São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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O épico do dinheiro

Sai na França nova edição da "Correspondência" de Balzac, autor francês que retrata a ascensão e a consolidação da burguesia no século 19

GRAHAM ROBB

A correspondência está me matando", Balzac disse a sua mãe em 1832. "Tenho de escrever a duas pessoas ao mesmo tempo. [...] Minha vida é um milagre constante". [...]É incrível o quanto eu consigo produzir."
A nova edição da correspondência de Balzac, escrupulosamente compilada e anotada por Roger Pierrot e Hervé Yon, justifica plenamente a admiração de Balzac por si mesmo.
Como a edição anterior de sua "Correspondance" pela Garnier, também de Roger Pierrot (1960-69), esta omite 419 cartas escritas por Balzac para sua futura mulher, a condessa polonesa Eveline Hanska (estas são publicadas em uma edição separada, em dois volumes).
Muitas outras cartas se perderam ou foram destruídas: "Meu marido rasgou sua carta em mil pedaços diante dos meus olhos", escreveu-lhe uma de suas admiradoras em 1933. "Por que você a enviou à minha casa, numa hora em que todas as mulheres ainda dormem e todos os maridos estão em casa?"
Apesar do desaparecimento de grande parte de sua correspondência, este primeiro de três volumes contém 623 cartas de Balzac. Há 85 cartas e documentos até então inéditos e 107 cartas que apareceram em vários periódicos desde a edição Garnier.
Muitas outras foram corrigidas a partir de manuscritos redescobertos.
Quase a metade das cartas deste volume, incluindo a maioria das anteriormente inéditas, é dirigida a Balzac.
As novas cartas são geralmente do restante: de admiradores, de negócios, documentos jurídicos, convites para jantar (geralmente recusados por falta de tempo), contas (geralmente não pagas) e recibos de diversos artigos que Balzac considerava essenciais para seu conforto, para sua imagem pública e para manter a situação de crise financeira que o fazia trabalhar "como um condenado".
Trata-se de estantes, encadernação de livros, um aparelho de jantar de Limoges, um cavalo e uma carruagem, sapatos para seu criado, 3.140 francos em roupas para ele próprio, um relógio de bolso e ùo companheiro severo, mas necessário, do romancistaù um despertador.

Na sala de caldeiras
As cartas mais reveladoras são as primeiras, especialmente aquelas que escreveu para sua irmã Laure quando ele morava em um pequeno quarto na zona leste de Paris, tentando tornar-se um escritor.
Elas mostram um Balzac de 20 anos na sala de caldeiras de sua carreira literária, lutando com uma enorme tragédia em cinco atos sobre Cromwell, precisando desesperadamente de um manual de instruções: "Uma tragédia em versos geralmente contém 2.000 mil linhas, o que exige entre 8.000 e 10 mil pensamentos, sem contar os exigidos por idéias, trama, personagem".
Alguns dias depois, decidiu escrever a peça inteira de uma sentada e "adicionar a cor" mais tarde. Tudo de que precisava era um pouco de gênio: "Se houver algum à venda em Villeparisis, compre-me o quanto puder".
A solução, é claro, estava na frente dele: se conseguisse canalizar para uma obra literária a perspicácia e a exuberância que demonstrava nas cartas à família, poderia realizar a dupla ambição de escrever para a posteridade e ganhar muito dinheiro.
Ao descobrir que a ficção popular oferecia um retorno melhor que a tragédia, ele adotou o exótico pseudônimo de Lorde R’Hoone e começou a escrever romances históricos.
"Quinhentos francos por mês equivalem a 6 mil por ano, e, para ganhá-los, tudo o que preciso fazer é escrever um capítulo a cada manhã."
"Em breve, Lorde R’Hoone será o homem do momento, o mais prolífico e agradável dos autores... E então homens, mulheres, crianças e embriões estarão saltando para cima e para baixo como colinas, e eu terei dezenas de casos de amor."
Enquanto isso, caso fracassasse, sua irmã tentaria encontrar para ele uma viúva rica. Ele lhe prometeu "5% de comissão sobre o dote, e alguns presentes": "Envie todas as que puder encontrar para Lorde R’Hoone, Paris. Devem ser enviadas pré-pagas, sem rachadura ou defeito; ricas e amáveis são preferíveis; beleza não é essencial".
Quando leram a primeira edição da correspondência de Balzac, em 1876, muitos de seus admiradores literários ficaram chocados pelo que consideraram cinismo, cobiça ou vulgaridade.
O autor das "Ilusões Perdidas" parecia nunca ter tido nenhuma ilusão a perder: "A urgência de sua fome por dinheiro [...] é rudemente exposta, e o desagradável lado oculto de seu desconforto nos olha diretamente na face" (Henry James); "mostra que ele foi um homem esplêndido: poderíamos amá-lo. Mas quanta preocupação com dinheiro e tão pouco amor pela arte!" (Gustave Flaubert). Esses foram julgamentos duros. Balzac tinha de provar a seus pais que era capaz de se sustentar.
Um amigo da família tentava lhe conseguir um trabalho, e ele estava em risco iminente de se tornar um cidadão normal: "Vou me tornar um atendente, uma máquina, um cavalo de circo. Serei igual a todos".

Sem tempo a perder
Esse temor era infundado.
Quando Balzac descobriu sua vocação e começou a praticar a eficiência desesperada que lhe permitiu escrever mais de cem romances e contos em menos de 20 anos, sua correspondência se transformou num exaustivo compêndio de dívidas, prazos perdidos, discussões com editores e queixas de falta de tempo.
Muito poucas dessas cartas foram escritas para demonstrar seu estilo e suas brilhantes percepções. Ele tinha muito pouco tempo a perder e tantos planos em curso que romances inteiros passam na correspondência como rostos em um ônibus.
"Pele de Onagro" (1831) é representado apenas por algumas alusões, um contrato e suas garantias habituais de que o romance, mal começado, logo seria concluído.
Fatos contemporâneos são quase totalmente ausentes. Seus comentários mais esclarecedores sobre o processo de criação literária se referem à passagem do tempo.
"Perdoe-me, mas sinto que só tenho um momento para fazer o que preciso. [...] Algumas coisas na literatura são como carne: muito tempo e fica cozida demais; muito pouco, e a carne continua sangrenta."

Roupagens diferentes
O próprio Balzac é um borrão.
Ele se mostra sob tantas roupagens diferentes ùo escritor urbano na moda, o amante apaixonado, o candidato legítimo, o herói martirizado por sua arteù que parece mais distante em suas cartas do que nos romances.
O efeito é surpreendente, no que parece ser uma correspondência tão espontânea e desarmada. Há em suas cartas um ar constante de pânico reprimido, como se todos os diferentes balzacs estivessem metidos em uma trama complexa que talvez nunca encontrasse um desenlace.
Qualquer leitor dessa correspondência agitada poderia simpatizar com a sonâmbula que, segundo Balzac, pousou a mão em seu estômago, espiou dentro de seu cérebro e recuou horrorizada, dizendo: "Que tipo de mente é essa? É um mundo!".
Este volume termina em 1835, ano em que foi publicado "O Pai Goriot".
Embora ainda não tivesse encontrado o título "A Comédia Humana", Balzac havia decidido que todas as suas novelas formariam uma única obra ù"uma obra que conterá todas as figuras e todas as posições sociais".
Ele reunira um grupo de amigos e fiéis correspondentes que criticavam seu trabalho, às vezes selvagemente, e cujas correções ele invariavelmente aceitava.
Também encontrara seu mais dedicado e maleável editor, Edmond Werdet, e o convencera de que em pouco tempo ambos estariam ricos, "e nossas carruagens se encontrarão no Bois de Boulogne, para mortal irritação de todos os que nos invejam".
"Aliás", acrescentou, tipicamente, "fiquei sem dinheiro. Pedi 500 francos emprestados a Rothschild em seu nome, pagáveis em dez dias".
Dezesseis anos depois de entrar na estrada para a glória e a riqueza, Balzac viu todos os seus sonhos se realizarem. Ele era admirado como pensador e como "o mais prolífico de nossos romancistas" por correspondentes de toda a Europa .

Preço caro
Estava perto de pagar todas as suas dívidas e adquirir uma nova casa "com móveis iguais aos que se encontram nas mais ricas casas de Paris".
Mas o trabalho hercúleo estava cobrando seu preço. Os cabelos de Balzac embranqueciam e caíam "a mancheias". Ele sofria dores nas costas e acessos de tontura. Às vezes caía em estupor, e nem sua mistura especial de café conseguia reativar seu cérebro.
Os dois volumes de correspondência que ainda serão publicados contarão uma história semelhante, e o mistério do gênio de Balzac continuará sem solução, mesmo pelo próprio Balzac.
Quando lhe foi solicitado por sua amiga Zulma Carraud, em agosto de 1835, ajudar um rapaz que queria ser escritor, ele aproveitou a oportunidade para refletir sobre sua própria carreira surpreendente.
"O talento para escrever não é contagioso; deve ser adquirido lentamente. [...] Passarão dez anos antes que ele possa viver de sua pena [...] e quem desejaria os dez anos que acabo de viver? Ele tem a proteção de que eu gozei? Ele conheceria as mulheres que ampliariam sua mente, entre carícias, erguendo a cortina que esconde o palco do mundo? Ele teria tempo para visitar os salões? Ele tem o gênio da observação? Ele colherá idéias que florescerão daqui a 15 anos? Um escritor é um fenômeno que ninguém compreende."

GRAHAM ROBB é um dos principais biógrafos do escritor francês, autor de "Balzac" (Companhia das Letras). Este texto foi publicado no "Times Literary Supplement". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


CORRESPONDANCE - VOLUME 1 (1809-1835)
Organização:
Roger Pierrot e Hervé Yon
Editora: Gallimard (França)
Quanto: 69 euros, R$ 183 (1.604 págs.)
ONDE ENCOMENDAR - Livros em francês podem ser encomendados no site www.alapage.com



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