São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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O refúgio new age de Asterix

O líder sindicalista e crítico dos transgênicos José Bové constrói casa ecológica no interior da França e defende seu isolamento como "opção de vida"

RAPHAÓLLE BACQUÉ

F oi difícil obter o alvará de construção. A primeira carta recebida do arquiteto que assessorava o departamento de licenciamento de construções foi desanimadora: "O seu projeto não se enquadra à arquitetura vernacular da região de Larzac". Seria preciso modificar quase tudo.
José Bové e sua companheira, Ghislaine Ricez, protestaram. Por fim, um funcionário parisiense foi enviado em uma visita ao local, em Montredon (Aveyron), a 90 minutos de carro de Montpellier [sul]. Era inverno, um frio terrível. Dois habitantes por quilômetro quadrado em meio aos altiplanos calcários.
Para a ocasião, foi requisitada a presença do prefeito local, "um bom sujeito", e a do arquiteto responsável pelo projeto, Patrick Ballester, um adepto da filosofia budista, ecologista convicto. Lá, por sob as encostas que abrigam ovelhas, em meio aos buxos e aos carvalhos, o arquiteto enviado pelo departamento de licenciamento recebeu uma pequena aula.
No momento, a construção está a ponto de ser concluída. Trata-se de uma casa em estilo contemporâneo, de madeira e vidro, montada sobre pilotis. Um sonho de moradia new age que traz irresistivelmente à mente as casas dos burgueses boêmios da Costa Oeste dos EUA e Canadá.

Obra sem barulho
Bové está contemplando o canteiro de obras, vestindo calção e sandálias de couro, com o bigode que o torna tão fácil de reconhecer e o jeito acessível que o caracteriza. Desde 15 de maio, ele trabalha na construção quase todos os dias, com a ajuda dos amigos que o visitam. "E, quando não estou trabalhando, é porque estou extirpando plantas geneticamente modificadas", brinca.
Trata-se de uma casa 100% ecológica. Trepadeiras nos muros, calhas de cobre, tinta sem componentes químicos, vernizes não-poluentes.
A construtora importa quase todos os seus produtos da Alemanha, que leva grande vantagem sobre a França na produção desse tipo de material natural de construção, negligenciado entre os franceses devido ao predomínio dos grandes grupos industriais de construção.
Todas as peças de madeira já chegam cortadas ao canteiro de obras. A estrutura é montada por encaixe. Nenhum prego é utilizado.
"Trata-se de uma obra sem barulho", comemora Bové. Nos últimos dias, a montagem das janelas estava sendo concluída. Em breve, o isolamento das paredes internas com placas de cortiça será iniciado. Depois, será instalado o fermacel, um material de revestimento composto por uma mistura de gesso e celulose. Por fim, o telhado vegetal será recoberto de terra.

Misticismo
No chão, entre as tábuas que servirão de apoio ao assoalho, lascas de cortiça servirão como isolamento térmico. Painéis solares garantirão a produção de 40% da água quente. O aquecimento será fornecido por um grande forno a lenha. Os vasos sanitários funcionam sem água. Eles operam com serragem, e se esvaziam em um grande receptáculo de material composto.
"Isso garante que não haverá odor e que a reciclagem será máxima", sorri Bové.
O casal passou horas procurando os melhores pontos de vista. Instalados à sombra de uma árvore ou caminhando, eles observaram os locais favoritos das ovelhas. "Isso muitas vezes é um bom indicador: onde as ovelhas escolhem passar a noite, lá construirás teu lar", brinca Bové.
Os romanos, diz Ballester, já costumavam observar o fígado de seus animais e, se estes demonstravam saúde, construíam suas casas nos locais em que eles pastavam.
O local enfim escolhido, bem próximo do ponto em que Bové se instalou em 1976, serviu como ponto de partida do projeto. Oferece uma bela vista da natureza, das árvores e de um grande rochedo.
O arquiteto conferiu ao local uma certa dose de misticismo. "Vim fazer um estudo do terreno, trazendo comigo minhas varas e pêndulos", explicou Ballester. "Antes de começar uma construção, sempre estudo o magnetismo, as correntes telúricas, as falhas tectônicas. Em um terreno magnificamente equilibrado, temos saúde melhor". O terreno era ideal, e ele começou a desenhar a planta.
Não foi preciso grande debate sobre o número de quartos. Bové, 53, será avô em breve, mas desejava acima de tudo um escritório claro e agradável.
E o cômodo, de fato, parece ser o centro da casa: construído em um mezanino, com um terraço adjacente e uma parede envidraçada, será o cenário ideal para que ele escreva seus libelos contra o liberalismo.
A casa, de 110 metros quadrados e três pavimentos, abriga uma grande sala de estar voltada para o sudeste, com uma varanda que se estende por duas das paredes, uma cozinha americana e uma adega ao norte, dois quartos, um quarto de vestir, um banheiro, o grande escritório, um teto vegetal onde serão cultivadas "belas plantas que permitam que vejamos o progresso das estações, mas nada de maconha, porque isso é proibido", brinca Bové.
O orçamento? Por volta de 1.000 [R$ 2.730] por metro quadrado construído.
"Vamos almoçar em breve, se quiser esperar", propõe gentilmente Ricez. O local é o restaurante Jasse du Larzac, localizado a cerca de 10 quilômetros, que serve excelentes salsichas grelhadas e vinho orgânico.
Vamos de carro, e Bové explica que a estrada "foi asfaltada em 1985, o ano em que recebemos água corrente. Mas tivemos de esperar dois anos mais pela eletricidade". Percorremos um trecho paralelo ao perímetro de uma das últimas bases militares. Terra inculta, florestas de pinho. Será que, em última análise, ao ocupar esses terrenos, o Exército não preservou a natureza bruta? "Sim, mas prefiro ver as ovelhas. No verão, esses abestalhados causam incêndios com seus exercícios de tiro", responde Bové.

Encontro com a polícia
Depois de uma curva, atrás das árvores, percebe-se a capota azul de um carro. A polícia. O sindicalista coloca o cinto de segurança, até então ignorado. Mas a tentação é grande demais, e ele decide parar o carro para ver de perto seus melhores inimigos. Os dois policiais saúdam o astro da região.
Não há problema nenhum quanto a "José". Mas a caravana do partido UMP (União por um Movimento Popular), que está a caminho de Millau para promover a candidatura presidencial de Nicolas Sarkozy, passará por ali. E eles não querem que os sindicalistas da confederação rural, os inimigos dos produtos geneticamente modificados, os defensores dos imigrantes ilegais -em suma, os contestadores reunidos da região- se defrontem com os partidários do candidato rival.
"Os policiais não são maus, por aqui", diz Bové. "Geralmente, ficam um tanto perplexos ao chegar à região, mas, quando se acomodam, passam a compreender melhor o local." Há alguns meses, um deles se aproximou para apertar calorosamente a mão do sindicalista. "Não se lembra de mim? Fui eu que te levei para a prisão de Villeneuve-Maguelonne!"
Será que ele abandonaria tudo isso para disputar uma eleição presidencial? Deixaria sua casa feliz, sua fazenda e os dois sócios, seus amigos e os folclóricos gendarmes que servem à sua imagem de Asterix popular? Ghislaine prefere que não. "Os ataques são duros demais", ela diz. "E, de qualquer jeito, não deixarão que ele concorra."

Candidato hesitante
"José" ainda assim acompanha por telefone as reuniões dos verdes, da LCR (Liga Comunista Revolucionária), da Attac (Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos) e dos agrupamentos de esquerda que gostariam de vê-lo carregando suas bandeiras na eleição.
Mas está hesitante. Caso decida pela candidatura [a eleição presidencial ocorrerá em abril de 2007], será difícil fazer campanha de sua casa em Larzac, como vem fazendo até agora para quase todas as suas grandes empreitadas como líder camponês. "Não há internet rápida na casa, e mandar três e-mails leva horas", diz Ghislaine, acrescentando que "o celular nem sempre funciona".
Há algumas semanas, Peter Yarrow, astro do grupo Peter, Paul and Mary nos anos 60, veio a Montredon. Achou que enlouqueceria, porque não suporta viver sem acesso aos meios modernos de comunicação. Isso faz com que Bové ria uma vez mais. "Instalar-se aqui é uma opção de vida."


Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.


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