São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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O baú proibido

A PARTIR DE PESQUISAS NA UNIVERSIDADE DE OXFORD E NA BIBLIOTECA BRITÂNICA, "ESCAVANDO KAFKA", DE JAMES HAWES, TENTA DESMITISFICAR A VIDA ÍNTIMA E PÚBLICA DE UM DOS PRINCIPAIS ESCRITORES DO SÉCULO 20

PEDRO DIAS LEITE
DE LONDRES

Um segredo literalmente do fundo do baú, conhecido há quase um século por alguns poucos acadêmicos, veio à tona na quinta-feira passada, com a publicação, no Reino Unido, de um livro que revela a coleção de revistas eróticas de Franz Kafka (1883-1924) -um dos mais importantes escritores do século 20.
Com o objetivo declarado de desmistificar o escritor tcheco de língua alemã, a obra do pesquisador James Hawes, "Excavating Kafka" (Escavando Kafka, ed. Quercus, 272 págs., 14,99, R$ 46), também traz imagens daquelas publicações -que o Mais! reproduz nesta edição.
Segundo o autor, Kafka guardava a coleção em um baú na casa dos pais, onde vivia (e cuja chave levava quando ia viajar). Ela permaneceu durante décadas guardada na British Library (Biblioteca Britânica), em Londres, e na tradicionalíssima Bodleian, na Universidade de Oxford.
Para Hawes, é bom esquecer de vez a figura solitária, a alma torturada oprimida pelo pai e praticamente ignorada por seus contemporâneos, que anteviu o horror do Holocausto e dos gulags soviéticos.

Alienação
Kafka, nas palavras do autor do livro, era "filho de um milionário e viciado em prostitutas durante toda a sua vida adulta; um escritor apoiado por um grupo influente e que era admirado (e sabia disso) por quase todos os seus colegas escritores; um leal cidadão Habsburgo com um alto cargo estatal que esperava (e queria) que a Alemanha e a Áustria vencessem a Primeira Guerra Mundial, até o final; um homem que não tinha a menor idéia do Holocausto, assim como qualquer outro".
Com um texto tão debochado, que chega a colocar em dúvida a seriedade de sua tese, Hawes parte da coleção de revistas eróticas de Kafka para mostrar esse outro lado do autor de "A Metamorfose", "O Processo" e "O Castelo", entre outras obras fundamentais.
Formado em Oxford e mais conhecido por seus romances humorísticos (como "Speak for England", Fale Pela Inglaterra), Hawes diz que a "dica" para a coleção está disponível há pelo menos 85 anos, na primeira biografia que o mais famoso biógrafo de Kafka, seu amigo Max Brod, escreveu sobre ele.
"O mistério é por que isso permaneceu um segredo por tanto tempo. A razão por trás disso, suspeito, é que revelar a ligação de Kafka com a pornografia também conta a verdade sobre toda a sua vida literária", escreveu Hawes num artigo recente para o "The Guardian".
A explicação para esse raciocínio é que "o homem que entregava o pornô a Kafka em 1906-7 é a mesma pessoa que publicou seus textos pela primeira vez, em 1908 -e que, como juiz de um dos maiores prêmios literários de Berlim, ajeitou as coisas para que Kafka ficasse com a glória".
O homem é Franz Blei, e os textos depois foram reunidos em "Meditação".
A coleção que Kafka escondia tão bem dificilmente chocaria um adolescente em tempos de internet. A maioria das imagens é de figuras quase "artísticas", como um desenho de uma mulher de calcinha com homens-miniatura a seus pés. Algumas chegam a ser bizarras, como um sapo chupando um pênis ("Le Gourmand").
As publicações ("Ametista" e "As Opalas"), adquiridas por meio de assinatura, já lançavam uma tendência mantida até hoje pela maior parte das revistas masculinas, misturando imagens pornográficas e eróticas com textos não relacionados a sexo e, outros, sim.
Mesmo assim, ainda hoje pornografia e literatura parecem não se relacionar tranqüilamente. Em entrevista ao "The Times", Hawes contou que seu editor norte-americano relutou em publicar o material. "Não são cartões-postais safadinhos tirados na praia. Sem dúvida, são imagens pornográficas, pura e simplesmente. Há algumas bem pesadas, é bem desagradável", disse.

Retirar o entulho
Seu objetivo ao "demolir o mito" construído em torno de Kafka não é diminuir sua obra, diz Hawes (que estuda o autor desde 1982, quando viu o manuscrito original de "O Castelo"), mas permitir uma avaliação mais clara de seu trabalho.
"Com o entulho retirado para longe, talvez finalmente nós consigamos ver o trabalho de Kafka pelo que ele realmente é -não o troço deprimido e obscuro que recebemos pós-Auschwitz dos existencialistas franceses, mas suas maravilhosas "comédias negras" ("black comedies"), escritas por um homem profundamente influenciado pelos escritos de seus predecessores e de sua própria época", afirma Hawes.


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