São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006 |
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Jogo de espelhos
Disputa pela hegemonia do debate público entre a direita, o "petismo" e a extrema esquerda legitima, no Brasil, o prestígio de líderes autoritários como Fidel Castro e Hugo Chávez
Poderíamos nos perguntar, aliás, que futuro terá a esquerda totalitária e populista "heavy" na América Latina (Castro e seus admiradores) depois da debacle do comunismo. A meu ver a revivescência da esquerda totalitária é um "estrebuchar de vencidos", mas esse estrebuchar, como acontece em geral na história, pode, ainda, durar um bom tempo. No Terceiro Mundo é, assim, uma esquerda pelo menos indulgente com os totalitarismos que tem a hegemonia. E não só no interior das esquerdas, mas no plano mais geral da "opinião pública", o que é pouco visível. Em princípio se supõe que, dados os seus recursos, só a direita domina. Na realidade, no Brasil, a direita divide o que poderíamos chamar de hegemonia com o "petismo" e com a extrema esquerda. A primeira dispõe da grande maioria dos instrumentos de informação, o segundo é governo -o que implica, direta ou indiretamente, certo poder sobre a opinião-, a terceira tem nas mãos algumas revistas, pelo menos uma editora e alguns outros órgãos de informação. Quanto à esquerda democrática, mesmo se consegue se fazer ouvir por meio de colaboradores em jornais e revistas, ela não dispõe praticamente -ao contrário do que ocorre na Europa- de nenhum instrumento importante na mídia nem tem grandes possibilidades de influenciar a opinião pública. Admiração mútua Se quisermos ter uma idéia do peso da esquerda pró-totalitária, basta dizer -e isso independe de quem sejam os donos das editoras- que, de uma dezena de livros jornalísticos de crítica ao regime cubano, só um ou dois foram traduzidos para o português ou circulam no Brasil. Recentemente, uma editora brasileira publicou um livro sobre a história de Cuba. Tratar-se-ia por acaso da história clássica de Hugh Thomas ["Cuba or The Pursuit of Freedom", Da Capo Press]? Não, trata-se de livro de um autor simpático ao regime, que compara a Cuba castrista de hoje com a Inglaterra em 1945 e que, por meio de um hábil manejo das aspas, chama os dissidentes cubanos de "inimigos do povo". Dois elementos interessantes no fenômeno da hegemonia (interna e, parcialmente, externa) da esquerda não-democrática. Um é que, até certo ponto, se não toda a direita, sem dúvida parte dela tem uma grande admiração pelos ícones da esquerda antidemocrática. Um exemplo. Há alguns dias, um artigo assinado pelo ex-presidente José Sarney tecia loas a Castro, comparando-o a Simón Bolívar. O fenômeno não é recente. Por realismo ou por falta de amor pela democracia, parte da direita tem uma fascinação secreta pela esquerda antidemocrática. Foi assim no tempo de Stálin e de Mao, continua sendo assim hoje, pelo menos no Terceiro Mundo (no Primeiro, temos o fenômeno dos grandes interesses capitalistas ligados ao poder castrista, que desejam, antes de mais nada, garantir a estabilidade dos seus investimentos em Cuba). Inversamente, e de maneira ainda mais nítida, a extrema esquerda antidemocrática, sob muitos aspectos, prefere a direita à esquerda democrática. Aqueles que se permitem criticar um regime como o castrista de um ponto de vista de esquerda certamente são tratados com uma violência muito maior do que a que é exercida contra os críticos de direita (na realidade, é muito mais fácil enfrentar estes últimos). Os críticos de esquerda -sei por experiência própria- são, em geral, denunciados como "gusanos" (vermes) ou outros epítetos zoológicos que substituem com vantagem os argumentos racionais e a análise dos fatos. Um segundo elemento nos devolve ao nosso ponto de partida. A extrema esquerda brasileira se apóia freqüentemente numa extrema esquerda intelectual do Primeiro Mundo. Há aí um curioso jogo de espelhos. Jornais e revistas de extrema esquerda, editados na Europa, têm boa parte de seus leitores e assinantes na extrema esquerda do mundo subdesenvolvido. Esta, por sua vez, se legitima no que supõe ser "a imprensa revolucionária do Primeiro Mundo". Na realidade, trata-se de publicações (às vezes muito decadentes) que, precisamente, vivem daquele público radical do Terceiro Mundo. O manifesto pró-Heloísa Helena se insere, um pouco, nesse jogo de espelhos. A candidata tem até os seus méritos (por exemplo, a sua crítica à corrupção petista). Mas ela seria melhor sem o coro radical, que, "da Europa, França e Bahia", a acompanha com o seu eco. RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34). Texto Anterior: Também crítico de peso, Bonnefoy lança livro de ensaios Próximo Texto: Documento apóia "radicais" Índice |
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