São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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Memória

A fé e o gulag

Em uma de suas últimas entrevistas, Alexander Soljenitsin, o mais famoso dissidente soviético, fala da situação da Rússia e da relação com a morte

CHRISTIAN NEEF
MATTIAS SCHEPP

Rebelde, prisioneiro, poeta e herói: meio século depois de publicados, os arrasadores relatos de Alexander Soljenitsin sobre os campos de trabalho forçado de Stálin permanecem entre as obras mais profundas da literatura moderna.
No verão europeu do ano passado, quando sua saúde começava a falhar, o escritor relembrou sua vida extraordinária na entrevista abaixo. Leia os principais trechos.

 

PERGUNTA - Alexander Issaievitch, quando chegamos, nós o encontramos trabalhando. Parece que, aos 88 anos, o sr. ainda sente essa necessidade de trabalhar, embora sua saúde já não lhe permita andar pela casa. De onde o sr. tira sua força?
ALEXANDER SOLJENITSIN
- Sempre tive essa motivação interior para o trabalho, desde que nasci.
E sempre me dediquei com alegria ao trabalho e à luta.

PERGUNTA - Em seu livro "Meus Anos Americanos", o sr. recorda que costumava escrever até mesmo quando caminhava pela floresta.
SOLJENITSIN
- Quando eu estava no gulag, às vezes escrevia até sobre muros de pedra. Eu escrevia sobre pedacinhos de papel, memorizava o que tinha escrito e então destruía os papéis.

PERGUNTA - E sua força não o abandonou, mesmo em momentos de desespero?
SOLJENITSIN
- Sim. Eu pensava freqüentemente: "Seja o que for que aconteça, que assim seja". E então as coisas davam certo. Parece que algo de bom resultou de tudo isso.

PERGUNTA - Não sei se o sr. teve essa opinião quando, em 1945, foi preso pelo serviço secreto militar na Prússia. Em suas cartas escritas do front, o sr. fez menções pouco elogiosas a Stálin, e o castigo foi uma sentença de oito anos nos campos de prisioneiros.
SOLJENITSIN
- Tínhamos acabado de escapar de um cerco alemão e marchávamos para Königsberg [atual Kaliningrado, Rússia], onde fui preso. Sempre fui otimista.

PERGUNTA - Em toda a sua vida o sr. pediu às autoridades que expressassem arrependimento pelos milhões de vítimas do gulag e do terror comunista. Esse apelo foi ouvido?
SOLJENITSIN
- Já me acostumei ao fato de que o arrependimento público é inaceitável para o político moderno.

PERGUNTA - O premiê Vladimir Putin diz que a queda da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século 20 e que é mais que chegada a hora de parar com essa reflexão sombria e masoquista sobre o passado, especialmente porque há tentativas "de fora", como ele diz, de provocar remorso não justificado entre os russos. Isso não ajuda aqueles que querem que as pessoas esqueçam tudo o que aconteceu no passado soviético do país?
SOLJENITSIN
- Bem, há uma preocupação crescente em saber como os EUA vão lidar com seu novo papel de única superpotência, adquirido graças a mudanças geopolíticas.
Quanto à "reflexão sombria sobre o passado", infelizmente aquela confusão entre "soviético" e "russo", contra a qual me manifestei tantas vezes nos anos 1970, ainda não desapareceu no Ocidente.
Não devemos atribuir os malfeitos de líderes ou regimes políticos individuais a um defeito inato do povo russo ou de seu país. Não devemos atribuir isso à "psicologia doentia" dos russos, como freqüentemente é feito no Ocidente.
Todos esses regimes na Rússia só puderam sobreviver graças à imposição de um terror sangrento. Precisamos entender claramente que uma nação só pode se curar quando seu povo reconhece sua culpa de maneira voluntária e consciente.
Críticas implacáveis feitas de fora são contraproducentes.

PERGUNTA - Após sete anos de governo de Putin, o poder está concentrado nas mãos do presidente, tudo é orientado em direção a ele.
SOLJENITSIN
- Sim, sempre insisti na necessidade de autogoverno local para a Rússia, mas nunca opus esse modelo à democracia ocidental.
Pelo contrário, venho procurando convencer meus concidadãos, citando os exemplos de sistemas altamente eficazes de autogoverno local na Suíça e Nova Inglaterra.
Ainda vejo com extrema preocupação a lentidão do desenvolvimento do autogoverno local. Mas esse processo já começou. Na época de Ieltsin, o autogoverno local era proibido, enquanto a "linha vertical do poder" do Estado (ou seja, a administração de cima para baixo de Putin) vem delegando cada vez mais decisões às populações locais. Infelizmente, esse processo ainda não ganhou caráter sistemático.

PERGUNTA - Qual é a situação da literatura russa hoje?
SOLJENITSIN
- Períodos de transformações aceleradas e fundamentais nunca foram favoráveis à literatura. As obras significativas quase sempre, e em todo lugar, foram criadas em períodos de estabilidade, seja ela boa ou ruim. A literatura russa moderna não é exceção.
O leitor educado se interessa muito mais pela não-ficção.
Acredito, porém, que a justiça e a consciência não serão atiradas aos quatro ventos, mas continuarão presentes nos fundamentos da literatura russa, de modo que ela possa servir para iluminar nosso espírito e aumentar nossa compreensão.

PERGUNTA - O sr. já disse que lhe é difícil falar sobre religião em público. O que a fé significa para o sr.?
SOLJENITSIN
- Para mim, é o alicerce e o apoio de nossas vidas.

PERGUNTA - O sr. teme a morte?
SOLJENITSIN
- Não. Quando eu era jovem, a morte precoce de meu pai lançou uma sombra sobre mim, e eu tinha medo de morrer antes de meus planos literários se concretizarem.
Mas, entre os 30 e 40 anos de idade, minha atitude em relação à morte ficou calma e equilibrada. Sinto que ela é um marco natural de nossa existência, mas de modo nenhum o último.

PERGUNTA - Ainda assim, lhe desejamos muitos anos de vida criativa.
SOLJENITSIN
- Não, não. Não façam isso. Já vivi o bastante.


A íntegra desta entrevista foi publicada no jornal "The Independent".
Tradução de Clara Allain.


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