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O refúgio new age de Asterix
O líder sindicalista e crítico dos transgênicos José Bové constrói casa ecológica no interior da França e defende seu isolamento como "opção de vida"
RAPHAÓLLE BACQUÉ
F
oi difícil obter o alvará
de construção. A primeira carta recebida
do arquiteto que assessorava o departamento de licenciamento de
construções foi desanimadora:
"O seu projeto não se enquadra
à arquitetura vernacular da região de Larzac". Seria preciso
modificar quase tudo.
José Bové e sua companheira, Ghislaine Ricez, protestaram. Por fim, um funcionário
parisiense foi enviado em uma
visita ao local, em Montredon
(Aveyron), a 90 minutos de
carro de Montpellier [sul]. Era
inverno, um frio terrível. Dois
habitantes por quilômetro
quadrado em meio aos altiplanos calcários.
Para a ocasião, foi requisitada a presença do prefeito local,
"um bom sujeito", e a do arquiteto responsável pelo projeto,
Patrick Ballester, um adepto da
filosofia budista, ecologista
convicto. Lá, por sob as encostas que abrigam ovelhas, em
meio aos buxos e aos carvalhos,
o arquiteto enviado pelo departamento de licenciamento recebeu uma pequena aula.
No momento, a construção
está a ponto de ser concluída.
Trata-se de uma casa em estilo
contemporâneo, de madeira e
vidro, montada sobre pilotis.
Um sonho de moradia new age
que traz irresistivelmente à
mente as casas dos burgueses
boêmios da Costa Oeste dos
EUA e Canadá.
Obra sem barulho
Bové está contemplando o
canteiro de obras, vestindo calção e sandálias de couro, com o
bigode que o torna tão fácil de
reconhecer e o jeito acessível
que o caracteriza. Desde 15 de
maio, ele trabalha na construção quase todos os dias, com a
ajuda dos amigos que o visitam.
"E, quando não estou trabalhando, é porque estou extirpando plantas geneticamente
modificadas", brinca.
Trata-se de uma casa 100%
ecológica. Trepadeiras nos muros, calhas de cobre, tinta sem
componentes químicos, vernizes não-poluentes.
A construtora importa quase
todos os seus produtos da Alemanha, que leva grande vantagem sobre a França na produção desse tipo de material natural de construção, negligenciado entre os franceses devido ao
predomínio dos grandes grupos industriais de construção.
Todas as peças de madeira já
chegam cortadas ao canteiro de
obras. A estrutura é montada
por encaixe. Nenhum prego é
utilizado.
"Trata-se de uma obra sem
barulho", comemora Bové. Nos
últimos dias, a montagem das
janelas estava sendo concluída.
Em breve, o isolamento das paredes internas com placas de
cortiça será iniciado. Depois,
será instalado o fermacel, um
material de revestimento composto por uma mistura de gesso
e celulose. Por fim, o telhado
vegetal será recoberto de terra.
Misticismo
No chão, entre as tábuas que
servirão de apoio ao assoalho,
lascas de cortiça servirão como
isolamento térmico. Painéis solares garantirão a produção de
40% da água quente. O aquecimento será fornecido por um
grande forno a lenha. Os vasos
sanitários funcionam sem
água. Eles operam com serragem, e se esvaziam em um
grande receptáculo de material
composto.
"Isso garante que não haverá
odor e que a reciclagem será
máxima", sorri Bové.
O casal passou horas procurando os melhores pontos de
vista. Instalados à sombra de
uma árvore ou caminhando,
eles observaram os locais favoritos das ovelhas. "Isso muitas
vezes é um bom indicador: onde as ovelhas escolhem passar a
noite, lá construirás teu lar",
brinca Bové.
Os romanos, diz Ballester, já
costumavam observar o fígado
de seus animais e, se estes demonstravam saúde, construíam suas casas nos locais em
que eles pastavam.
O local enfim escolhido, bem
próximo do ponto em que Bové
se instalou em 1976, serviu como ponto de partida do projeto.
Oferece uma bela vista da natureza, das árvores e de um grande rochedo.
O arquiteto conferiu ao local
uma certa dose de misticismo.
"Vim fazer um estudo do terreno, trazendo comigo minhas
varas e pêndulos", explicou Ballester. "Antes de começar uma
construção, sempre estudo o
magnetismo, as correntes telúricas, as falhas tectônicas. Em
um terreno magnificamente
equilibrado, temos saúde melhor". O terreno era ideal, e ele
começou a desenhar a planta.
Não foi preciso grande debate sobre o número de quartos.
Bové, 53, será avô em breve,
mas desejava acima de tudo um
escritório claro e agradável.
E o cômodo, de fato, parece
ser o centro da casa: construído
em um mezanino, com um terraço adjacente e uma parede
envidraçada, será o cenário
ideal para que ele escreva seus
libelos contra o liberalismo.
A casa, de 110 metros quadrados e três pavimentos, abriga
uma grande sala de estar voltada para o sudeste, com uma varanda que se estende por duas
das paredes, uma cozinha americana e uma adega ao norte,
dois quartos, um quarto de vestir, um banheiro, o grande escritório, um teto vegetal onde
serão cultivadas "belas plantas
que permitam que vejamos o
progresso das estações, mas nada de maconha, porque isso é
proibido", brinca Bové.
O orçamento? Por volta de
1.000 [R$ 2.730] por metro
quadrado construído.
"Vamos almoçar em breve, se
quiser esperar", propõe gentilmente Ricez. O local é o restaurante Jasse du Larzac, localizado a cerca de 10 quilômetros,
que serve excelentes salsichas
grelhadas e vinho orgânico.
Vamos de carro, e Bové explica que a estrada "foi asfaltada
em 1985, o ano em que recebemos água corrente. Mas tivemos de esperar dois anos mais
pela eletricidade". Percorremos um trecho paralelo ao perímetro de uma das últimas bases
militares. Terra inculta, florestas de pinho. Será que, em última análise, ao ocupar esses terrenos, o Exército não preservou
a natureza bruta? "Sim, mas
prefiro ver as ovelhas. No verão,
esses abestalhados causam incêndios com seus exercícios de
tiro", responde Bové.
Encontro com a polícia
Depois de uma curva, atrás
das árvores, percebe-se a capota azul de um carro. A polícia. O
sindicalista coloca o cinto de
segurança, até então ignorado.
Mas a tentação é grande demais, e ele decide parar o carro
para ver de perto seus melhores
inimigos. Os dois policiais saúdam o astro da região.
Não há problema nenhum
quanto a "José". Mas a caravana do partido UMP (União por
um Movimento Popular), que
está a caminho de Millau para
promover a candidatura presidencial de Nicolas Sarkozy,
passará por ali. E eles não querem que os sindicalistas da confederação rural, os inimigos dos
produtos geneticamente modificados, os defensores dos imigrantes ilegais -em suma, os
contestadores reunidos da região- se defrontem com os
partidários do candidato rival.
"Os policiais não são maus,
por aqui", diz Bové. "Geralmente, ficam um tanto perplexos ao chegar à região, mas,
quando se acomodam, passam
a compreender melhor o local."
Há alguns meses, um deles se
aproximou para apertar calorosamente a mão do sindicalista.
"Não se lembra de mim? Fui eu
que te levei para a prisão de Villeneuve-Maguelonne!"
Será que ele abandonaria tudo isso para disputar uma eleição presidencial? Deixaria sua
casa feliz, sua fazenda e os dois
sócios, seus amigos e os folclóricos gendarmes que servem à
sua imagem de Asterix popular? Ghislaine prefere que não.
"Os ataques são duros demais",
ela diz. "E, de qualquer jeito,
não deixarão que ele concorra."
Candidato hesitante
"José" ainda assim acompanha por telefone as reuniões
dos verdes, da LCR (Liga Comunista Revolucionária), da
Attac (Ação pela Tributação
das Transações Financeiras em
Apoio aos Cidadãos) e dos agrupamentos de esquerda que gostariam de vê-lo carregando
suas bandeiras na eleição.
Mas está hesitante. Caso decida pela candidatura [a eleição
presidencial ocorrerá em abril
de 2007], será difícil fazer campanha de sua casa em Larzac,
como vem fazendo até agora
para quase todas as suas grandes empreitadas como líder
camponês. "Não há internet rápida na casa, e mandar três e-mails leva horas", diz Ghislaine,
acrescentando que "o celular
nem sempre funciona".
Há algumas semanas, Peter
Yarrow, astro do grupo Peter,
Paul and Mary nos anos 60,
veio a Montredon. Achou que
enlouqueceria, porque não suporta viver sem acesso aos
meios modernos de comunicação. Isso faz com que Bové ria
uma vez mais. "Instalar-se aqui
é uma opção de vida."
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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