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Sons dessacralizados
"A Explosão Gospel" analisa como o gênero mudou o protestantismo, e "Música e Simbolização" enfoca o
mangue beat
LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
O lançamento dos livros "A Explosão
Gospel", de Magali
do Nascimento
Cunha, e "Música
e Simbolização", de Rejane Sá
Markman, mostra a diversidade na abordagem dos estudos
da cultura contemporânea. O
primeiro, informativo e crítico,
e o segundo, acadêmico, no
sentido mais estéril do termo.
Não consigo entender por
que a universidade mantém
certas fôrmas para as teses universitárias, que se repetem à
exaustão, num tipo de formulação que muitas das vezes serve
para desconversar sobre o tema, criando uma casca teórica
que preenche o espaço das
idéias originais.
Desse marasmo convencional e acadêmico escapa o livro
"A Explosão Gospel". A autora,
membro da Igreja Metodista e
pesquisadora, traça um elucidativo painel das transformações por que passou o universo
do protestantismo no Brasil
desde sua implementação por
missionários norte-americanos no século 19.
Conclui que, além da música,
uma nova forma de relacionamento entre igreja e sociedade,
a criação de um mercado próprio de consumo, resultou num
novo modo de viver do protestante, que "resulta numa modernização de superfície".
Uma relativização da "ética
protestante", já estudada pelo
sociólogo alemão Max Weber,
que nesse novo contexto redimensiona "a santidade puritana de repressão do corpo e valoriza a expressão corporal tanto no culto quanto nos espaços
de lazer e entretenimento criados para os evangélicos".
Ao contrário da Igreja Católica, os protestantes, de forma
geral, agregaram a tecnologia
da comunicação -a "espetacularização da fé"- buscando a
ocupação de espaços na televisão, no rádio e no mercado fonográfico: "Não há mais culto
em igrejas protestantes sem
eletrônica, e não há mais devoção pessoal sem a mídia", segundo a autora.
É interessante notar que esse movimento remonta aos
anos 1950. Já nos anos 70, era
comum encontrar grupos de
jovens, com um visual hippie,
entrando nos ônibus das grandes cidades brasileiras entoando canções protestantes; eram
"os meninos de Deus".
Esse percurso é tratado de
forma detalhada até a nova geração dos cantores gospel, que
inclui uma ampla fauna, desde
Mara Maravilha a Baby do Brasil -que fundou sua própria
igreja- até os DJs de Cristo e
os "adoradores", uma forma híbrida de músico e pastor.
Um pequeno exemplo desse
movimento em direção à sociedade foi minha classe de composição na Universidade Estadual de Campinas (SP) nos
anos 90, composta em quase
sua totalidade por estudantes
evangélicos, bancados por suas
igrejas para que, depois de formados, nelas trabalhassem.
O livro identifica também
uma "postura de superioridade
cultural dos missionários protestantes estadunidenses", que
rejeitaram incorporar a cultura
popular brasileira -assim como fizera Lutero em relação à
cultura alemã-, para concluir
que todo esse movimento preserva ponto básicos do conservadorismo protestante: os dualismos igreja/mundo e sagrado/profano e o sectarismo, o
antiecumenismo, o clericalismo e o antiintelectualismo.
"A Explosão Gospel" é um livro essencial para entender o
fenômeno dos evangélicos,
suas estratégias e formas de relacionamento com o mundo de
hoje. Um exemplo de pesquisa
que não patinou no limbo do
academicismo.
Contraponto
Já "Música e Simbolização"
aborda o movimento musical
mangue beat como fenômeno
de contracultura. Originalmente uma tese de doutorado, sofre
dos vícios da metodologia -tão
valorizada na academia, mas
que, sem o concurso de idéias
originais, esgota-se num discurso fechado sobre si mesmo.
O livro nos conduz por explanações contextuais para cada
novo tópico abordado. Conceituações retrospectivas nos remetem sucessivamente à Idade
da Pedra de cada tema. Apenas
o último terço do livro aborda
diretamente o universo do
mangue beat.
Após esse périplo contextual,
somos informados de que o
mangue beat foi rechaçado pelo
conservadorismo local dos "folcloristas" e de intelectuais ligados ao Movimento Armorial e
que suas músicas, além de incorporarem ritmos populares
como o maracatu e os caboclinhos, entre outros, fazem uso
de expressões idiomáticas populares e apontam para a critica social.
Ora, isso já está explicitado
nas próprias composições. A
questão é que às vezes as obrigações da metodologia ocupam
o espaço do próprio aprofundamento do tema.
Ao final da leitura, complementada por mapas e tabelas
que nada acrescentam de substancial, nos damos conta de que
o tema tanto poderia ser o
mangue beat quanto a evolução
do cultivo da cana-de-açúcar...
Uma vez que a fôrma do discurso prevalece.
São as mazelas da academia e
de certa metodologia que serve
mais para esconder o objeto.
LIVIO TRAGTENBERG é compositor e diretor
musical da Orquestra de Músicos das Ruas de
São Paulo.
A EXPLOSÃO GOSPEL
Autor: Magali do Nascimento Cunha
Editora: Mauad (tel. 0/xx/21/3479-7422)
Quanto: R$ 38 (232 págs.)
MÚSICA E SIMBOLIZAÇÃO
Autor: Rejane Sá Markman
Editora: Annablume (tel. 0/xx/11/
3031-9727)
Quanto: R$ 30 (232 págs.)
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