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Iluminismo 2.0
TOM CONCILIADOR DE STEVEN PINKER SURPREENDE AO TENTAR EQUILIBRAR CIÊNCIA E MORAL
COLUNISTA DA FOLHA
Na balaustrada do
bangalô da pousada em Serra Grande (BA), quatro pedaços de banana
atraem um sagüi. Sem tocá-los,
ele se senta ao lado, mantendo
guarda, e lança silvos agudos de
chamado. Em poucos segundos
baixa o resto do bando, meia
dúzia de macacos que atacam
as frutas com dedicação. O primeiro a chegar fica sem comer.
Um mico altruísta, sem dúvida. Seu comportamento, duas
ou três décadas atrás, seria descrito em termos de etologia
tingida com sociobiologia: um
gesto instintivo que maximiza
a chance de cópias de seus genes multiplicarem-se na próxima geração (como o diminuto
filhote nas costas da fêmea,
quiçá prole sua). Nada a ver,
porém, com a altitude rarefeita
da filosofia moral.
Steven Pinker, com seu artigo "O Instinto Moral", alerta o
público leigo de que esse panorama está mudando. E rápido.
De um lado, estudo após estudo de gente como Frans de
Waal mostram o quanto pode
haver de "humano" em animais, como macacos que recusam comida se isso implicar
dano a um semelhante.
De outro, imagens cerebrais
-na esteira de António Damásio- registram o quanto há de
"animal" (emocional) em atitudes morais de seres humanos,
que tomam decisões com as
entranhas e só depois as justificam com a razão (literalmente
"racionalizando-as").
Para quem conhece outros
trabalhos de Pinker, no estilo
de livros como "Tábula Rasa", o
tom quase conciliador do psicólogo evolucionista pode surpreender. Seu passado sociobiológico faria supor que se alinhasse com Richard Dawkins,
Sam Harris e Christopher Hitchens na cruzada contra o delírio da religião, suposta fonte de
todos os males do mundo. Não:
o que se lê no artigo é uma defesa do terreno comum que os
Novos Ateus bombardeiam de
modo incansável.
Não se iluda o leitor com a fixação de Pinker pela moralidade em geral. Sem dúvida a investigação especulativa das
motivações e imperativos pode
e vai beneficiar-se da pesquisa
empírica no campo em formação da ciência moral (com arrepios garantidos para estudiosos das ciências humanas). É
de religião, porém, que se trata.
Lembrança de Dawkins
Não se pode deixar de pensar
em Dawkins ao ler: "No mínimo, a ciência nos diz que, mesmo quando a agenda de nossos
adversários é a mais desconcertante, eles talvez não sejam psicopatas amorais, mas sim atormentados por uma atitude
mental que lhes parece ser tão
mandatória e universal quanto
a nossa".
A seguir, Pinker faz uma mesura aos Novos Ateus: "É claro
que alguns adversários são de
fato psicopatas; outros estão
tão intoxicados por uma moralização punitiva que estão além
do limite da razão".
Enviesando um tanto a leitura, pode-se argüir que a sanha
da "moralização punitiva" parece animar igualmente os cruzados de Dawkins. Levados pela emoção do combate, estariam a afastar-se da ciência. É o
que afirma, com todas as letras,
Jonathan Haidt, professor de
psicologia da Universidade de
Virgínia que protagoniza um
vivo debate sobre moralidade e
religião nos EUA.
Boa parte das idéias compiladas por Pinker vem de Haidt.
Elas estão resumidas no ensaio
"Psicologia Moral e a Incompreensão da Religião", publicado na página de internet A Terceira Cultura (www.edge.org/
3rd_culture).
Pelo argumento de Haidt, os
Novos Ateus desprezam o
componente funcional da religião, como fator de coesão comunitária. Fazem-no por privilegiar duas das cinco "cores
primárias" plantadas pela evolução no "órgão moral" dos primatas. A saber, as noções de
dano/proteção e eqüidade/justiça, que norteiam o pensamento moral ocidental de 25
séculos e são populares entre
progressistas.
Ignoram três (lealdade intragrupo, autoridade/respeito e
pureza/sacralidade), muito caras para outras culturas (Japão
e Índia, para ficar entre aliados), religiosos e conservadores em geral.
Ao concentrar-se em aspectos cognitivos (a falsidade patente) das crenças religiosas,
Dawkins e companhia na realidade miram em atrocidades
não menos patentes praticadas
em nome da religião (embora
não exista nexo lógico nem teórico entre falsidade e atrocidade). Parecem seguros de que
processos tão complexos quanto o terror islâmico se explicariam com base em comportamentos individuais (neste caso,
crenças e delírios).
Para Haidt, são presas de um
"individualismo metodológico" -má ciência, que os impede de captar aspectos funcionais da religião ressaltados já
por Durkheim (1858-1917).
A perspectiva de Haidt não é
isenta de problemas. Soa um
tanto ingênuo seu recurso a levantamentos nos EUA mostrando que pessoas religiosas
são mais felizes, têm melhor
saúde e fazem mais caridade.
Michael Shermer, no debate
on-line que se seguiu à publicação do ensaio, cita outros estudos sugerindo uma correlação
invertida entre religiosidade e
bem-estar social (homicídios,
suicídios etc.) quando se cotejam os EUA, ultracarolas, com
outros países.
Dois coelhos
Também é discutível sua
afirmação -corroborada por
Pinker- de que a religiosidade
seja adaptativa, em sentido
darwinista, e portanto herdável
("nos genes").
Por fim, há uma objeção arrasadora de Marc Hauser: não
se pode saber se é a propensão
para a vida comunitária que leva as pessoas à religião ou vice-versa.
De todo modo, a perspectiva
aberta por Haidt oferece a vantagem de dar conta de dois coelhos. De uma parte, permite superar a dicotomia universalismo/relativismo, como assinala
Pinker: "As cinco esferas morais são universais, um legado
da evolução. Mas como elas se
classificam em importância, e
qual é acionada para moralizar
cada área da vida social -sexo,
governo, comércio, religião,
dieta e assim por diante-, depende da cultura".
De outra parte, seus lampejos ajudam a reciclar os excessos do cientificismo. "Em suma, eu acredito que o iluminismo 2.0 requer a moralidade
2.0", esclarece Haidt em sua
resposta aos críticos do ensaio;
"mais conhecedora das limitações da razão, mais aberta a
abordagens multiníveis, nas
quais grupos às vezes são unidades de análise, e mais humilde na sua asserção de que a moralidade individualista e contratualista da comunidade
científica está certa, e certa para todo mundo".
(MARCELO LEITE)
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