São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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O país do elefante

por Roberto Schwarz


UM DOS PRINCIPAIS CRÍTICOS LITERÁRIOS DO PAÍS, AUTOR DE "AO VENCEDOR AS BATATAS", DESENVOLVE UMA INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL DO BRASIL A PARTIR DA ANÁLISE DA POESIA DE FRANCISCO ALVIM


Na boa explicação de Cacaso, Francisco Alvim é "o poeta dos outros", aquele que encontra a sua voz ao ceder a palavra aos demais, a ponto de transformar a solicitude em técnica de poesia (1). É claro que vai um pouco de malícia nessa descrição do escritor como bom samaritano. Como o próprio Cacaso sublinha, além de abertura, a consideração ao próximo não deixa de ser um meio artístico para melhor apropriar-se dele em flagrante. Acresce que aqueles "outros" não coincidem com o "outro" de que fala a filosofia, ligado a uma condição humana geral. Pertencem a uma esfera menos abstrata, que não inclui os propriamente estranhos. A expressão faz pensar nos brasileiros "que nem eu", de Mário de Andrade, ou em "todos esses macumbeiros", de que Macunaíma -também um "coraçãozinho dos outros"- é "o herói sem nenhum caráter" (2). É o mesmo âmbito recoberto de familiaridade a que se referia Drummond, com cordial ambivalência, ao dizer que "[a"qui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só" (3). Noutras palavras, passados três quartos de século, a pesquisa modernista da peculiaridade brasileira, de nossas falas, relações, ritmos, cumplicidades etc. volta à ordem do dia no livro de Francisco Alvim (4). Não foi pouco o que mudou no intervalo, e o tino histórico e estético para essas mudanças é uma qualidade do poeta.
O essencial de sua posição cabe em poucas palavras. "QUER VER?// Escuta" (5). Está aí a poética do livro, mais complexa do que parece, desde que notemos a cor local da inflexão. A indisciplina no uso das segundas e terceiras pessoas gramaticais, à brasileira, bem como certa informalidade no trato, além do modernismo oswaldiano da composição, cuja brevidade não deixa de ser um lance de humor, destoam do corte universalista da máxima. De fato, licença gramatical e coloquialismo à parte, estaríamos diante de uma lição lapidar, impessoal, fora do tempo etc., sobre as relações entre visão e palavra. Como é óbvio, a peça não é bem isso, embora não deixe de sê-lo um pouco. As particularidades sociais e culturais de sua entonação puxam para um mundo especial, tornando instáveis as acepções. As mesmas palavras ora sugerem a pessoa inteligente qualquer, que recomenda a humildade da escuta, ora o poeta douto e conciso, ora o brasileiro esclarecido e desabusado, que vai avisando o interlocutor de que não perde por esperar. Note-se que esse três-em-um, sustentado pela fala corrente, nada tem da complicação interior do Eu romântico, dos seres ou das situações de exceção. O seu lugar é o cotidiano, cuja peculiaridade nacional e complexidade nos interrogam vivamente. Radica aí, se não estou errado, o segredo dessa literatura. Linguagem e situações rigorosamente comuns, mas pertencentes a uma formação social singular, em discrepância, ou em falta, com a norma da civilização contemporânea.
Há ainda a posição equívoca em que o poema vem colocado no livro, seja ao final de uma série dominada pelo sentimento lírico, seja no início de outra, marcada pela notação crítico-realista, com alto teor de despropósitos sabidamente brasileiros. Uma vez que se encaixa nas duas, o "QUER VER?" da pergunta-título tanto pode expressar o convite à poesia, quanto o humor escarninho de quem conhece a mula-sem-cabeça de que está falando e de que se sabe parte (a expressão é de Francisco Alvim).
O livro deve a consistência ao tom, que na verdade é a dramatização de um conteúdo abstrato, sempre o mesmo, levada a cabo de maneiras muito diversas, com a liberdade de meios estabelecida pelo modernismo. Trata-se das relações brasileiras entre informalidade e norma, cuja heterodoxia, dependendo do ponto de vista, funciona como um defeito de fábrica ou como um presente dos deuses. Muito se escreveu a respeito, e o tema tem mesmo alcance (6). Seja como for, a sua transposição metódica para a estrutura dos poemas é a marca d'água do conjunto. Isso posto, não é preciso ser artista para perceber que as dissonâncias correspondentes àquela constelação se encontram espalhadas por todos os cantos da vida nacional como fatos notórios. Elas podem ser colecionadas como anedotas, em que está cifrada uma condição histórica, podem ser reduzidas a diagrama, formando módulos e variações, com potência de revelação, e podem ser inventadas e construídas, de modo a explorar as possibilidades extremas da idéia.


No correr da leitura a referência nacional se impõe, conferindo aos poemas, sobretudo aos brevíssimos, uma certa ressonância suplementar, para a qual o leitor vai se educando


O poeta, que tem um ouvido diabólico para elas, fez de tudo isso um pouco. A variedade de que são capazes vai da inocência pitoresca "ARGUMENTO// Mas se todos fazem" (7) aos toques impalpáveis, nem sempre fáceis de notar, mas suficientes para que o tema não se perca. Assim, por exemplo, a formalidade suntuosa, muito articulada e um pouco ridícula de uma argumentação oficial francesa faz ressaltar, na página em frente, as claudicações de um funcionário compatriota nosso: "Eu quis colocar esse tipo de coisa/ mas então pensei/ mas meu deus do céu/ aí ele disse" (8). Analogamente, a inteireza ultranítida cultivada num par de espanholadas verbais contrasta com a malandragem, ou com a falta de acabamento, das dicções nacionais.
São outras tantas formas de armar a existência literária do espaço brasileiro, configurando-lhe a face externa, no concerto das nações, por meio da diferença de tom entre as línguas.
Num poema notável sobre a caminhada do olhar na trama da luz, assunto filosófico deveras, o movimento é introduzido por um "Às vezes", que o desuniversaliza, ao qual em seguida se agregam coloquialismos leves, fazendo que o encontro do olhar com o tempo e o sempre, que não estão longe, se dê como que entre conhecidos, ali na esquina, onde tudo pára, sem destino, perguntando pelo "lugar?" (9). Ou seja, há um sotaque e uma circunstância, além do antropomorfismo, amenizando os rigores da abstração. No poema de abertura, "CARNAVAL", a transfiguração paradoxal e depreciativa da água em deserto talvez se explique pela ressaca do personagem, cuja sede não há água que mate, o que desde que o pressuposto seja adivinhado faz sorrir da questão final em que o poema desemboca, também ela filosófica, sobre a realidade e a irrealidade da poesia (10). Em "COMENTÁRIO", um poema no qual não se sabe quem é quem e as frases não se encadeiam direito, o segredo da gramática atrapalhada está no medo, nos vazios mentais que se instalam em quem fala da ditadura (11). Etc.
Tomadas uma a uma, algumas dissonâncias remetem ao país, concebido na sua má-formação estrutural, outras não. No correr da leitura a referência nacional se impõe, conferindo aos poemas, sobretudo aos brevíssimos, uma certa ressonância suplementar, para a qual o leitor vai se educando. "FUTEBOL// Tem bola em que ele não vai" (12). A sabedoria (ou reclamação) não funciona só para o jogador, mas também para as demais categorias obrigadas à prudência, como o político, o pai de família, o traficante, sem excetuar as mulheres, quando for o caso. Embora o assunto seja esportivo, a zona de risco e vale-tudo para a qual aponta não tem fronteira nítida que a separe do terror exercido, noutras páginas e no passado do livro, pelo regime militar, cuja sombra, que não desaparece, também é uma figura da informalidade. A revelação está no parentesco entre os medos, entre as decisões de maneirar.
Polarizados com a totalidade social, os poemas passam a dispor de novas possibilidades de alusão, equivalência e elipse, que lhes permitem enxugamento ainda maior, até o ponto em que o humorismo deixa de ser um objetivo. Digamos que, a despeito do engenho, a porção de espírito que circula em cada um é restrita, como corresponde ao gênero, vizinho do achado e da piada, ao contrário do que se passa no espaço visado através deles, aberto em direção da realidade histórica, para além da fronteira do texto -mas será de texto que se trata, se a parte da elipse é tão grande? Rarefação e referência crua, mas com objeto disperso, estão juntas. Uma poesia por indicação sumária, em pontilhados, "cosa mentale", hipotética, ora em chave de realidade, ora em chave de alegoria, algo como os "Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros (...)" preconizados no "Manifesto Antropófago" (13).
Aqui a leitura adequada é francamente ativista, a mais livre, instruída e perspicaz possível, complementar da forma elíptica extrema exercitada pelo poeta. Cabe ao leitor afeito ao mundo acreditar nos indícios de toda ordem e imaginar as situações a que as falas pertencem, quando então toma conhecimento do unilateralismo destas, sempre picante, e entra em matéria, pondo em perspectiva as perspectivas e não raro virando pelo avesso o dito que foi o ponto de partida. Digamos que cada poema, mesmo quando composto de apenas um título e uma linha, é episódio e perfil da vida de uma totalidade, que é de ficção muito relativamente, só pelo estímulo de origem. Assim, ao mesmo tempo em que leva a condensação ao limite, o artista a compensa noutro plano, buscando a soltura e a amplitude do universo histórico-social. Este é representado sem recurso às continuidades de intriga e personagem, ou seja, fora dos pressupostos individualistas e dos travejamentos épico e dramático oferecidos pela tradição. O aspecto iludido e ultrapassado da problemática individual, que a certa altura levou à crise o drama e o romance oitocentista, está como que explicitado pela sua miniaturização nos poemas-minuto, onde dor de cotovelo, ressentimento social, remorso de classe, guerra em família, medo de apanhar, fumaças de grandeza, vontade de passar a perna etc. estão reduzidos à devida proporção, sem prejuízo das incríveis sutilezas. Já a gravitação de conjunto, à distância das emoções baratas do romanesco, que no entanto são o seu motor, é um enigma de outra ordem, que é preciso escutar para ver. Estamos diante de um livro, e não de poesias avulsas. Noutras palavras, "Elefante" participa da categoria especial das obras em que a verificação recíproca entre as formas artísticas e a experiência histórica está em processo. Dito isso, os poemas se agrupam segundo aspectos inesperados, do simples contraste ao comentário mútuo fulminante, e interagem à distância etc. "PARQUE// É bom/ mas é muito misturado" (14). Eis aí uma opinião esclarecida "sui generis", favorável aos melhoramentos públicos, embora hostil à participação popular. Nada menos do que uma variante-chave do progressismo nacional, preso até hoje às origens coloniais. Não custa dizer com todas as letras que num parque sem mistura não seria admitida a massa indistinta dos pobres, negros ou brancos, salvo a serviço, na condição de babá, guarda ou acompanhante de velhinhos e cachorros. A formulação antiga, anterior ao Brasil pseudo-integrado pela mídia, faz sorrir. Não obstante, o sentimento antipovo não desapareceu e continua, com os ajustes devidos, a ser um esteio da fratura social. Isoladamente, a vinheta se poderia ler em veia saudosista, documentária, oligárquica, antioligárquica etc. Uma originalidade e sobretudo um acerto de Francisco Alvim consistem em integrá-la à crise do presente. "OLHA// Um preto falando/ com toda clareza/ e simpatia humana" (15). Ao contrário do anterior, este poema espantoso registra uma vitória sobre o preconceito, mas tão preconceituosa ela mesma, que faz engolir em seco. O resultado crítico fica ainda mais intrincado se notarmos que o gosto pela fala humana, simpática e clara, que de fato é esclarecido e de fato comporta o reconhecimento da pessoa e a hipótese da emancipação, hoje deixou de contar, de sorte que aquele momento do pior preconceito aparece agora como a oportunidade de superação que foi perdida.

A gente distinta e os sem-direito
"MAS// é limpinha" (16). O conteúdo do poema naturalmente é tudo o que ele cala e que terá precedido a adversativa do título: a enciclopédia das objeções que os proprietários fazem aos sem-propriedade, obrigados a trabalhar para eles, à qual no caso só escapa a virtude menor que tem uma mocinha de não ser muito suja. A expressão não perde nada ao passar da sala de estar para a zona do meretrício, como bem observou um amigo.
"DESCARTÁVEL// vontade de me jogar fora" (17). Não se sabe se a vontade é alheia ou própria, possivelmente as duas coisas. Mas mesmo que seja o desejo de entregar os pontos, trata-se da interiorização das apreciações de classe que viemos comentando. Embora não seja a única possível, a compreensão social é recomendada pela meia dúzia dos poemas circundantes.


Os sem-direito são capazes de civilidade peculiar, e também de truculência aprendida com os de cima; ao passo que os esclarecidos aspiram à malandragem desculpável dos pequenos delinquentes


É claro que entre este "descartável" e o anterior "misturado" passou tempo. Uma noção pertence à sociedade de consumo, a outra terá nascido com o fim da escravidão. Ainda assim, a constelação de classe a que as duas se referem permanece constante: de um lado, a gente distinta e esclarecida, dita civilizada, mas que manda; de outro, a massa dos sem-direito. O condicionamento recíproco dos campos, nos termos paralegais da autoridade e da informalidade, é um nexo central e persistente de nossa experiência. O ouvido de Francisco Alvim para as variantes dessa equação lhe permite a unificação certeira e surpreendente de esferas que não se costumam enxergar sob um mesmo signo. Anedotas de Minas, mexericos da ditadura, negócios de droga, mães que pegam no pesado em casa e na rua, virações no estrangeiro, um desastre de automóvel devido à dor de corno, apertos do funcionalismo, da política e da corrupção, o empurra-empurra da culpa nas separações conjugais, o quero-não-quero amoroso etc. compartilham alguma coisa real, de sub, de impróprio, que o seu trabalho literário soube objetivar. Na grande tradição de Machado de Assis, o poeta conhece a ligação interna entre os opostos da sociedade brasileira e recusa as fixações estereotipadas. Os sem-direito são capazes de civilidade peculiar, e também de truculência aprendida com os de cima. Ao passo que os esclarecidos aspiram à malandragem desculpável dos pequenos delinquentes, sem prejuízo dos momentos de altura amorosa ou reflexiva, ou de barbárie.
Quando dizia que Chico Alvim é o poeta dos outros, Cacaso queria salientar a generosidade não-burguesa do impulso que leva o artista culto a buscar o autoconhecimento e a expressão em palavras e situações alheias, do outro lado da divisória, superadas as barreiras que separam o aprovado do reprovado ou desprezado. E, de fato, a figura artística de Chico respira uma atmosfera de humanidade que é excepcional e deriva daí.
Entretanto, as divisões sociais que opõem os patrícios nem por isso deixam de existir, e a simpatia atenta do poeta não só não as apaga, como as salienta e oferece à contemplação. Talvez não haja na poesia brasileira obra em que elas e suas sutilezas brutais tenham tanta presença. Ironicamente, ao emprestar a voz aos outros, o artista desprendido e fraternal dá direito de cidade, na poesia, à fauna das degradações produzidas pelo sistema dos interesses em choque. Veja-se por exemplo "COMERCIANTE, MANICURA, DECORADOR", um poema no qual a gesticulação do melodrama suburbano é refletida, por meio do título, num ranking de ganha-pães sofríveis, com efeito entre democrático e sardônico-senhorial (18).
Em linha mais escusa, mas sempre ligada a descobertas da escuta e a engrenagens reais, há as suposições ligando compra de terrenos, sucessão presidencial e tortura de presos políticos, adivinhadas de passagem, a partir de frases entrecortadas (19). O escritor busca a poesia e o país em territórios insólitos, muitas vezes vexaminosos, frequentados normalmente só pela subliteratura e pela complacência com a sordidez.
Dito isso, as vozes que falam através do poeta não são de ninguém em particular, o que não quer dizer que sejam de todo mundo; ou, ainda, podem ser de diversos, mas não do mesmo modo. Anônimas e típicas, nem individualizadas nem universais, elas têm a polivalência do uso corrente, sempre em via de especificação, com encaixe estrutural em nosso processo coletivo, a cujas posições cardeais respondem alternadamente e cujo padrão de desigualdade veiculam. Muitas vezes, graças ao malabarismo da dramaturgia, não sabemos de quem são, a quem se dirigem ou a quem, entre os presentes, se deve o próprio título do poema, que não é uma moldura neutra e que participa do jogo de incertezas do resto. Com a diversidade de leituras a que obriga, essa construção indeterminada, mas sempre exata, deixa que fale em ato a nossa sociedade um imenso sujeito automático cujas assimetrias funcionais vão determinando destinos e nos ensinando o pouco que somos diante dele. O ponto de vista é de fulana ou de beltrano? Embora as palavras sejam as mesmas, podendo servir a ambos, a diferença no efeito é total, para vantagem ou prejuízo de um ou outro. A figura que lembra o acidente de carro e a freada idiota que o causou é Cristiano, como parece, ou é Darlene, caso mudemos a entonação do penúltimo verso? Não sabemos nada deles além dos nomes e das diferenças sociais que estes sugerem (moço fino e moça com nome de atriz), diferenças que podem muito bem não coincidir com a realidade do caso e não passar de preconceito (20). Nada mais objetivo que essas oposições talvez inexistentes, e aliás sem importância, em que a existência interiorizada e o poder da estrutura se tornam tangíveis. Os exemplos se podem multiplicar à vontade. Os poemas de Francisco Alvim têm uma evidência especial, muito deles, em que o autor praticamente desaparece, cumprindo um dos votos radicais do artista de vanguarda. Contribuem para isso o material expressivo pré-moldado no cotidiano, a técnica de sua exposição inquisitiva e enxuta, aprendida em Oswald, além da atitude geral, que infunde acerto e alcance ao conjunto. A sustentação de fundo é dada pela grande inteligência crítica das relações sociais brasileiras, encaradas com recuo, na sua complementaridade mais ou menos oculta e no seu desvio do padrão moderno, mas sempre como nossas. No plano da política artística, há a recusa da individualização, seja das personagens, seja da persona do poeta, já que este não compõe a partir de uma mitologia pessoal (com as exceções que veremos). A complexidade e a poesia que ele procura têm como sítio o domínio comum, acessível a todos, à maneira do que queria o poeta de esquerda João Cabral, por oposição aos desvãos bolorentos do privado. A mesma recusa opera no plano da linguagem, cuja unidade básica não são versos nem palavras, mas falas tomadas à vida de relação, ao dia-a-dia do país-problema, cuja estranheza atua como princípio de seleção. As consequências desse ponto de partida, que é uma opção formal e material ostensivamente antilírica, são decisivas. Para lhe apanhar a idéia, não custa lembrar a epígrafe de "O Corpo Fora", o livro anterior de Chico, buscada nas "Fusées" de Baudelaire: "Imensa profundeza de pensamento nas locuções vulgares, buracos cavados por gerações de formigas" (21).

Limpeza das falas
Voltando à fala comum, digamos que a peculiaridade que se expressa nela é menos do poeta que da própria formação social em funcionamento, na qual nos reconhecemos e examinamos para bem e para mal, isto é, entre alegres e consternados graças à invenção de uma arquitetura literária. A nota inquestionável das falas, impossíveis de serem melhoradas, é extra-artística em parte, resultado do uso coletivo, muitas vezes popular ou meio popular. Coladas ao cotidiano e a suas considerações, elas têm algo de provado, diferente dos acertos da fatura individual. Comentar os seus abismos é sempre mais que entender o poeta. O desejo próprio à poesia moderna, que preferia ser a comunicar, acha aqui uma realização imprevista. Por serem respostas imediatas a condições sociais correntes, estas falas de fato são, com a clareza de condutas raciocinadas que a prática sancionou. Apesar de ocasionais e escolhidas, elas têm uma existência densa, objetiva, acima da veleidade, que interpela o leitor de maneira também incomum. Isso não impede que tenham sido afinadas pelo artista, cujo ouvido com certeza não se limitou à passividade do registro.
A limpeza das falas, sem luxo, redundâncias, frases-feitas, figuras de linguagem, arremate lapidar, universalismos etc., ou seja, sem traço literário convencional, é trabalho literário seu, que lhes decanta o conteúdo pragmático e as torna comensuráveis, peças de um mesmo sistema, abrindo à consideração um verdadeiro fundo nacional de ironias.
Este salta do livro para a vida do leitor, como saltou da vida nacional para dentro do livro. Os procedimentos não são ditados pela cultura do verso, mas pela funcionalidade direta para a apresentação, em especial para o seu regime de ambiguidade social generalizada, através da "(...) ironia/ das polimorfas vozes/ sibilinas/ transtornadas no ouvido/ da língua" (22). Assim, a separação em linhas que não são versos serve para expor e para confundir, ou tornar policêntrica, a lógica da ação, bem acentuada dentro do mesmo espírito. Algo semelhante ocorre na pontuação, onde o papel organizador conferido às maiúsculas dispensa o uso dos pontos finais, criando possibilidades próprias de confusão, amplamente exploradas. O procedimento técnico mais espetacular do livro, tomado de empréstimo à arte da ficção moderna, são as descontinuidades de perspectiva no interior dos poemas, que não têm ponto estável sequer no título. As mutações são operadas com habilidade de estontear. Embora exíguo, o campo de manobras é regrado pela engrenagem social, de modo que as inversões de ponto de vista adquirem dimensão didática, proporcionando distanciamentos e revelações. Com a certeza política a menos, há aqui algo de brechtiano. Aliás, o minimalismo governado pela acuidade histórico-social, atento ao que haja de situado e de conduta nas expressões, obedece a um propósito demonstrativo, paralelo ao de Brecht. É ouvir para ver. O enxugamento de falas, cenas, sequências, divagações etc., longe de empobrecer, impulsiona o jogo das conexões viáveis. Combinam-se a redução, o entrelaçamento virtual e a proliferação, buscando adensar a lógica das situações. A franqueza desse objetivo confere funcionalidade à pesquisa artística, distante da nota "aliteratada" comum no experimentalismo. A economia do formato mínimo leva naturalmente à depuração de quase-módulos e à variação das relações sociais de base, cuja representação adquire a contundência que vimos, para a qual a brevidade das formulações não deveria nos cegar. "ELA// Soca ela/ Soca" (23). Dependendo de quem tenha a palavra e de quem esteja ouvindo, "ela" manda socar ou está sendo socada. Isto se não for o poeta que recebe ordens da bandida. Ou será ele quem manda socar? A precariedade da gramática -um índice de classe- pode explicar a veemência do pedido, mas o contrário também é possível, ficando a nu a tenuidade do compromisso de nossos bem-postos com a correção gramatical, abalado ao primeiro solavanco (24). Em suma, a permutação sistemática dos enfoques opera em aliança com a inteligência social, à qual serve como um recurso analítico e de exploração, em contato estreito com a materialidade das relações. "E EU É QUE SOU BURRO// Você é o dono/ e deixa fazer o que ele faz?/ O que ele te deve/ vai ter que pagar" (25). Também aqui a voz que fala no corpo do poema pode não ser a mesma que fala no título, o qual por sua vez tanto pode ser introdução como conclusão. A figura que atiça (mulher? puxa-saco?) está coberta de razão, do ponto de vista da propriedade. A que ouve, sabendo que razão, ou melhor, direito legal, no caso podem não ser garantia suficiente -mas quais então as outras forças em jogo?-, tem a satisfação ácida, ligada à presença de terceiros, de dar nome à cena. Ri melhor quem põe o título, o que entretanto não muda o principal. Ação e piada vêm na conversa, mas a substância a decifrar está nas relações de poder ao fundo, intocadas pelo diálogo, as quais não são nomeadas nem afetadas pelo sarcasmo. Se o título vier antes do poema, e não depois, e for obra da mesma personagem que diz o texto, haveria outra leitura possível, menos interessante. No plano formal, considerada a conjuntura cabralino-concretista do momento, note-se a trilha própria explorada pelo poeta, que procura também ele os ganhos da redução e da combinatória, mas sem pagar tributo à ascese e à geometria, e sobretudo sem abandonar o mundo. Ainda na proximidade de Brecht, combinam-se a sutileza em alto grau e um gênero de reflexão robusta, a que não temos o costume de reconhecer categoria literária. Assim, sem prejuízo da multiplicação das perspectivas, há no conjunto a preferência pelo uso vivo, desafetado, com acento na fluidez pragmática e no aspecto agudo: um padrão estético adiantado, contrário à reverência, à autoridade e às suas pompas, e contrário também às grandes abstrações da ordem social burguesa, com as quais não combina e a que objeta a rigidez e a falta de naturalidade aqui e agora. A recusa visa o teor de máxima que possa haver nas condutas, a parte de pose dignitária e fachada enganosa que existe na dignidade abstrata, seja do indivíduo, seja das instituições: "Então bota de lado essa cerimônia/ e diga logo o que você pensa" (26).



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