São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

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Ponto de fuga

A pausa que refresca


Numa de suas vindas a São Paulo, Baudrillard pediu para rever "uma bunda" que o encantara em visita anterior; nenhum monumento oficial marcara o filósofo, mas a publicidade


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O slogan de São Paulo nos anos 1950 era "a cidade que mais cresce no mundo". Para as comemorações de seu quarto centenário, Oscar Niemeyer criou uma voluta ascendente que deveria ser um monumento e terminou não sendo.
Afirmou-se porém como um símbolo em sentido pleno: os paulistanos reconheciam-se nele pela beleza nítida das formas seguras, que pareciam conter um orgulho firme de progresso. Dizem que, para essa invenção tão feliz, Niemeyer teria se inspirado em um gráfico que atestava a expansão da cidade.
De fato, naqueles anos prósperos, São Paulo crescia muito e rapidamente. Rapidamente demais, porém. Brotaram predinhos neutros e banais, em desordem, sem planejamentos dignos desse nome, à mercê certamente dos interesses imobiliários os mais ávidos. Via de regra, o material empregado era de péssima qualidade.
Não é preciso exame microscópico nem estudos estatísticos para constatá-lo: basta levantar os olhos para os grandes paredões cegos que formam as laterais dos prédios. Difícil achar um que não esteja maculado por manchas de vazamentos, recoberto por pústulas de salitre. Esses construtores ou empreiteiros chegaram ao sentido mais substancial do lema proclamado pela arquitetura moderna, "less is more". More money, of course.

Fluxo

Tudo é feio e ordinário na arquitetura média, de consumo, em São Paulo. A paisagem paulistana evoca podridão, monturo. Nem por isso a cidade é menos fascinante. Não graças a qualquer beleza descortinada. Pode-se amá-la, sem demagogia, por sua população, pela evidente intensidade humana, pela energia concentrada que a movimenta. A beleza de São Paulo está no seu estresse.

Pop Art

Mas ninguém agüenta estresse o tempo todo. Com adrenalina baixa, São Paulo ficaria só com a visão acinzentada dos resíduos decompostos, não fossem os outdoors, os cartazes, as imagens que a publicidade espalha. Eles concorrem com aqueles paredões encardidos e manchados, fazendo vibrar cores, rostos, corpos. Trazem humor, imaginário, erotismo.
[O curador] Nelson Brissac conta que, numa de suas vindas a São Paulo, Jean Baudrillard pediu para rever "uma bunda" que o encantara em visita anterior. Nenhum monumento oficial marcara o filósofo, mas um enorme painel que ficava no largo do Arouche, uma publicidade sabe-se lá para que, pois as bundas vendem qualquer coisa.
Encalacrado nos engarrafamentos ou desviando o olhar por uma janela mais elevada ou ainda andando pelas ruas, depara-se com a fantasia dessas imagens. Curiosamente, elas ficam na memória mais do que os próprios produtos anunciados. Isso, porém, é problema de marqueteiros e publicitários.
Importa o fato de que fazem sonhar.
Agora há uma lei, decreto ou qualquer coisa assim, dos que mandam e querem solucionar problemas com uma penada. Parece que ela vai suprimir essas visões. Vamos ser obrigados a nos contentar com os paredões sujos e, como embelezamento, com estátuas que o poder público oferece: o duque de Caxias, o Simon Bolívar, o Pedro Álvares Cabral...
Haja estômago.

Modos
São Paulo é São Paulo: nem Londres, nem Paris, nem Roma, nem Nova York podem lhe servir de modelo. Só vai melhorar com atenção cuidadosa em intervenções delicadas, ponto por ponto. Respeitando a desordem que faz dela o que é. Recuperando os traços culturais que são os seus, sem artifícios autoritários, sem soluções miraculosas. Estamos bem longe da conta.


jorgecoli@uol.com.br


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