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Histórias das arábias
Sai no Brasil tradução de "Os Poemas Suspensos", que teriam sido compilados
no século 7º
MARCO LUCCHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Trago nos meus olhos
um mar de histórias
que vi contadas nas
mais diversas paisagens do mundo árabe.
A praça de Djena el Fna, em
Marrakech, e sua roda de ouvintes, atentos e suspendidos
pelo fascínio de uma técnica
narrativa.
E posso lembrar das noites
carregadas de estrelas no deserto da Mauritânia, a história
dos beduínos, cujo ritmo me fazia adivinhar o que já não era
de todo imperscrutável. E,
além disso, no café Naufara,
próximo à mesquita de Al Ualid, longe das areias da Mauritânia e das praças do Magreb,
as narrativas num borbulhar
de narguilés em pleno coração
noturno de Damasco.
Até hoje podemos seguir o
fio tênue que durante séculos
compôs um emaranhado de
histórias que leva ao "Livro das
Mil e Uma Noites" [ed. Globo]
e à sede de horizontes de Simbad. Um privilégio do mundo
árabe, a coexistência de dois
grandes registros literários,
oral e escrito.
Devemos a Alberto Mussa
esse fio transoceânico. E aqui
não seria o caso senão de agradecer-lhe a iniciativa da primeira tradução dos "Poemas
Suspensos" no Brasil, boa tradução que melhor se realiza
quanto mais avança do plano
local ao plano global do próprio
texto. Já tive ocasião de dizer
de "O Enigma de Qaf" [Record]
que o romance de Mussa era
propriamente a tradução e a
recriação daqueles poemas. O
que não é pouco.
Diz uma lenda não afiançável
que os poemas dessa antologia
eram afixados na Pedra Negra,
a Kaaba, em Meca. Teriam sido
recolhidos por volta do século
7º por Hammed Ar-Rawiya,
Hammed, o rapsodo.
Filhos do deserto
E quem seriam os sete poetas
do Muallaqat?
Eu não teria dificuldade em
responder, como o fez Vico
diante de Homero, que são os
filhos do deserto da Arábia, que
narram, cantando, a própria
história.
Com uma métrica exuberante e uma estrutura recorrente,
dividida em três partes, mais
uma roda de ouvintes e um cenário beduíno: o poeta, que volta ao lugar de sua antiga aldeia,
mas nada encontra, pois todos
partiram em busca de outras e
melhores pastagens, empreende uma viagem identitária, em
que canta os perigos vários e os
desafios que comporta uma
travessia pelo deserto.
E, finalmente, a parte em que
se louva o homem ideal, cantando a sua tribo.
É árdua a tarefa de delimitar
o início e o fim de cada um dos
"Poemas Suspensos". Os prólogos de alguns são fragmentos
de outros que não conhecemos
e que se perderam totalmente.
Fixar para não perder... E, paradoxalmente, quando se toma a
iniciativa de fixar é porque já se
perdeu. Um problema tão fascinante quanto a fixação dos poemas "homéricos" na Grécia
-os que formaram a "Ilíada" e
a "Odisséia"- e o legado da
poesia popular.
Uma analogia do mundo árabe pode ser estabelecida entre
esses aedos beduínos, dispersos em suas tribos, e o que seria
pouco mais tarde o Alcorão.
Maomé estava inscrito num
sistema pré-islâmico de imaginação poética, atingindo a diversidade rítmica que encontramos já figurada nos sete
poetas suspensos.
Desde a famosa "Introdução" (Muqaddimah), de Ibn
Khaldum, há uma tendência
parcial de reconhecer o diálogo
da poesia pré-islâmica com o
período seguinte -erguendo,
muito embora, o Alcorão às
máximas alturas, como livro
dos livros, tão singular quanto
incomparável.
Fazer essa ponte é também
um ato político, em tempos
sangrentos e separatistas, para
lembrar o livro póstumo de Samir Kassir, "A Infelicidade
Árabe". Não devemos perder
de vista a biodiversidade e as
formas de diálogo anteriores ao
islã e seus numerosos frutos.
Olhar para o futuro
Mas isso significa também
um olhar para os tempos modernos e para o futuro. Os "Poemas Suspensos" atravessam a
cultura árabe contemporânea.
E bastam dois exemplos absolutos: a grande poesia de um
Adonis, da obra "Cantos de
Mihyar, o Damasceno", e
-aquela me toca mais de perto- a obra de um dos maiores
poetas contemporâneos, como
Mahmud Daruish, em seu livro
absoluto, "Mural". O poeta absoluto -como Maiakóvski-
lendo seus poemas como um
novo e forte contador de histórias para um público emocionado e suspenso.
MARCO LUCCHESI é poeta e escritor, autor de
"Saudades do Paraíso" (Lacerda).
OS POEMAS SUSPENSOS
Tradução: Alberto Mussa
Editora: Record
Quanto: R$ 28,90 (210 págs.)
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