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Trilhas minadas
"Nova Polícia", que está saindo no Brasil, revolucionou a forma de combate à
criminalidade nos EUA ao defender maior interação entre Estado e população
Alba Zaluar
especial para a Folha
À primeira vista, trata-se de um livro sobre mudanças organizacionais possíveis dentro dos departamentos de polícia em algumas cidades americanas escrito ainda na
década de 80. "A Nova Polícia" poderia
também ser lido como um receituário de
experiências bem-sucedidas, prontas para serem copiadas em qualquer lugar do
mundo, apesar de estar disponível em
português somente 16 anos depois de
publicado nos EUA. Mas não se trata
bem disso. O mote principal do livro é o
de que as estratégias para a prevenção e a
redução do crime devem focalizar as necessidades particulares de cada comunidade, nome dado tanto a cidades como a
pequenos bairros.
Nessa estratégia, o foco está posto nas
regras de patrulhamento, nas formas de
cooperação com os moradores, na descentralização do comando por área, no
planejamento, treinamento e recrutamento de "policiais de serviços" e de "civis" que passam a ser incorporados com
salários mais baixos para prestar serviços variados e atender a população, liberando os profissionais para as funções
mais especializadas da investigação e do
patrulhamento "pesado".
Portanto, não são tanto aquelas práticas mais identificadas com o respeito aos
direitos humanos (técnicas de interrogatório, conduta na vigilância etc.) que
mais preocupam os autores. Mesmo assim, a superação do racismo nas várias
forças policiais pesquisadas foi apontada
como condição "sine qua non" para a
transformação do modelo de polícia em
vigor até então.
Polícia desarmada
O livro inicia a
avaliação de experiências conduzidas em
seis cidades norte-americanas com as
constatações negativas a respeito dos tradicionais métodos de policiamento adotados nos Estados Unidos, lembrando a
fundação da primeira polícia metropolitana, a de Londres, criada por Robert
Peel em 1829. Este, para vencer os altos
índices de criminalidade, de corrupção
policial e de temor generalizado diante
dos abusos dos policiais, criou uma polícia uniformizada, mas desarmada, que
privilegiava os recrutas que possuíam laços com a comunidade e cujas carreiras
profissionais foram montadas a partir do
patrulhamento a pé.
Ao contrário, a polícia nos EUA apostou nas viaturas e nos armamentos pesados. Por isso mesmo, como afirmou um
policial de Chicago que entrevistei em
2001, um dia seus profissionais cansaram
de ser "caçadores motorizados, temidos
e odiados pela população".
O processo de mudança começou na
década de 70 com algumas tentativas de
transformar a relação entre a polícia e a
comunidade. Estudiosos e administradores de polícia também formularam as
conclusões a respeito do que não funcionava mais: aumentar o número de policiais não reduz necessariamente a taxa
de criminalidade nem a de resolução de
crimes; a patrulha motorizada aleatória
tampouco; o patrulhamento intensivo
numa área de fato diminui o crime, mas
temporariamente, pois o desloca para
outras áreas; os crimes mais assustadores não são resolvidos pelo policial de patrulha que gasta seu tempo prestando
serviços variados ou apenas patrulhando; o tempo de atendimento não altera a
probabilidade de prender os suspeitos,
pois esta cai 10% um minuto depois do
crime cometido; os crimes são resolvidos
com prisão em flagrante mas também
quando alguém identifica, anota placas,
nomes, endereços etc.
Ou seja, se a população não coopera
ativamente dessa maneira, a probabilidade de resolver os crimes é de uma
chance em dez.
Mais "pares de olhos"
A idéia básica dos projetos, que começaram a ser
postos em funcionamento com mais clareza estratégica e empenho político na
década de 80 e início dos anos 90, é a de
que o policial estaria mais garantido com
a proteção e ajuda dos moradores do que
com armas e a de que os olhos destes seriam os milhares necessários para tornar
a vigilância eficaz. Como em Chicago, as
polícias metropolitanas que modificaram sua estratégia queriam sair do isolamento e da hostilidade da população,
queriam mais "pares de olhos" ajudando
nas tarefas do controle social.
Apesar disso, grande
parte das experiências relatadas no livro "Nova Polícia", de Jerome H. Skolnick e David H. Bayley, refere-se ao patrulhamento
e à criação de novos corpos de prestadores de serviços não profissionalizados, que iriam liberar o policial profissional para as atividades mais importantes
relacionadas aos crimes mais graves. Esses prestadores de serviços poderiam ser
moradores voluntários que atuariam em
seus quarteirões e prédios, como em Detroit e Newark, ou semiprofissionais
contratados para atender o 911 [número
do telefone de emergência da polícia nos
EUA", do qual a maior parte de chamadas refere-se a pequenos incidentes, desordens, medos, emergências etc.
Ao mesmo tempo, a prestação de serviços faz parte da estratégia de aproximação com os moradores, mudando a imagem que eles têm do policial e incentivando-os a cooperar no controle efetivo
da área onde moram. Os alertas são dados pelos voluntários ou "policiais de
serviços" por causa da movimentação
estranha em casas e ruas, por causa de
carros abandonados, por causa da ação
de pessoas que perturbam a ordem ou
cometem crimes testemunhados pelos
moradores.
As estratégias de aproximação e de
prestação de serviços, quando montadas
por uma estratégia de redução de crime,
podem incluir até mesmo aulas dadas
aos moradores sobre equipamento e medidas práticas de segurança na casa, no
prédio e na rua para evitar a ação de ladrões ou agressores bem como a escolta
ou preparação de pessoas vulneráveis
(como os idosos indo ao banco ou escolares em trânsito entre a casa e a escola,
motoristas de caminhão em Detroit). O
objetivo primordial é conquistar a confiança da população, passo indispensável
na cooperação. Os novos olhos precisam
antes de tudo acreditar naqueles vigilantes profissionais que vão ajudar a prevenir crimes e diminuir sua incidência.
Como consequência, a descentralização do comando policial por áreas menores (Newark) ou até minidistritos (Detroit em 1983) e a adoção de supervisores
de quarteirão (Santa Ana, cidade conservadora, em 1984) são passos indispensáveis para reformular a mentalidade, os
valores e as práticas dos
policiais que fazem a patrulha ou a prevenção do
crime.
O patrulhamento feito
por policiais que permanecem longos períodos
no mesmo bairro estimula a formação de laços sociais e a confiança mútua
necessária na cooperação.
Mas o plano estratégico é central e indispensável, coordenado pelas autoridades
maiores da polícia metropolitana, fazendo com que, pelas novas rotinas exigidas,
o policial passe a se comportar de modo
diferente com seus colegas, mas, principalmente, com os cidadãos.
No entanto uma outra barreira crucial,
menos sublinhada, mas presente, pode
vir a impedir a cooperação: o medo que
vizinhos trancafiados têm dos criminosos. O temor ou o terror não são eliminados milagrosamente com a adoção de
um "policiamento voltado para a comunidade" (como em Santa Ana), especialmente naquelas áreas em que os criminosos adquiriram muito poder por conta da desagregação das associações entre
os moradores. Esse fato é mencionado
em Detroit, onde os policiais que atuavam nos minidistritos dominados pelo
tráfico de drogas tinham por objetivo
não a prisão dos traficantes, mas a retomada das ruas para os moradores. Na
verdade, esperavam apenas mostrar aos
moradores sua presença ali para garantir
a ordem pública.
Duplo desafio
O problema é que,
onde não há organização social ou a "comunidade" é fraca, vizinhos têm medo
um do outro. Pior, onde traficantes bem
armados impedem até mesmo a entrada
de qualquer agente do Estado, como
acontece nas favelas das maiores regiões
metropolitanas do Brasil, o que fazer para instaurar uma nova polícia?
Aqui temos, portanto, um duplo desafio: destruir o terror instaurado pelos comandos armados de traficantes em muitas áreas e restaurar a confiança numa
polícia também afetada pelo poder militar e corruptor dos primeiros. E, sem
uma polícia investigativa e profissional
para dar o passo inicial no desmantelamento das redes do crime-negócio, a nova polícia confiável e civil ficaria também
adscrita às áreas já privilegiadas da cidade. Ou teria que fazer um acordo de coexistência pacífica com os poderosos e ricos negociantes de armas e drogas que
deixaram "tudo dominado" nas áreas
mais pobres há anos, um jogo de consequências imprevisíveis.
Alba Zaluar é professora de antropologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de
"Condomínio do Diabo" (Revan) e "Drogas e Cidadania" (Brasiliense), entre outros.
Nova Polícia
264 págs., R$ 25,00
de Jerome H. Skolnick e David H. Barley.
Trad. Geraldo Gerson de Souza.
Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J,
374, 6º andar, CEP 05508-900, SP,
tel. 0/xx/11/3818-4006).
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