média. Bondes abertos ou fechados -estes últimos os vermelhos camarões que desciam
como bólidos as ruas em declive de São Paulo, satirizados numa moda de viola com o título
de "Bonde Camarão" (1929-30), do então célebre humorista Cornélio Pires e de Mariano
da Silva.
Nos bondes abertos, onde as
fileiras de bancos de madeira
para oito passageiros estendiam-se no seu interior, a socialização era maior, seja entre
as pessoas sentadas, seja entre
as que se postavam nos estribos, por gosto ou por falta de
espaço. Neles iam os jovens
pingentes, pendurados como
certos brincos, para demonstrar que já eram homens feitos,
capazes de realizar façanhas
acrobáticas, ao descer do veículo em velocidade, com classe e
destreza suficientes para não
se esborrachar no chão de paralelepípedos.
Tim, tim
Um personagem central dos
bondes abertos era o condutor,
acrobata por necessidade profissional, que passava pelos magotes de gente nos estribos e
cobrava as passagens. Ele desempenhava sua tarefa cuidadosamente, não porque fosse
um fiel servidor do "polvo canadense" -a The São Paulo
Tramway Light & Power Company, chamada popularmente
de Light-, mas porque, segundo as más línguas, tirava uma
boa lasca das cobranças.
Muita gente garantia que havia uma nítida desproporção
entre o dinheiro recebido e o
que era registrado no aparelho
marcador das passagens, colocado à vista de todos.
A onomatopéia de cada registro tornou-se famosa e foi lembrada em livros e músicas populares, dentre eles o belo álbum de Fernando Portela
"Bonde - Saudoso Paulistano"
(ed. Terceiro Nome) e a marcha
"Toca o Bonde", de 1937-38, na
voz de Alzirinha Camargo, que
começa dizendo: "Toca o bonde, tim tim, um prá Light, dois
prá mim".
Nos bancos do bonde aberto,
corriam as conversas com o
passageiro ou a passageira do
lado, sobre o tempo, a carestia,
a pressa insuportável da vida
moderna ou, ainda, brotavam
aqui e ali alusões tímidas que
ensaiavam namoros.
Explodiam também muitos
protestos contra os que, ao entrar no veículo, perturbavam as
pessoas já acomodadas, esbarrando nelas com enormes tranqueiras, pisando em seus pés,
ou deixando respingar as gotas
dos guarda-chuvas molhados.
Todas essas coisas desapareceram com a extinção do bonde, por volta dos anos 60. Cada
vez mais a classe média se enfiou nos automóveis, depois
acrescentou o hábito dos vidros
fechados e o ar-condicionado,
isolando-se das cenas de miséria e violência das ruas. Depois,
pelo menos uma faixa da gente
pobre, mesmo em piores condições, seguiu caminho semelhante.
Como os automóveis, em
breve, vão se transformar em
objetos inúteis, paralisados por
falta de espaço, quem sabe surja, dentre as alternativas em
andamento, a idéia da volta dos
antigos bondes. Infelizmente,
ainda assim, muito pouca coisa
seria como dantes, pois a sociabilidade perdida não dependia
apenas dos bondes, mas das
formas de um certo tipo de convivência social que desapareceu para sempre.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do
Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre
outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).
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