São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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RECÉM-ABERTO EM NOVA YORK, O "MUSEU DO SEXO" RECUPERA A HISTÓRIA DOS PRIMEIROS CLUBES DE FETICHISMO ATÉ OS MOVIMENTOS GAYS NA METRÓPOLE E A INFLUÊNCIA QUE EXERCERAM NA SUBCULTURA NORTE-AMERICANA


David Usborne
do "Independent"

Grady Turner ocupa um escritório sem janelas na Quinta Avenida e está pensando sobre sua nova vocação. Para resumir, o sexo. Sexo de toda espécie -gay, hetero, fetichista. Ele pensa em pouca coisa mais nos últimos cinco anos. Suas estantes estão atulhadas de livros de sacanagem e vídeos com fotografias explícitas em suas capas. Mas nem todo o seu trabalho foi realizado à luz trêmula de uma lâmpada amarelada. Turner, bem casado e pai, também se arrisca fora do escritório. Mais recentemente, esteve investigando a subcultura sexual em sua cidade natal, Nova York, de que resultaram a exposição e o livro "NYC Sex - How New York Transformed Sex in America" [NYC Sex - Como Nova York Transformou o Sexo nos Estados Unidos, Scala Books, 224 págs., US$ 25". Turner tem um título respeitável -curador-executivo- e é o encarregado de exposições no Museum of Sex (www.museumofsex.com), que ocupa seu improvável lugar na cidade de Nova York em companhia de instituições veneradas como o Guggenheim e o Frick. O museu chega até mesmo a compartilhar o endereço, a Quinta Avenida (mesmo que o revestimento externo em pastilhas verdes do edifício o torne um tantinho parecido com um lavatório público), e espera conquistar respeito semelhante. Ou ao menos é isso que pretendem Turner e o fundador do museu, Dan Gluck.

Audiência popular
Os visitantes são encorajados a ir ao MoSex -um apelido que já começa a se popularizar como referência jocosa ao MoMa (o Museu de Arte Moderna)- não à espera de excitação (ainda que, tendo em vista parte dos planos, isso possa acontecer), mas por curiosidade quanto ao assunto em toda a sua variada glória, quer estejamos falando de liberação dos gays e lésbicas, prostituição, o submundo do fetichismo, direito ao aborto, moralismo, leis de obscenidade ou o papel da pornografia. Isso nos leva imediatamente ao conceito por trás do MoSex. Turner e Gluck têm uma teoria auto-explicativa, ou seja, o fato de que todos se interessam por sexo. Quando se trata de museus ou galerias, cada pessoa tem o tema que a atrai, não importa se o Antigo Egito ou os impressionistas. Mas o sexo deixa poucos de nós intocados. "Chegou a hora de fazermos algo como esse museu", argumenta Turner. "O assunto já vem sendo estudado academicamente há algum tempo. A sociedade já mudou tanto desde a metade do século 20 e o interesse público em sexo é tão fenomenal que faz sentido que ofereçamos uma plataforma inteligente para tudo isso. Um lugar onde todo esse conhecimento acadêmico possa ser apresentado a uma audiência popular."

Insulto
Não que a estrada para a abertura do museu tenha sido fácil. No começo, Gluck tentou conseguir que o Estado de Nova York designasse a instituição como museu sem fins lucrativos, o que significa menos impostos e acesso a fundos públicos. Mas seus pedidos foram recusados de primeira. A resposta que recebeu foi que o MoSex que ele propunha "é um insulto à palavra "museu'". Gluck não se deixou abalar e recrutou alguns investidores, transformando o museu em empreendimento privado.
O projeto dos espaços interiores foi cortesia de Casson Mann, consultor britânico especializado em exibições e instalações contemporâneas. Gluck tem idéias elevadas para o projeto. "Seremos o Smithsonian do sexo", diz ele sem sombra de ironia. "Queremos a alta e baixa culturas, planejamos informar o público sem entediá-lo até as lágrimas." Ele acrescenta que "esse será o primeiro museu moderno devotado ao exame do sexo em todo o mundo, o primeiro museu de sexo realmente sério no mundo".
Talvez a indústria pornô se tenha transferido para a Costa Oeste décadas atrás, mas Nova York foi sempre o lugar mais associado ao pecado carnal nos EUA. Até que Rudolph Giuliani [prefeito de Nova York de 1994 a 2001 e responsável pela implantação do programa conhecido como "tolerância zero"] convidasse a Disney para limpá-la, a Times Square, com suas dezenas de cinemas de sexo, prostitutas e boates, foi sempre um ímã para os discípulos dos divertimentos carnais. A rebelião de Stonewall aconteceu aqui, em 1969, marcando o início da militância gay. A cidade deu aos EUA seus primeiros jornais populares, seus primeiros escândalos sexuais ainda na metade do século 19 -e serviu de cenário às primeiras marchas feministas lideradas por Gloria Steinem. E o [grupo de música pop] Village People começou em Nova York.

O destino final
É natural, portanto, que a cidade, como caldeirão das mudanças sexuais nos EUA, seja o tema da primeira exposição, que ocupará os três andares do museu em seus dez primeiros meses de existência. Ela conduzirá os visitantes em um giro pelas principais fases no desenvolvimento sexual da cidade, da explosão do setor de bordéis (a sede do museu foi uma casa de tolerância) passando pela revolução sexual dos loucos anos 60 e pela era de relativa contenção que se seguiu ao surgimento da Aids. "Nossa tese é que Nova York teve grande influência na maneira pela qual os EUA passaram a pensar sobre sexo, desde a década de 1830", diz Turner, cujo último cargo, muito mais sóbrio, era o de diretor de exposição da solene Sociedade Histórica de Nova York. "Se você fosse gay, lésbica ou parte de uma subcultura sexual, Nova York seria seu destino." Com materiais obtidos de uma série de fontes, entre as quais um antigo arquivista da Biblioteca do Congresso, Turner criou exposições que contam histórias, por exemplo a de Mae West, garota do glamour que chocou a Broadway em 1926 (antes de fazer as malas e se mudar para Hollywood) com uma persona suculenta, derivada do estilo dos gays de Greenwich Village, das dançarinas do Harlem e das prostitutas do Bowery. E a de Margaret Sanger, aprisionada em 1917 por abrir uma clínica que ousava fornecer informação sobre o controle da natalidade antes que isso se tornasse legal nos EUA. Ele o faz com fotografias, cartas, jornais e filmes. Seus favoritos são transcrições de julgamentos antigos de um grupo de homens detidos por atos homossexuais consensuais em uma casa de banho clandestina no Harlem, no começo do século passado. As descrições jurídicas das atividades desses homens hoje nos causam risadas. Mas cada um deles foi sentenciado a 20 anos de prisão. Perto do final da visita, você encontra uma tela de computador com um mapa de Nova York recoberto de pequenos pontos. Os pontos marcam os locais da cidade em que os moradores desfrutaram de atos sexuais incomumente ousados, homo ou heterossexuais, entre quatro paredes ou a céu aberto. Clicando neles, o visitante lê uma descrição de cada um desses pontos de conjunção carnal momentânea. E há sons também, em geral ruídos de rua e gemidos. É diante desses terminais que é mais provável que os visitantes enrubesçam de uma maneira que não os afetaria no Frick ou no Museu de História Natural. Essa peça bastaria para explicar por que menores de 18 anos não são admitidos no museu. Se o visitante dedicar mais tempo às telas, irá localizar a história dos dois sujeitos que resolveram transar no topo de um caminhão de lixo no distrito das fábricas de processamento de carne, pouco antes que outro homem salte para o caminhão e os ataque com um facão. Ou a do casal heterossexual que regularmente fazia sexo apoiado no mastro da bandeira no telhado da Universidade de Nova York. A imprensa não vem sendo gentil com o MoSex. Alguns piadistas dizem que a cidade talvez precise do museu porque muitas de suas alegrias mais obscuras foram fechadas por Giuliani. Mas Turner ri dessa idéia. O ex-prefeito pode ter expulso o sexo da Times Square, mas os estabelecimentos que saíram de lá reabriram as portas rapidamente em outros locais.

Novo hedonismo
Existem alguns indícios que sugerem, enquanto isso, que, embora possa ter havido um período de contenção causado pela ansiedade quanto à Aids e pelas medidas repressivas de Giuliani, ele parece estar chegando ao fim. Depois do 11 de setembro, o hedonismo sexual conquistou a cidade. Os espetáculos de strip-tease masculino nas boates gay se tornaram mais ousados, enquanto os eventos e os concursos de striptease organizados pelo Cake [clube para mulheres" demonstram que as jovens mulheres heterossexuais podem ser tão agressivas quanto os homens, sexualmente.
A saúde pública, em meio a isso, alerta quanto a um grande surto de sífilis na cidade. Procurando na internet, é fácil descobrir as festas que estão rolando para os heteros e os homos. Procure por nomes como "Caligula's Ball" e "Gomorrah", eventos ocasionais em apartamentos privados frequentados em sua maioria por casais hetero que querem levitar sua libido com alguma ajuda externa. "Não há como alguém simplesmente desligar a vida sexual, em Nova York", diz Turner.
Os melhores museus de Nova York são aqueles que dão contexto à criação da cidade, que explicam sua vibração única e se conectam à sua corrente sanguínea. O Museu da Imigração, na ilha de Ellis, o faz com sua história visual da maré humana que atingiu os EUA no final do século 19, e o mesmo vale para o pequeno Museu da Habitação, no Lower East Side, que recria as condições de vida quase sórdidas que os imigrantes teriam de suportar mais tarde. O MoSex tem a chance de fazer algo semelhante -demonstrar de que maneira o sexo foi sempre a lava fluindo por sob a crosta da cidade, a força primal que dá a ela seu calor e paixão.


Tradução de Paulo Migliacci.


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