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+(L)ivros
Modernismo precário
Banal e mal pensada, obra do historiador Peter Gay decepciona ao tratar do movimento que influenciou decisivamente a cultura ocidental no século 20
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Conhecido por sua
biografia de Freud
["Freud - Uma Vida
para o Nosso Tempo", Companhia das
Letras], e seus grandes painéis
sobre o Iluminismo e sobre a
"experiência burguesa" no século 19, o historiador Peter Gay
dedica as mais de quinhentas
páginas deste livro (com mais
de 80 notas, bibliografia e índice remissivo) ao modernismo
-ou, como diz o subtítulo, ao
"fascínio da heresia, de Baudelaire a Beckett".
O resultado é dos mais decepcionantes. Trata-se de um
livro mal pensado em sua arquitetura, frágil na conceituação, com vários erros de acabamento e incolor, quando não
banal, na sua escrita.
O maior erro de Peter Gay é
tratar cada arte -pintura, cinema, música- em capítulos separados. Poucas coisas são
mais características da arte
moderna do que a criação de
movimentos estéticos (o surrealismo, o expressionismo)
nos quais pintores, músicos e
poetas compartilhavam de um
projeto comum.
A estrutura escolhida pelo
autor termina levando a um ziguezague cronológico que,
abrangendo um período de 150
anos, não só se torna trabalhoso para o leitor, como também
leva a algumas repetições na
exposição.
Pior: tratando-se de um livro
claramente introdutório, destinado, por exemplo, a quem
nunca ouviu falar da palavra
"móbile" ou desconhece o
enredo de "Luzes da Cidade"
[1931], de Chaplin, a falta de
uma explicação coerente do
que significaram os diversos
"ismos" da arte moderna haverá de ser sentida pelo leitor.
É que, no fundo, a preocupação de Peter Gay não incide sobre os aspectos da linguagem,
do programa estético, das inovações formais propostas pelos
diversos artistas e correntes do
século 20.
Pela bibliografia comentada
que consta ao final do livro, vê-se que Peter Gay é, antes de tudo, um leitor de estudos biográficos, aparentando ignorar a
imensa quantidade de textos
teóricos já escritos sobre a arte
moderna e mesmo algumas introduções didáticas ao tema
que superam de longe o livro que ele
acabou escrevendo.
Tornam-se quase vergonhosos, assim, os trechos que Peter
Gay dedica ao "modernismo"
de Orson Welles. O autor oferece um convencional resumo
de "Cidadão Kane" [1941], sem
dar atenção às ousadias de linguagem do filme.
Inscreve, ademais, os filmes
de Chaplin na rubrica "modernismo". Mas este é um caso evidente em que o cinema foi antes fonte de inspiração para a
vanguarda do que seu autêntico representante.
Se quisesse dar uma ideia
mais precisa do modernismo
no cinema, Gay poderia ter citado, por exemplo, "Um Cão
Andaluz" [1928] de [Luis] Buñuel, ou "Um Homem com
uma Câmera" [1929], de Dziga
Vertov.
Naturalmente, apontar
omissões em um livro panorâmico desse tipo pode parecer
covardia.
Mas é difícil não reagir com
espanto a um estudo sobre modernismo que mal toca em nomes como Apollinaire e Maiakóvski, na poesia, Pirandello e
Brecht, no teatro, e Isadora
Duncan, na dança, enquanto
discorre longamente (privilegiando sempre a biografia) sobre Knut Hamsun e Gabriel
García Márquez.
"Modernismo" é falho, ademais, no breve capítulo encarregado de contextualizar historicamente a arte moderna.
Concentra-se nos fenômenos mais evidentes (a urbanização, o transporte ferroviário,
a Primeira Guerra), sem retratar as revoluções científicas e
filosóficas da época. Einstein e
Bergson, Chklovski e Spengler,
Mach e Husserl estão fora de
seu ângulo de visão.
Freud, com certeza, é invocado. Pobremente: o autor identifica sinais de complexo de Édipo em Kafka e Strindberg.
Tem-se uma impressão de
ainda maior amadorismo
quando Peter Gay se refere às
influências recebidas pelo
"modernista" (?) Jean-Paul
Sartre em sua filosofia. Resumiam-se, segundo o autor, "aos
velhos escritos do teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard".
Nada de Husserl e Heidegger, portanto, nesse autor que,
depois de 1941, teria (erro de
Peter Gay) se engajado na Resistência.
Pequenos erros desse tipo
aparecem com irritante frequência. Confunde-se dodecafonismo com serialismo. O
compositor russo Scriabin teria inventado "novas tonalidades". A famosa estreia da "Sagração da Primavera", de Stravinski, foi em 1913, e não em
1911, como assevera a pág. 25.
Mesmo as ilustrações do livro representam desserviço ao
leitor. Uma foto do Museu
Guggenheim de Bilbao traz
junto, ostensivo na fachada,
um filhote de cachorro gigantesco, obra do escultor Jeff
Koons, que, na ausência de
qualquer esclarecimento na legenda, pode ser confundida
com a arquitetura do edifício.
A banalidade das legendas é,
aliás, um capítulo à parte. Sob a
reprodução de um quadro de
Gustave Caillebotte, lemos:
"Este óleo enorme é provavelmente sua tela mais famosa".
Uma foto de Samuel Beckett
nos informa que sua obra, "décadas depois, permanece altamente controvertida".
Mais banalidades? Disso o livro está repleto. "Em suma, o
que os teatrólogos do absurdo
tinham em comum era o desafio de todas as convenções consagradas que o teatro usou irrestritamente ao longo dos séculos". Como se [o escritor
francês] Victor Hugo não tivesse desafiado todas elas, antigas
também, em 1830...
Sobre Marcel Duchamp, lemos que "uma coisa é certa:
Duchamp estava absolutamente distante das convenções estéticas vigentes e adorava a originalidade".
O tom se torna piegas ao tratar de Franz Kafka: "Por mais
que gostasse de escrever, porém, a escrita não tinha força
suficiente para salvá-lo de si
mesmo".
MODERNISMO
Autor: Peter Gay
Tradução: Denise Bottmann
Editora: Companhia das Letras (tel.
0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 64 (594 págs.)
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