São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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Histórias das arábias

Sai no Brasil tradução de "Os Poemas Suspensos", que teriam sido compilados no século 7º

MARCO LUCCHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Trago nos meus olhos um mar de histórias que vi contadas nas mais diversas paisagens do mundo árabe.
A praça de Djena el Fna, em Marrakech, e sua roda de ouvintes, atentos e suspendidos pelo fascínio de uma técnica narrativa.
E posso lembrar das noites carregadas de estrelas no deserto da Mauritânia, a história dos beduínos, cujo ritmo me fazia adivinhar o que já não era de todo imperscrutável. E, além disso, no café Naufara, próximo à mesquita de Al Ualid, longe das areias da Mauritânia e das praças do Magreb, as narrativas num borbulhar de narguilés em pleno coração noturno de Damasco.
Até hoje podemos seguir o fio tênue que durante séculos compôs um emaranhado de histórias que leva ao "Livro das Mil e Uma Noites" [ed. Globo] e à sede de horizontes de Simbad. Um privilégio do mundo árabe, a coexistência de dois grandes registros literários, oral e escrito.
Devemos a Alberto Mussa esse fio transoceânico. E aqui não seria o caso senão de agradecer-lhe a iniciativa da primeira tradução dos "Poemas Suspensos" no Brasil, boa tradução que melhor se realiza quanto mais avança do plano local ao plano global do próprio texto. Já tive ocasião de dizer de "O Enigma de Qaf" [Record] que o romance de Mussa era propriamente a tradução e a recriação daqueles poemas. O que não é pouco.
Diz uma lenda não afiançável que os poemas dessa antologia eram afixados na Pedra Negra, a Kaaba, em Meca. Teriam sido recolhidos por volta do século 7º por Hammed Ar-Rawiya, Hammed, o rapsodo.

Filhos do deserto
E quem seriam os sete poetas do Muallaqat? Eu não teria dificuldade em responder, como o fez Vico diante de Homero, que são os filhos do deserto da Arábia, que narram, cantando, a própria história.
Com uma métrica exuberante e uma estrutura recorrente, dividida em três partes, mais uma roda de ouvintes e um cenário beduíno: o poeta, que volta ao lugar de sua antiga aldeia, mas nada encontra, pois todos partiram em busca de outras e melhores pastagens, empreende uma viagem identitária, em que canta os perigos vários e os desafios que comporta uma travessia pelo deserto.
E, finalmente, a parte em que se louva o homem ideal, cantando a sua tribo. É árdua a tarefa de delimitar o início e o fim de cada um dos "Poemas Suspensos". Os prólogos de alguns são fragmentos de outros que não conhecemos e que se perderam totalmente.
Fixar para não perder... E, paradoxalmente, quando se toma a iniciativa de fixar é porque já se perdeu. Um problema tão fascinante quanto a fixação dos poemas "homéricos" na Grécia -os que formaram a "Ilíada" e a "Odisséia"- e o legado da poesia popular.
Uma analogia do mundo árabe pode ser estabelecida entre esses aedos beduínos, dispersos em suas tribos, e o que seria pouco mais tarde o Alcorão.
Maomé estava inscrito num sistema pré-islâmico de imaginação poética, atingindo a diversidade rítmica que encontramos já figurada nos sete poetas suspensos.
Desde a famosa "Introdução" (Muqaddimah), de Ibn Khaldum, há uma tendência parcial de reconhecer o diálogo da poesia pré-islâmica com o período seguinte -erguendo, muito embora, o Alcorão às máximas alturas, como livro dos livros, tão singular quanto incomparável.
Fazer essa ponte é também um ato político, em tempos sangrentos e separatistas, para lembrar o livro póstumo de Samir Kassir, "A Infelicidade Árabe". Não devemos perder de vista a biodiversidade e as formas de diálogo anteriores ao islã e seus numerosos frutos.

Olhar para o futuro
Mas isso significa também um olhar para os tempos modernos e para o futuro. Os "Poemas Suspensos" atravessam a cultura árabe contemporânea.
E bastam dois exemplos absolutos: a grande poesia de um Adonis, da obra "Cantos de Mihyar, o Damasceno", e -aquela me toca mais de perto- a obra de um dos maiores poetas contemporâneos, como Mahmud Daruish, em seu livro absoluto, "Mural". O poeta absoluto -como Maiakóvski- lendo seus poemas como um novo e forte contador de histórias para um público emocionado e suspenso.


MARCO LUCCHESI é poeta e escritor, autor de "Saudades do Paraíso" (Lacerda).
OS POEMAS SUSPENSOS
Tradução: Alberto Mussa
Editora: Record
Quanto: R$ 28,90 (210 págs.)



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