São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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Trilhas minadas

"Nova Polícia", que está saindo no Brasil, revolucionou a forma de combate à criminalidade nos EUA ao defender maior interação entre Estado e população

Alba Zaluar
especial para a Folha

À primeira vista, trata-se de um livro sobre mudanças organizacionais possíveis dentro dos departamentos de polícia em algumas cidades americanas escrito ainda na década de 80. "A Nova Polícia" poderia também ser lido como um receituário de experiências bem-sucedidas, prontas para serem copiadas em qualquer lugar do mundo, apesar de estar disponível em português somente 16 anos depois de publicado nos EUA. Mas não se trata bem disso. O mote principal do livro é o de que as estratégias para a prevenção e a redução do crime devem focalizar as necessidades particulares de cada comunidade, nome dado tanto a cidades como a pequenos bairros. Nessa estratégia, o foco está posto nas regras de patrulhamento, nas formas de cooperação com os moradores, na descentralização do comando por área, no planejamento, treinamento e recrutamento de "policiais de serviços" e de "civis" que passam a ser incorporados com salários mais baixos para prestar serviços variados e atender a população, liberando os profissionais para as funções mais especializadas da investigação e do patrulhamento "pesado". Portanto, não são tanto aquelas práticas mais identificadas com o respeito aos direitos humanos (técnicas de interrogatório, conduta na vigilância etc.) que mais preocupam os autores. Mesmo assim, a superação do racismo nas várias forças policiais pesquisadas foi apontada como condição "sine qua non" para a transformação do modelo de polícia em vigor até então.

Polícia desarmada
O livro inicia a avaliação de experiências conduzidas em seis cidades norte-americanas com as constatações negativas a respeito dos tradicionais métodos de policiamento adotados nos Estados Unidos, lembrando a fundação da primeira polícia metropolitana, a de Londres, criada por Robert Peel em 1829. Este, para vencer os altos índices de criminalidade, de corrupção policial e de temor generalizado diante dos abusos dos policiais, criou uma polícia uniformizada, mas desarmada, que privilegiava os recrutas que possuíam laços com a comunidade e cujas carreiras profissionais foram montadas a partir do patrulhamento a pé.
Ao contrário, a polícia nos EUA apostou nas viaturas e nos armamentos pesados. Por isso mesmo, como afirmou um policial de Chicago que entrevistei em 2001, um dia seus profissionais cansaram de ser "caçadores motorizados, temidos e odiados pela população". O processo de mudança começou na década de 70 com algumas tentativas de transformar a relação entre a polícia e a comunidade. Estudiosos e administradores de polícia também formularam as conclusões a respeito do que não funcionava mais: aumentar o número de policiais não reduz necessariamente a taxa de criminalidade nem a de resolução de crimes; a patrulha motorizada aleatória tampouco; o patrulhamento intensivo numa área de fato diminui o crime, mas temporariamente, pois o desloca para outras áreas; os crimes mais assustadores não são resolvidos pelo policial de patrulha que gasta seu tempo prestando serviços variados ou apenas patrulhando; o tempo de atendimento não altera a probabilidade de prender os suspeitos, pois esta cai 10% um minuto depois do crime cometido; os crimes são resolvidos com prisão em flagrante mas também quando alguém identifica, anota placas, nomes, endereços etc. Ou seja, se a população não coopera ativamente dessa maneira, a probabilidade de resolver os crimes é de uma chance em dez.

Mais "pares de olhos"
A idéia básica dos projetos, que começaram a ser postos em funcionamento com mais clareza estratégica e empenho político na década de 80 e início dos anos 90, é a de que o policial estaria mais garantido com a proteção e ajuda dos moradores do que com armas e a de que os olhos destes seriam os milhares necessários para tornar a vigilância eficaz. Como em Chicago, as polícias metropolitanas que modificaram sua estratégia queriam sair do isolamento e da hostilidade da população, queriam mais "pares de olhos" ajudando nas tarefas do controle social. Apesar disso, grande parte das experiências relatadas no livro "Nova Polícia", de Jerome H. Skolnick e David H. Bayley, refere-se ao patrulhamento e à criação de novos corpos de prestadores de serviços não profissionalizados, que iriam liberar o policial profissional para as atividades mais importantes relacionadas aos crimes mais graves. Esses prestadores de serviços poderiam ser moradores voluntários que atuariam em seus quarteirões e prédios, como em Detroit e Newark, ou semiprofissionais contratados para atender o 911 [número do telefone de emergência da polícia nos EUA", do qual a maior parte de chamadas refere-se a pequenos incidentes, desordens, medos, emergências etc. Ao mesmo tempo, a prestação de serviços faz parte da estratégia de aproximação com os moradores, mudando a imagem que eles têm do policial e incentivando-os a cooperar no controle efetivo da área onde moram. Os alertas são dados pelos voluntários ou "policiais de serviços" por causa da movimentação estranha em casas e ruas, por causa de carros abandonados, por causa da ação de pessoas que perturbam a ordem ou cometem crimes testemunhados pelos moradores. As estratégias de aproximação e de prestação de serviços, quando montadas por uma estratégia de redução de crime, podem incluir até mesmo aulas dadas aos moradores sobre equipamento e medidas práticas de segurança na casa, no prédio e na rua para evitar a ação de ladrões ou agressores bem como a escolta ou preparação de pessoas vulneráveis (como os idosos indo ao banco ou escolares em trânsito entre a casa e a escola, motoristas de caminhão em Detroit). O objetivo primordial é conquistar a confiança da população, passo indispensável na cooperação. Os novos olhos precisam antes de tudo acreditar naqueles vigilantes profissionais que vão ajudar a prevenir crimes e diminuir sua incidência. Como consequência, a descentralização do comando policial por áreas menores (Newark) ou até minidistritos (Detroit em 1983) e a adoção de supervisores de quarteirão (Santa Ana, cidade conservadora, em 1984) são passos indispensáveis para reformular a mentalidade, os valores e as práticas dos policiais que fazem a patrulha ou a prevenção do crime. O patrulhamento feito por policiais que permanecem longos períodos no mesmo bairro estimula a formação de laços sociais e a confiança mútua necessária na cooperação. Mas o plano estratégico é central e indispensável, coordenado pelas autoridades maiores da polícia metropolitana, fazendo com que, pelas novas rotinas exigidas, o policial passe a se comportar de modo diferente com seus colegas, mas, principalmente, com os cidadãos. No entanto uma outra barreira crucial, menos sublinhada, mas presente, pode vir a impedir a cooperação: o medo que vizinhos trancafiados têm dos criminosos. O temor ou o terror não são eliminados milagrosamente com a adoção de um "policiamento voltado para a comunidade" (como em Santa Ana), especialmente naquelas áreas em que os criminosos adquiriram muito poder por conta da desagregação das associações entre os moradores. Esse fato é mencionado em Detroit, onde os policiais que atuavam nos minidistritos dominados pelo tráfico de drogas tinham por objetivo não a prisão dos traficantes, mas a retomada das ruas para os moradores. Na verdade, esperavam apenas mostrar aos moradores sua presença ali para garantir a ordem pública.

Duplo desafio
O problema é que, onde não há organização social ou a "comunidade" é fraca, vizinhos têm medo um do outro. Pior, onde traficantes bem armados impedem até mesmo a entrada de qualquer agente do Estado, como acontece nas favelas das maiores regiões metropolitanas do Brasil, o que fazer para instaurar uma nova polícia?
Aqui temos, portanto, um duplo desafio: destruir o terror instaurado pelos comandos armados de traficantes em muitas áreas e restaurar a confiança numa polícia também afetada pelo poder militar e corruptor dos primeiros. E, sem uma polícia investigativa e profissional para dar o passo inicial no desmantelamento das redes do crime-negócio, a nova polícia confiável e civil ficaria também adscrita às áreas já privilegiadas da cidade. Ou teria que fazer um acordo de coexistência pacífica com os poderosos e ricos negociantes de armas e drogas que deixaram "tudo dominado" nas áreas mais pobres há anos, um jogo de consequências imprevisíveis.


Alba Zaluar é professora de antropologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de "Condomínio do Diabo" (Revan) e "Drogas e Cidadania" (Brasiliense), entre outros.



Nova Polícia
264 págs., R$ 25,00
de Jerome H. Skolnick e David H. Barley.
Trad. Geraldo Gerson de Souza.
Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J,
374, 6º andar, CEP 05508-900, SP,
tel. 0/xx/11/3818-4006).


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