São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

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Iluminismo 2.0

TOM CONCILIADOR DE STEVEN PINKER SURPREENDE AO TENTAR EQUILIBRAR CIÊNCIA E MORAL

COLUNISTA DA FOLHA

Na balaustrada do bangalô da pousada em Serra Grande (BA), quatro pedaços de banana atraem um sagüi. Sem tocá-los, ele se senta ao lado, mantendo guarda, e lança silvos agudos de chamado. Em poucos segundos baixa o resto do bando, meia dúzia de macacos que atacam as frutas com dedicação. O primeiro a chegar fica sem comer.
Um mico altruísta, sem dúvida. Seu comportamento, duas ou três décadas atrás, seria descrito em termos de etologia tingida com sociobiologia: um gesto instintivo que maximiza a chance de cópias de seus genes multiplicarem-se na próxima geração (como o diminuto filhote nas costas da fêmea, quiçá prole sua). Nada a ver, porém, com a altitude rarefeita da filosofia moral.
Steven Pinker, com seu artigo "O Instinto Moral", alerta o público leigo de que esse panorama está mudando. E rápido.
De um lado, estudo após estudo de gente como Frans de Waal mostram o quanto pode haver de "humano" em animais, como macacos que recusam comida se isso implicar dano a um semelhante.
De outro, imagens cerebrais -na esteira de António Damásio- registram o quanto há de "animal" (emocional) em atitudes morais de seres humanos, que tomam decisões com as entranhas e só depois as justificam com a razão (literalmente "racionalizando-as").
Para quem conhece outros trabalhos de Pinker, no estilo de livros como "Tábula Rasa", o tom quase conciliador do psicólogo evolucionista pode surpreender. Seu passado sociobiológico faria supor que se alinhasse com Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens na cruzada contra o delírio da religião, suposta fonte de todos os males do mundo. Não: o que se lê no artigo é uma defesa do terreno comum que os Novos Ateus bombardeiam de modo incansável.
Não se iluda o leitor com a fixação de Pinker pela moralidade em geral. Sem dúvida a investigação especulativa das motivações e imperativos pode e vai beneficiar-se da pesquisa empírica no campo em formação da ciência moral (com arrepios garantidos para estudiosos das ciências humanas). É de religião, porém, que se trata.

Lembrança de Dawkins
Não se pode deixar de pensar em Dawkins ao ler: "No mínimo, a ciência nos diz que, mesmo quando a agenda de nossos adversários é a mais desconcertante, eles talvez não sejam psicopatas amorais, mas sim atormentados por uma atitude mental que lhes parece ser tão mandatória e universal quanto a nossa".
A seguir, Pinker faz uma mesura aos Novos Ateus: "É claro que alguns adversários são de fato psicopatas; outros estão tão intoxicados por uma moralização punitiva que estão além do limite da razão".
Enviesando um tanto a leitura, pode-se argüir que a sanha da "moralização punitiva" parece animar igualmente os cruzados de Dawkins. Levados pela emoção do combate, estariam a afastar-se da ciência. É o que afirma, com todas as letras, Jonathan Haidt, professor de psicologia da Universidade de Virgínia que protagoniza um vivo debate sobre moralidade e religião nos EUA.
Boa parte das idéias compiladas por Pinker vem de Haidt. Elas estão resumidas no ensaio "Psicologia Moral e a Incompreensão da Religião", publicado na página de internet A Terceira Cultura (www.edge.org/ 3rd_culture).
Pelo argumento de Haidt, os Novos Ateus desprezam o componente funcional da religião, como fator de coesão comunitária. Fazem-no por privilegiar duas das cinco "cores primárias" plantadas pela evolução no "órgão moral" dos primatas. A saber, as noções de dano/proteção e eqüidade/justiça, que norteiam o pensamento moral ocidental de 25 séculos e são populares entre progressistas.
Ignoram três (lealdade intragrupo, autoridade/respeito e pureza/sacralidade), muito caras para outras culturas (Japão e Índia, para ficar entre aliados), religiosos e conservadores em geral.
Ao concentrar-se em aspectos cognitivos (a falsidade patente) das crenças religiosas, Dawkins e companhia na realidade miram em atrocidades não menos patentes praticadas em nome da religião (embora não exista nexo lógico nem teórico entre falsidade e atrocidade). Parecem seguros de que processos tão complexos quanto o terror islâmico se explicariam com base em comportamentos individuais (neste caso, crenças e delírios).
Para Haidt, são presas de um "individualismo metodológico" -má ciência, que os impede de captar aspectos funcionais da religião ressaltados já por Durkheim (1858-1917).
A perspectiva de Haidt não é isenta de problemas. Soa um tanto ingênuo seu recurso a levantamentos nos EUA mostrando que pessoas religiosas são mais felizes, têm melhor saúde e fazem mais caridade.
Michael Shermer, no debate on-line que se seguiu à publicação do ensaio, cita outros estudos sugerindo uma correlação invertida entre religiosidade e bem-estar social (homicídios, suicídios etc.) quando se cotejam os EUA, ultracarolas, com outros países.

Dois coelhos
Também é discutível sua afirmação -corroborada por Pinker- de que a religiosidade seja adaptativa, em sentido darwinista, e portanto herdável ("nos genes").
Por fim, há uma objeção arrasadora de Marc Hauser: não se pode saber se é a propensão para a vida comunitária que leva as pessoas à religião ou vice-versa.
De todo modo, a perspectiva aberta por Haidt oferece a vantagem de dar conta de dois coelhos. De uma parte, permite superar a dicotomia universalismo/relativismo, como assinala Pinker: "As cinco esferas morais são universais, um legado da evolução. Mas como elas se classificam em importância, e qual é acionada para moralizar cada área da vida social -sexo, governo, comércio, religião, dieta e assim por diante-, depende da cultura".
De outra parte, seus lampejos ajudam a reciclar os excessos do cientificismo. "Em suma, eu acredito que o iluminismo 2.0 requer a moralidade 2.0", esclarece Haidt em sua resposta aos críticos do ensaio; "mais conhecedora das limitações da razão, mais aberta a abordagens multiníveis, nas quais grupos às vezes são unidades de análise, e mais humilde na sua asserção de que a moralidade individualista e contratualista da comunidade científica está certa, e certa para todo mundo". (MARCELO LEITE)


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