São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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LETRAS LIVRES

A PESQUISADORA GÊNESE ANDRADE FALA SOBRE O LIVRO "FEIRA DAS SEXTAS", EM QUE REÚNE 24 CRÔNICAS DO ESCRITOR PAULISTA, A MAIOR PARTE INÉDITA EM LIVRO, PUBLICADAS ENTRE 1943 E 1945

Caio Liudvik
free-lance para a Folha

Oswald de Andrade (1890-1954) não foi só figura de proa do modernismo brasileiro e um dos nossos maiores escritores e dramaturgos, autor de obras-primas como "Memórias Sentimentais de João Miramar" ou "O Rei da Vela". Ele desenvolveu também longa e fecunda militância jornalística, colaborando com diversos veículos, na posição de cronista engajado nas principais polêmicas políticas, estéticas e culturais de sua época .
E é essa última faceta do autor que poderá ser mais bem conhecida agora, com o lançamento do livro "Feira das Sextas" [ed. Globo, 200 págs., R$ 32]. Trata-se, como explica na entrevista a seguir Gênese Andrade (organizadora do livro, e que não tem parentesco com o autor, apesar do sobrenome), de uma coletânea de 24 crônicas oswaldianas, a maior parte inédita em livro. Elas foram escritas entre maio de 1943 e dezembro de 1945, período final da Segunda Guerra Mundial e da ditadura de Getúlio Vargas. Gênese Andrade é doutora em literatura hispano-americana pela Universidade de São Paulo. Ela é também responsável pela pesquisa e estabelecimento de texto da nova edição das obras completas de Oswald, que está saindo pela editora Globo.
 

Que critérios presidiram à seleção dos 24 textos aqui reunidos? Que parte do material é efetivamente inédita em livro?
Dos 24 textos, 21 são inéditos em livro. Apenas três "Carta a um Professor de Literatura", "Por uma Frente Espiritual" e "Salada Russa" foram publicados em livro, postumamente, nos anos 1970, no volume "Telefonema", da editora Civilização Brasileira, organizado por Vera Chalmers. "Atualidade d'"Os Sertões'" foi publicado na revista "Sala Preta", nš 2, em 2002.
Trata-se mais de uma reunião do que de uma seleção. Reunimos os artigos de Oswald escritos paralelamente àqueles que integram "Ponta de Lança". Na abertura desse livro de 1945, Oswald informa que aí está sua atividade jornalística, durante o ano de 1943, constante da colaboração em "O Estado de S. Paulo", "Folha da Manhã" e "Diário de S. Paulo" e três conferências. Ao encontrar outros artigos, inteiramo-nos de que Oswald publicou somente uma parte dessa colaboração nos jornais, menos de 50%. Então, temos aqui uma espécie de "Ponta de Lança 2". Juntamos, aos artigos de 1943, dois textos de 1944 e um de 1945, os únicos textos de Oswald publicados em jornais nesse período, fora a coluna "Telefonema", que já é uma outra história.

De que tratam as crônicas?
Os artigos giram em torno de quatro grandes questões: a Segunda Guerra, a temática nacional, "atentados contra a arte" e polêmicas literárias.

Como a sra. avalia o momento estético, político e ideológico pessoal de Oswald, quando da feitura desses textos?
No momento em que escreve estes artigos, Oswald caracteriza-se como um autor absolutamente engajado. Ainda está filiado ao Partido Comunista, com o qual rompe em 1945. É o momento em que publica os dois volumes do romance proletário "Marco Zero". Ele condena duramente os regimes totalitários, revela-se absolutamente antinazista e antifascista e acompanha passo a passo o desenrolar da guerra. Quanto ao Brasil, Oswald denuncia as injustiças sociais e reflete sobre uma série de fatos. Ao mesmo tempo, aponta para a desigualdade entre os países e a exploração de uns por outros, que ele antevia como tendente a aumentar e, por isso, clama pela consciência e participação.

Que relevância o jornalismo teve em sua trajetória?
Oswald atuou no jornalismo como diretor e colaborador de publicações diversas. Ainda muito jovem, fundou "O Pirralho" e, de 1909 a 1954, assinou colunas e colaborou esporadicamente em inúmeros jornais do Rio e de São Paulo, além de revistas. Para se ter uma idéia da produção avassaladora do período, de maio de 1943 a dezembro de 1945, Oswald publicou mais de cem artigos, e isso porque foi censurado pelo DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda] de junho de 1944 a abril de 1945. Alguns textos, é certo, são bastante curtos, mas é inegável a pluralidade de temas, a lucidez com que ele acompanha os fatos mais diversos e apresenta idéias muito originais.

Como essa atuação se entrelaça a seu ofício literário?
Destaco que a colaboração mencionada acima não inclui os trechos de obras literárias que também circularam antes de ganhar o formato livro.
Paralelamente a esses textos de 1943 a 1945, especificamente, Oswald publicou "Marco Zero" 1 e 2, as "Poesias Reunidas O. Andrade", e elaborou a tese para o concurso de literatura brasileira na USP, realizado em 1945, no qual empatou com Antonio Candido e Sousa Lima, tendo sido escolhido este último.
É possível ainda acompanhar, pelos artigos, suas leituras, como Nietzsche, o livro de Roger Caillois, "Sociología de la Novela", os romances de Tito Batini, que ele critica duramente, e de outros contemporâneos. As questões que o preocupavam aparecem sistematizadas de formas diversas na produção jornalística, na literária e nas conferências.
No momento em que ele atua como um cronista que quer que o leitor se conscientize dos fatos e seja atuante, ele é também um romancista engajado, um poeta engajado.

Trazendo o foco para o universo literário contemporâneo, qual o legado de Oswald, e que escritores você diria que são hoje mais influenciados por ele?
Oswald dedicou-se à literatura em suas várias modalidades: poesia, romance, memórias, teatro, ensaio, manifestos. Além da qualidade de sua produção, é inegável a revolução que provocou, na poesia, com "Pau Brasil", no romance, com "Memórias Sentimentais de João Miramar" e "Serafim Ponte Grande", no teatro, com "O Rei da Vela", e a lucidez e inovação no pensamento que constituem a "Antropofagia" e a "A Marcha das Utopias". O poema-minuto, o "ready-made" abrem caminho para a poesia concreta, Glauco Mattoso, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, que dialogam intensamente com o antropófago.
"O Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade" incita Jorge de Lima a publicar "O Mundo do Menino Impossível" no mesmo ano de seu lançamento, 1927, com a mesma concepção.
Os romances mencionados, com sua estética cinematográfica, renovam o livro de viagem e constituem o livro como viagem, em prosa poética, que inclui também o registro da oralidade, a riqueza da pluralidade lingüística, inserindo-se na linhagem sem fronteiras dos anos 1920, que tem seu expoente em "Ulisses", de Joyce. A encenação de "O Rei da Vela" por José Celso, em 1967, é um marco no teatro nacional.
Quanto aos artigos ora reunidos, embora alguns se refiram a fatos pontuais do passado, são atualíssimos. O domínio que Oswald tem da língua portuguesa (a precisão das palavras, o uso de vocábulos raros), sua argúcia na apresentação dos temas, o estilo ferino e o humor fazem com que sejam muito instigantes. São crônicas da melhor qualidade. Não é pouco.


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