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+(s)ociedade
O chique na berlinda
Em entrevista à Folha, o filósofo australiano Peter Singer diz que o consumo de luxo aumenta a pobreza
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
Peter Singer acha que
as pessoas que gastam [dinheiro] com
vinhos caros e viagens luxuosas em vez
de ajudar crianças pobres são,
de certa maneira, responsáveis
pela morte destas.
É o que ele defende em seu livro mais recente, "The Life
You Can Save" [A Vida Que Você Pode Salvar, Random House, 206 págs., US$ 22, R$ 47],
um manifesto humanitário
embasado nos preceitos da
bioética.
É a mais nova faceta do polêmico filósofo australiano de 62
anos, que ensina esse ramo da
ética na Universidade Princeton, em Nova Jersey (EUA).
As outras são a do militante
pelos direitos dos animais, posição defendida em outro livro,
"Animal Liberation" [Libertação Animal, Random House,
1975], considerada a obra que
iniciou a faceta radical desse
movimento, e "Should the
Baby Live? - The Problem of
Handicapped Infants" (Deve o
Bebê Viver? - O Problema das
Crianças com Deficiências, Oxford Univesrity Press, 1985),
em que defende a eutanásia.
Leia abaixo trechos da entrevista que concedeu à Folha por
e-mail.
FOLHA - Segundo a Unicef, 27 mil
crianças morrerão hoje. O que devemos fazer a respeito e não fazemos?
PETER SINGER - Essas mortes são
evitáveis. Elas são decorrência
de situações que podem ser
mudadas -ausência de água
limpa, falta de postos médicos
locais, ausência de redes contra
a malária e assim por diante.
Acima de tudo, acontecem por
conta da extrema pobreza, e isso também pode ser mudado.
Nós deveríamos usar uma
parte de nossa riqueza para ajudar a tirar as pessoas da armadilha da extrema pobreza.
É errado gastarmos tanto
com coisas supérfluas, enquanto outros não têm o suficiente
para comer ou não têm condições de mandar suas crianças
para a escola.
FOLHA - Ao mesmo tempo, 20 mil
americanos perderão seus empregos hoje. O quão difícil é ser coerente em uma época de derretimento
econômico?
SINGER - O problema não é coerência, mas fazer com que as
pessoas pensem outras enquanto estão preocupadas com
os próprios interesses. Somos
egoístas por natureza, e não espero que as pessoas se tornem
altruístas se estão preocupadas
em pagar o aluguel.
FOLHA - O sr. dá um terço de seus
rendimentos à rede de assistência
global Oxfam. É suficiente? Recomenda que outros façam o mesmo?
SINGER - Eu não diria que é o
suficiente; se eu fosse uma pessoa melhor, daria mais.
Ao mesmo tempo, porém,
não seria preciso que ninguém
desse tanto quanto eu dou se
apenas as pessoas mais ricas
doassem algo de suas rendas.
Então, em meu livro, recomendo uma porcentagem muito menor, começando por 1%
da renda das pessoas. É possível ver a tabela completa no livro ou no site www.thelifeyoucansave.com, [onde você
pode fazer sua doação também.
FOLHA - O sr. escreveu: "Quando
nós gastamos nossa sobra de dinheiro em shows, sapatos da moda,
jantares sofisticados, vinhos caros
ou em viagens de férias para lugares
distantes, estamos fazendo algo errado". Mas pode-se argumentar
que, ao fazer isso, ajudamos a criar
ou manter empregos, algo que hoje
em dia é mais do que necessário. Como equilibrar esforço humanitário e
capitalismo?
SINGER - A maior parte do que
gastamos no que você menciona vai para pessoas que já são
ricas. Se o que você compra ajuda realmente os mais pobres
-talvez por meio de um esquema de comércio justo-, tudo
bem, não me oponho.
Mas é importante ajudar os
pobres diretamente também,
pois de outra maneira eles não
podem se integrar à economia
global. Os países mais pobres
não têm a infraestrutura necessária para essa integração.
FOLHA - O sr. acha que uma das
consequências da atual crise pode
ser que as pessoas passem a ter uma
vida mais frugal?
SINGER - Seria bom em certo
sentido, especialmente do ponto de vista do ambiente, do
aquecimento global.
Mas duvido que aconteça. A
crise vai passar, e em alguns
anos voltaremos aos nossos hábitos antigos.
FOLHA - Do ponto de vista da bioética, qual é a diferença entre George
W. Bush e Obama na Casa Branca?
SINGER - Uma diferença enorme. Bush e seus capangas adotaram uma atitude arrogante
em relação ao resto do mundo
-os EUA são o chefe, disseram,
não apenas mais um membro
da comunidade internacional.
Obama tem uma atitude diferente, e isso é importante.
Igualmente importante, é
claro, é sua recusa em torturar,
seu plano de fechar [a prisão da
base militar de] Guantánamo,
sua disposição em apoiar organizações de planejamento familiar que também incluem
aborto entre os meios de ajudar
as mulheres a controlar sua fertilidade, sua aceitação de pesquisa usando células-tronco de
embriões humanos e, acima de
tudo, uma atitude positiva em
relação à ciência.
FOLHA - Não há contradição entre
o que defende em "Deve o Bebê Viver?" e "A Vida Que Você Pode Salvar"?
SINGER - Nenhuma.
Minha preocupação primária é a redução do sofrimento
desnecessário.
Há uma enorme diferença
entre tentar salvar a vida de
crianças cujos pais querem que
elas vivam e cujas vidas podem
ser salvas com quantias modestas de dinheiro e manter vivas
crianças extremamente incapacitadas, usando tecnologia
médica moderna e caríssima,
quando os pais acham que seria
melhor para a criança e a família se o bebê não sobrevivesse.
FOLHA - A propósito de um de seus
primeiros livros, "Libertação Animal", e a gripe suína, o sr. acha que
há uma lição moral nessa quase
pandemia?
SINGER - Não creio. A razão moral para não colocar porcos nas
"fábricas rurais" em que estão é
que é uma vida horrível para os
porcos, e não há necessidade de
que os tratemos assim.
Talvez uma consequência secundária de colocar milhões de
animais juntos em condições
precárias é que eles cultivam
novas doenças, que podem gerar pandemias globais.
Mas seja isso verdade ou não,
o fato é que, para começar, não
deveríamos estar tratando os
animais dessa maneira.
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