São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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Ponto de Fuga

As quatro faces de Emma: Chabrol


Claude Chabrol ironiza a burguesia francesa, e isso já o põe em sintonia com o romance de Flaubert; mas há mais: seus heróis projetam no mundo os próprios temores e desejos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Muitos críticos ressaltaram o quão foi fiel a adaptação cinematográfica que Claude Chabrol fez do romance "Madame Bovary", escrito por Gustave Flaubert.
Fidelidade, de alguns pontos de vista, pode não ser um bom predicado em arte. Um filme é um filme, um livro é um livro.
As obras têm qualidades específicas, que brotam delas mesmas. Resta o fato de que existem muitas afinidades entre o cineasta e o romance.
Chabrol passou sua adolescência numa aldeiazinha da Creuse, Departamento francês que, como a Normandia de Emma Bovary, é um fim de mundo. Conheceu na pele o tédio dos vilarejos morosos. Veio de uma classe média modesta, como Charles Bovary; seu pai era farmacêutico, um Monsieur Homais local.
Chabrol, observador, ironiza a burguesia francesa, sobretudo a das cidadezinhas. Isso já o põe em sintonia com o romance de Flaubert. Há mais. Seus heróis projetam no mundo os próprios temores e desejos; o crime (ou o suicídio) ocorre quando atravessam a fronteira entre o imaginário e o real.
Mergulhados na percepção deformada das aparências, persistem em suas ilusões e, por isso mesmo, tomam, sem que se perceba, a direção do trágico.
Esse descompasso entre o mundo e sua representação tem muito em comum com "Madame Bovary": no cotidiano, a normalidade aparente dos personagens termina em loucura criminosa ou suicida.

Infiltrar
As afinidades entre Chabrol e o Flaubert de "Madame Bovary" são grandes. O cineasta escolheu o tom da crônica, da descrição de costumes, bem presente no romance.
Talvez tenha derivado algumas cenas dos dois filmes que o precederam sobre o mesmo tema, o de Renoir e o de Minelli, como numa homenagem: a maneira com que Isabelle Huppert, sua Bovary, bebe num copo; os criados que quebram as janelas no baile, por exemplo.
São situações que se encontram no romance, mas que foram sublinhadas antes dele pelos dois cineastas. Chabrol as insere numa clara vontade de descrever os comportamentos coletivos.
Ocorre que esse tecido humano permite uma obsessão própria ao cineasta. Ele cria constantemente seres que se ligam a outros por vasos comunicantes invisíveis, pouco manifestos, mas muito sentidos e fatais: nem o crime ou a imoralidade conseguem destruí-los.
São laços que instauram uma compreensão e uma empatia para além dos erros, das faltas tremendas.
Madame Bovary, no entanto, não encontra esse parceiro à sua altura, capaz de vincular-se a ela, entendendo, silenciosamente, seu amor e seus atos.
São afetos sem retorno, que existem "em seco", por assim dizer, numa sociedade que não os comporta.

Coda
Nem Renoir, nem Minelli, nem Chabrol, ao filmarem a mesma "Madame Bovary", levaram a trama muito adiante depois que a heroína morre.
No romance, as páginas que sucedem seu suicídio são de infinita tristeza. O sofrimento de Charles, a lembrança de Emma que, como um fantasma, "corrompia-o do além-túmulo" e "se desfazia em podridão" quando ele buscava abraçá-la em seus sonhos, não tentou os cineastas.

Fábula
A defesa que conseguiu inocentar Flaubert no processo movido contra ele mostrou que, ao descrever imoralismos, o autor fizera um livro moral.
Há uma certa verdade nisso.
No final, a filhinha do casal Bovary, sem dinheiro, termina como operária numa fiação. É a sentença final da fábula: punição suprema aos olhos de uma classe média que põe a felicidade na ascensão social.


jorgecoli@uol.com.br


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