São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

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+(c)iência

Tenda dos milagres

ONG de médicos paulistas monta centro cirúrgico na selva para livrar índios de mazelas simples, mas incapacitantes, como catarata e hérnia

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL AO ALTO SOLIMÕES

Com dois gritos acompanhados de trancos violentos, a ticuna Daniela, 65, consegue desvencilhar-se da faixa que prende sua cabeça à mesa de cirurgia. Entre o primeiro e o segundo repelão, decisivo, o oftalmologista paulista Alberto Cigna retira num reflexo a cânula de aspiração que mantinha dentro do globo ocular da mulher. Sorte dela.
Já na fase final da cirurgia de catarata, o médico aspirava os últimos restos do cristalino. A lente orgânica, que se torna opaca por uma série de fatores, seria substituída em seguida por outra, artificial, para que a retina da mulher voltasse a receber imagens focalizadas.
Daniela dispara a falar em sua língua tonal, que nenhuma das dez pessoas no centro cirúrgico compreende. Uma enfermeira a ampara antes que caia sobre o chão de lona. Grita: "Chamem o Gomes!".
Roberta Murasaki e Bruno Marson, cirurgiões que operam na mesa ao lado a hérnia de Hermildo, 45, contemplam perplexos a cena.
Não menos espantados estão o anestesiologista José Luiz Gomes do Amaral e o repórter a quem explicava a diferença entre anestesia peridural e raquidiana.
Gomes, o único de avental verde, chega à tenda semicircular montada pela organização não-governamental Expedicionários da Saúde na comunidade de Novo Paraíso, a pouco mais de duas horas de lancha de Tabatinga (AM).

Nave alienígena
Troca várias frases com Daniela naquela língua enfática, que lembra o chinês. Traduz então o ocorrido, ao modo sempre lacônico dos intérpretes indígenas: a paciente sonhava e acordou sem saber onde estava.
Poderia ser uma nave alienígena em processo de abduzi-la para outra dimensão, de acordo com a piada corrente entre os 32 voluntários desta campanha cirúrgica (é a 13ª da ONG desde 2004). Ninguém ali consegue imaginar o que passa pela cabeça de um ticuna -etnia mais comum entre as 1.120 pessoas atendidas na semana- quando entra naquela barraca.
A sala está sempre gelada. As luzes são mais brancas que o sol. Aparelhos, sons e cheiros nunca sonhados. Todos paramentados de azul, com máscaras sobre boca e nariz. Os médicos acreditam que os índios aceitam a versão dos intérpretes de que a anestesia os levará para conversar com espíritos.
"Esta gente tem uma pele dura, como couro", comenta Marson, bisturi na mão. O que se pode ler nos rostos é uma mescla vincada de fortaleza e abandono, resignação e confiança. Médicos que viajam de tão longe só para operá-los devem saber o que fazem.
"Só vêm para cá aqueles que realmente querem doar um pouco do que conhecem para aquelas pessoas que precisam do conhecimento", filosofa Edson Caldas Lopes.
O funcionário da Funai, lotado em São Gabriel da Cachoeira, trabalha a mais de 500 km, em linha reta.
Depois de travar contato com os Expedicionários da Saúde há três anos, Caldas vestiu a camiseta. Participa como voluntário de todas as campanhas da ONG, nas férias.
"Ele é o embaixador dos Expedicionários, o nosso Gato de Botas", brinca Ricardo Affonso Ferreira, ortopedista que já andou o mundo e fundou a ONG com seu primo Martin Affonso Ferreira -um anestesiologista que, como o parente e companheiro de caminhadas, atua no Centro Médico de Campinas, respeitado hospital privado.
O apelido "Gato de Botas" é uma alusão à astúcia de Caldas. Para convencer o capitão (chefe) da aldeia a limpar a área para receber a missão paulista, Caldas apelara ao pragmatismo de Raimundo.


No quarto dia já não há mais vagas no mapa cirúrgico; abre-se uma lista de espera para dali a um ano


O "grande chefe"
Disse que pessoas importantes viriam visitar a comunidade e teriam oportunidade de testemunhar que ele era um "grande chefe".
O capitão providenciou então roletes e tábuas para improvisar passarelas sobre o palmo de água do rio Solimões que avança sobre Novo Paraíso. Uma cheia recordista em meio século, que já transformava o lugar num malcheiroso lodaçal.
O susto de Daniela se deu no terceiro dia da missão, 20 de abril, quando o centro cirúrgico sob a lona verde já se encontrava a todo vapor.
Nos dois primeiros dias havia sido preciso caçar pacientes do outro lado do rio. A confusão era geral.
Vendaval, localidade maior na outra margem do Solimões, conta com um polo-base (posto de saúde) da Funasa, a Fundação Nacional de Saúde, órgão federal encarregado da saúde indígena.
No plano dos Ferreira, a missão de Vendaval é receber, hospedar e fazer a triagem de pacientes chegados de várias aldeias e comunidades ao longo do rio, algumas a dez horas de barco. Num só dia almoçam ali 430 visitantes.
A logística das missões, que acontecem duas vezes por ano, é um pesadelo protagonizado por Ricardo Ferreira e a pedagoga Marcia Abdala, ex-dona de pousada na praia de Camburi (SP). Dos remédios ao foco cirúrgico de iluminação, da barraca sob medida às roupas esterilizadas, tudo ali é doado ou emprestado. Pedir é a nova profissão de Abdala.
Além de fazer chegar a Novo Paraíso oito toneladas de carga, com ajuda de aviões da FAB e caminhões e balsas do Exército, sua maior dificuldade é manter um fluxo constante de pacientes. Sem internet, sem telefones fixos e sem celular, só com rádios portáteis.
Pela primeira vez o grupo usa uma rede sem fio de computadores -Ticunet- para informatizar prontuários, mas o sistema só funciona de maneira parcial. Técnicos e enfermeiros da Funasa pulam de lá para cá sob as ordens do ortopedista.
A barraca gigante do centro cirúrgico, duas outras para operações menores e dois consultórios em tabiques de folha de palmeira ficam abrigados sob o telheiro construído pelos ticunas em novembro, na primeira expedição cirúrgica da ONG campineira ao local (a terceira deve ocorrer em abril de 2010).
A partir do segundo dia, voadeiras (lanchas) chegam a toda hora com pacientes de Vendaval. O rio subiu tanto que os doentes desembarcam a menos de dez metros da "sala de espera" comandada pela enfermeira Sandra Maia, com a ajuda do intérprete ticuna Oseias.
Técnico de enfermagem, o peruano de nascimento obteve documentos brasileiros numa campanha de alistamento de eleitores. Hoje trabalha na Funasa.
A balbúrdia das primeiras horas pouco a pouco cede espaço para a ordem possível. Pacientes oftálmicos recebem etiquetas verdes na roupa, para atendimento na barraca da esquerda.
Se o caso for de pterígio, espessamento da conjuntiva que avança pelo olho em direção à pupila, são operados ali mesmo, com anestesia local.
Os selecionados para cirurgia recebem etiquetas verdes e, caso o tradutor confirme a observação de jejum, uma segunda etiqueta, vermelha, com os dizeres "dieta zero".
No quarto dia já não há mais vagas no mapa cirúrgico. Abre-se uma lista de espera para dali a um ano.
Ao final de oito dias, os Expedicionários contam 299 cirurgias realizadas. Foram 50% a mais que na missão anterior em Novo Paraíso, a primeira fora da Cabeça do Cachorro. Nessa região do Alto Rio Negro se concentrava a ação da ONG até 2008, quando teve início a tentativa de expandi-la para outros rincões da Amazônia.
O domingo, Dia do Índio e do aniversário de Marcia Abdala, foi marcado por duas outras surpresas.
Só a primeira foi benigna: pela manhã, ao retirar um tumor do tamanho de uma bola de gude do olho direito da ticuna Claudia, 52, o oftalmologista Rogério Bacchi, de Piracicaba (SP), descobre um globo ocular intacto sob ele.
Bacchi desconfia que seja um carcinoma espinocelular da conjuntiva, já por si mesmo raro (1 a 3 casos em 100 mil). Sai em busca de formol para conservar a peça, que planeja encaminhar a um anatomopatologista. "Acho que ela tem chance de voltar a enxergar", arrisca. Tira várias fotos do tumor e do olho revelado.
No final da tarde, o pediatra Ricardo César Caraffa desembarca de Vendaval com o menino Denis, 11 meses, "quase parado". Acabava de chegar de Santa Rita, trazido pelos pais, Tiago, 24, e Valnizia, 19. Tiago chora muito e acaricia o seio da mulher, sem dar pelo gesto. Conta que levara o filho no dia anterior ao polo-base de Santa Rita, onde o enfermeiro de plantão deu soro ao menino. Pouco depois, teve de retirá-lo. Tiago se convencera de que não faria bem ao filho.
Agora o garoto desidratado tem convulsões na tenda dos Expedicionários, que não contam com instrumental para entubar a criança. Caraffa e a enfermeira Maia preparam-na para a viagem noturna em voadeira, até Tabatinga, num rio cheio de troncos , a fim de interná-la no hospital do Exército. Dois dias depois chega a notícia: Denis morreu.
Como o tumor ocular de Claudia, é uma ocorrência rara nas incursões dos Expedicionários. O grupo se limita a realizar cirurgias simples em seus acampamentos, embora algumas hérnias inguinais gigantes possam consumir duas a três horas de operação, após uma década de espera pelo médico que muitos nunca viram.
O esforço quixotesco da ONG -mais de 1.800 cirurgias em cinco anos- é levar aos indígenas da Amazônia o que no jargão de saúde pública se chama de "resolutividade".
Em Novo Paraíso, poderia ser traduzido para o português como tratamento de primeira para fazer cegos voltarem a enxergar e agricultores a suportar o peso de uma enxada.
Após oito dias, alguns médicos já se arriscam na língua dos ticunas. Conseguem perguntar: "Tokünogü?" (Está doendo?) Tudo que esperam ouvir, na terceira e última aterrissagem em Novo Paraíso, daqui a um ano, é o tônico "tá!" (não).


O repórter viajou a Tabatinga (AM) em avião da FAB e, de Tabatinga a Novo Paraíso, em lancha da Funasa, a convite da ONG Expedicionários da Saúde ( www.expedicionariosdasaude.org.br ). Os nomes de indígenas mencionados na reportagem são fictícios.

Veja mais fotos da viagem ao alto Solimões
www.folha.com.br/091271


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