São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo. +(c)iência Tenda dos milagres
ONG de médicos paulistas monta centro cirúrgico na selva para livrar índios
de mazelas simples, mas incapacitantes, como catarata
e hérnia
Com dois gritos acompanhados de trancos
violentos, a ticuna
Daniela, 65, consegue desvencilhar-se
da faixa que prende sua cabeça
à mesa de cirurgia. Entre o primeiro e o segundo repelão, decisivo, o oftalmologista paulista Alberto Cigna retira num reflexo a cânula de aspiração que
mantinha dentro do globo ocular da mulher. Sorte dela.
O "grande chefe" Disse que pessoas importantes viriam visitar a comunidade e teriam oportunidade de testemunhar que ele era um "grande chefe". O capitão providenciou então roletes e tábuas para improvisar passarelas sobre o palmo de água do rio Solimões que avança sobre Novo Paraíso. Uma cheia recordista em meio século, que já transformava o lugar num malcheiroso lodaçal. O susto de Daniela se deu no terceiro dia da missão, 20 de abril, quando o centro cirúrgico sob a lona verde já se encontrava a todo vapor. Nos dois primeiros dias havia sido preciso caçar pacientes do outro lado do rio. A confusão era geral. Vendaval, localidade maior na outra margem do Solimões, conta com um polo-base (posto de saúde) da Funasa, a Fundação Nacional de Saúde, órgão federal encarregado da saúde indígena. No plano dos Ferreira, a missão de Vendaval é receber, hospedar e fazer a triagem de pacientes chegados de várias aldeias e comunidades ao longo do rio, algumas a dez horas de barco. Num só dia almoçam ali 430 visitantes. A logística das missões, que acontecem duas vezes por ano, é um pesadelo protagonizado por Ricardo Ferreira e a pedagoga Marcia Abdala, ex-dona de pousada na praia de Camburi (SP). Dos remédios ao foco cirúrgico de iluminação, da barraca sob medida às roupas esterilizadas, tudo ali é doado ou emprestado. Pedir é a nova profissão de Abdala. Além de fazer chegar a Novo Paraíso oito toneladas de carga, com ajuda de aviões da FAB e caminhões e balsas do Exército, sua maior dificuldade é manter um fluxo constante de pacientes. Sem internet, sem telefones fixos e sem celular, só com rádios portáteis. Pela primeira vez o grupo usa uma rede sem fio de computadores -Ticunet- para informatizar prontuários, mas o sistema só funciona de maneira parcial. Técnicos e enfermeiros da Funasa pulam de lá para cá sob as ordens do ortopedista. A barraca gigante do centro cirúrgico, duas outras para operações menores e dois consultórios em tabiques de folha de palmeira ficam abrigados sob o telheiro construído pelos ticunas em novembro, na primeira expedição cirúrgica da ONG campineira ao local (a terceira deve ocorrer em abril de 2010). A partir do segundo dia, voadeiras (lanchas) chegam a toda hora com pacientes de Vendaval. O rio subiu tanto que os doentes desembarcam a menos de dez metros da "sala de espera" comandada pela enfermeira Sandra Maia, com a ajuda do intérprete ticuna Oseias. Técnico de enfermagem, o peruano de nascimento obteve documentos brasileiros numa campanha de alistamento de eleitores. Hoje trabalha na Funasa. A balbúrdia das primeiras horas pouco a pouco cede espaço para a ordem possível. Pacientes oftálmicos recebem etiquetas verdes na roupa, para atendimento na barraca da esquerda. Se o caso for de pterígio, espessamento da conjuntiva que avança pelo olho em direção à pupila, são operados ali mesmo, com anestesia local. Os selecionados para cirurgia recebem etiquetas verdes e, caso o tradutor confirme a observação de jejum, uma segunda etiqueta, vermelha, com os dizeres "dieta zero". No quarto dia já não há mais vagas no mapa cirúrgico. Abre-se uma lista de espera para dali a um ano. Ao final de oito dias, os Expedicionários contam 299 cirurgias realizadas. Foram 50% a mais que na missão anterior em Novo Paraíso, a primeira fora da Cabeça do Cachorro. Nessa região do Alto Rio Negro se concentrava a ação da ONG até 2008, quando teve início a tentativa de expandi-la para outros rincões da Amazônia. O domingo, Dia do Índio e do aniversário de Marcia Abdala, foi marcado por duas outras surpresas. Só a primeira foi benigna: pela manhã, ao retirar um tumor do tamanho de uma bola de gude do olho direito da ticuna Claudia, 52, o oftalmologista Rogério Bacchi, de Piracicaba (SP), descobre um globo ocular intacto sob ele. Bacchi desconfia que seja um carcinoma espinocelular da conjuntiva, já por si mesmo raro (1 a 3 casos em 100 mil). Sai em busca de formol para conservar a peça, que planeja encaminhar a um anatomopatologista. "Acho que ela tem chance de voltar a enxergar", arrisca. Tira várias fotos do tumor e do olho revelado. No final da tarde, o pediatra Ricardo César Caraffa desembarca de Vendaval com o menino Denis, 11 meses, "quase parado". Acabava de chegar de Santa Rita, trazido pelos pais, Tiago, 24, e Valnizia, 19. Tiago chora muito e acaricia o seio da mulher, sem dar pelo gesto. Conta que levara o filho no dia anterior ao polo-base de Santa Rita, onde o enfermeiro de plantão deu soro ao menino. Pouco depois, teve de retirá-lo. Tiago se convencera de que não faria bem ao filho. Agora o garoto desidratado tem convulsões na tenda dos Expedicionários, que não contam com instrumental para entubar a criança. Caraffa e a enfermeira Maia preparam-na para a viagem noturna em voadeira, até Tabatinga, num rio cheio de troncos , a fim de interná-la no hospital do Exército. Dois dias depois chega a notícia: Denis morreu. Como o tumor ocular de Claudia, é uma ocorrência rara nas incursões dos Expedicionários. O grupo se limita a realizar cirurgias simples em seus acampamentos, embora algumas hérnias inguinais gigantes possam consumir duas a três horas de operação, após uma década de espera pelo médico que muitos nunca viram. O esforço quixotesco da ONG -mais de 1.800 cirurgias em cinco anos- é levar aos indígenas da Amazônia o que no jargão de saúde pública se chama de "resolutividade". Em Novo Paraíso, poderia ser traduzido para o português como tratamento de primeira para fazer cegos voltarem a enxergar e agricultores a suportar o peso de uma enxada. Após oito dias, alguns médicos já se arriscam na língua dos ticunas. Conseguem perguntar: "Tokünogü?" (Está doendo?) Tudo que esperam ouvir, na terceira e última aterrissagem em Novo Paraíso, daqui a um ano, é o tônico "tá!" (não). O repórter viajou a Tabatinga (AM) em avião da FAB e, de Tabatinga a Novo Paraíso, em lancha da Funasa, a convite da ONG Expedicionários da Saúde ( www.expedicionariosdasaude.org.br ). Os nomes de indígenas mencionados na reportagem são fictícios.
Veja mais fotos da viagem
ao alto Solimões
Texto Anterior: +Lançamentos Próximo Texto: Aculturados, ticunas têm língua complexa Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |