São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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"Já conheço os passos dessa estrada/ Sei que não vai dar em nada/ Seus segredos sei de cor"Retrato em Branco e Preto "Águas de Março" e o contorno do silêncio




Ponto alto da carreira do músico, composição é construída sobre jogo de contrastes que encenam a morte e a renovação


por Augusto Massi

Á guas de Março" apresenta um desenvolvimento compacto, mergulhando o ouvinte num fluxo contínuo de palavras que deslizam sobre uma base rítmica bastante regular e simétrica. A extrema contenção dos versos contrasta com a extensão da letra, assim como a simplicidade melódica, construída basicamente com duas notas, destoa do fraseado sincopado das águas. É fácil concordar com Chico Buarque: "Às vezes, acho que "Águas de Março" é o samba mais bonito do mundo". O difícil é comentar com propriedade a origem de seu encanto e o seu permanente fascínio.

Um terreno enlameado Em diferentes depoimentos, o compositor narrou em que situação a canção foi concebida. Ele estava no sítio, Estado do Rio, numa casinha provisória, na beira do caminho, apelidada de "barraco 2", enquanto construía uma maior, no alto do morro. Havia comprado madeiras de lei, vigas imensas descarregadas por caminhões, deitadas ao relento, ao lado de pedras e tijolos, num terreno enlameado. Exaurido de tanto trabalhar em "Matita Perê", quando sua mulher foi se deitar, começou a cantarolar: "É pau, é pedra, é o fim do caminho". Da cama, ela comentou que o tema era lindo. Então, ele pediu lápis e papel. Ela arranjou um papel de embrulhar pão no qual o compositor rabiscou a letra de "Águas de Março". É interessante notar a riqueza de detalhes que recompõe a cena. A matéria biográfica e circunstancial é remodelada por meio dos resíduos sedimentados na memória. Na construção da letra convivem dois movimentos. O primeiro é da ordem do geral, sugere uma visão de conjunto, pressupõe um caráter unificador, é a narrativa da renovação de um ciclo: do fim do caminho às promessas de vida. O segundo pertence à ordem do particular, sugere um excesso de fragmentação, um acúmulo de elementos heterogêneos, uma técnica análoga ao pontilhismo impressionista. A tensão entre os dois movimentos é o que fortalece a imagem unificadora das águas de março.

Enumeração caótica A primeira impressão é de que se está diante do que Leo Spitzer definiu tão bem em "A Enumeração Caótica na Poesia Moderna". Seguindo de perto as idéias contidas no famoso ensaio, é possível ver como o estilo enumerativo que remonta ao versículo e a sintaxe bíblica de Whitman, além de mesclar coisas concretas e abstratas, procura equilibrar a sensação de estilhaçamento com a fixação imagética de alguns versos. Tudo isso reforçado pela arquitetura rítmica da música, que procura harmonizar elementos múltiplos e díspares. No início era o verbo: "É". O recurso anafórico reafirma a existência de um mundo substantivo -"pau/ pedra/ caminho"- ao mesmo tempo em que acentua o isolamento de cada elemento -"um pouco sozinho". Desde a primeira estrofe, uma série de tensões estrutura a letra. A sensação inicial é de sucessivas explosões sonoras que, num crescendo -é pau, é pedra-, logo encontram um obstáculo, no afunilamento semântico de "é o fim do caminho". Em várias outras passagens o compositor demonstra um profundo conhecimento dos recursos estilísticos da língua. A fatura sofisticadíssima potencializa os contrastes. A cada estrofe, a cada verso busca-se um equilíbrio entre extremos: uma ave no céu, uma ave no chão (espaço); um espinho na mão; um corte no pé (corpo); é um estrepe, é um prego (natureza/ indústria); é um sapo, é uma rã (masculino/ feminino). No centro dessas relações de equivalências e oposições estão em jogo pulsões de morte e promessas de vida: "É o mistério profundo/ é o queira ou não queira".

Sob o signo do isolamento Vamos retornar um pouco. A complexa construção da letra inicialmente está sob o signo do isolamento. Enredados no exílio sonoro do "É", alguns motivos nos remetem à cadeia de objetos fraturados e residuais: resto de toco, caco de vidro, estilhaço na estrada. Mas, sutilmente as coisas voltam a se infiltrar na corrente coletiva do "São": o vento ventando, a chuva chovendo, o pingo pingando. As águas de março esboçam uma litania de vozes que contornam o silêncio, tudo ruma para o ritmo de uma conversa ribeira, lembrando duas outras canções que Jobim compôs quase na mesma época, "Chovendo na Roseira" (1970) e "Correnteza" (1970), nas quais, mais uma vez, o ritmo da música se casa com o movimento das águas, reencenando antigos mitos de renovação (1).



"Eu nunca sonhei com você/ Nunca fui ao cinema/ Não gosto de samba/ Não vou a Ipanema/ Não gosto de chuva/ Nem gosto de sol" Lígia

Ainda assim não se penetra no núcleo problemático da canção. É em meio às imagens do mundo natural que se oculta o eu lírico: "No rosto o desgosto". A passagem é decisiva para compreender como a natureza invade a subjetividade do sujeito, que, após arrolar imagens simbolicamente elevadas -"festa da cumeeira"- , descreve um movimento de queda, descida melancólica até "o fundo do poço". Como não mencionar que o sítio do compositor foi batizado curiosamente de Poço Fundo? A inversão descortina um ângulo novo, confere uma perspectiva inédita à letra.

Arquétipo infernal da solidão A partir desse arquétipo infernal da solidão -águas paradas do poço- , da aguda sensação de morte em vida, o sujeito consegue reatar com os ritmos do dia e do trabalho: "É a luz da manhã, é o tijolo chegando". Para usar uma imagem cara a Manuel Bandeira, somente depois de submergir "entre os destroços do presente" é que o sujeito supera os aspectos mais destrutivos e os dota de um sentido novo. As imagens anteriormente isoladas adquirem nova moldura temporal e tudo começa a se encaixar, índice poderoso dos movimentos de construção, afirmação do esforço humano: "É o projeto da casa".
Nesse momento se dá a passagem do "É" para o "São". A conversa ribeira rompe os diques e deságua no refrão, repetido quatro vezes: "São as águas de março/ fechando o verão/ é a promessa de vida/ no teu coração". No último verso, mestre Jobim ainda reserva um mistério. Do mesmo jeito que o "eu" lírico se oculta num resto de rosto, o "teu" contempla a presença afetiva e íntima do "outro". Seria aquele corpo deitado na cama? Seria o ouvinte anônimo e secreto da canção? Ter-se-ia que remexer, cavar mais fundo, no barro da canção. Por hora, melhor não turvar águas passadas.
"Águas de Março" (1972) está para Antonio Carlos Jobim como "Construção" (1971) para Chico Buarque de Holanda. Ambos mimetizam respectivamente os ritmos do campo e da cidade, demonstram um alto grau de maturidade no trato com as palavras, atingem um patamar raramente alcançado por seus contemporâneos. Antonio Carlos Jobim tinha 45 anos de idade quando compôs "Águas de Março". Tinha um significado especial para ele, abria um novo ciclo criativo. Promessa de felicidade.



Nota
1. Na época do lançamento do disco, Tom Jobim transcreveu um trecho de "O Caçador de Esmeraldas", de Olavo Bilac: "Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada/ Do outono, quando a terra, em sede requeimada,/ Bebera longamente as águas da estação...".



Augusto Massi é poeta, autor de Negativo (Companhia das Letras).
Este texto é dedicado a Therezinha Caldeira Moreira.


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