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+ Arte
Altos e baixos da Bienal
A crítica inglesa Claire Bishop, especialista em arte social, avalia os pontos positivos e negativos da principal mostra do Brasil, que termina no próximo domingo
Juan Guerra/Divulgação
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Instalação do grupo Long March Project na Bienal, feita em parceria com moradores de vilarejo chinês; à dir., a partir do alto, trabalhos de Ivan Cardoso e Paula Trope apresentados na exposição
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A 27ª Bienal Internacional de São Paulo,
que se encerra no
próximo domingo,
tem gerado muita
discussão em torno da escolha
da arte social e das práticas artísticas colaborativas como eixo central na curadoria, cujo título é emprestado dos seminários de Roland Barthes "Como
Viver Junto" (Martins Fontes).
Em entrevista à Folha, a crítica de arte e professora do departamento de história da arte
da Universidade Warwick (Reino Unido) Claire Bishop -que,
em artigos recentes em revistas como "Artforum" e "October", tem se dedicado à análise
daquilo que denomina "a virada social na arte"-, comenta a
atual edição da mostra.
Bishop esteve no Brasil no
início de novembro a convite
do Fórum Permanente de Museus, em parceria com os departamentos de artes plásticas
e de biblioteconomia da USP,
para participar de mesa-redonda sobre "o social na arte".
FOLHA - A sra. identifica uma postura moralista por parte de críticos e
curadores, quando avaliam o mérito
de uma obra apenas pelo aspecto
social, sem levar em conta critérios
estéticos. Essa postura estaria presente na 27ª Bienal, uma vez que várias críticas à mostra reivindicam alguma forma de transcendência ou
apontam a falta de obras que propiciem uma experiência estética?
CLAIRE BISHOP - Em primeiro lugar, devo esclarecer minha distância desse par binário -arte
engajada social ou politicamente x "transcendência".
O paradigma romântico de
arte "transcendente" foi desafiado e desmantelado por artistas ao longo de todo o século
20, precisamente porque ele
apresenta a arte como algo universal que se eleva acima da
realidade social e política. Não
defendo uma arte da "transcendência".
Em relação à Bienal, apesar
de haver na mostra deste ano
uma certa quantidade de obras
engajadas socialmente, a maioria delas tem também uma lógica estética.
A maioria dos trabalhos consiste de esculturas, vídeos, filmes, fotografias ou desenhos,
muito do que é visualmente sedutor: a obra de Raimond Chaves com capas de disco, por
exemplo, as vestimentas de
plástico de Laura Lima ou o
trabalho de León Ferrari.
A vasta maioria das obras está localizada no interior do pavilhão da Bienal e tem sua própria sustentação dentro do espaço expositivo. Isso contrasta
com o tipo de trabalho que venho criticando na Europa: trabalhos que -em nome do engajamento político direto-
não enfrentam a questão de
sua própria representação para
outros públicos. Esses projetos
são com freqüência dependentes de texto, diagramas e fotografias para transpor ao espaço
expositivo atividades que ocorreram em outro lugar.
FOLHA - A edição atual da mostra
não é, portanto, um exemplo emblemático daquilo que a sra. denomina "virada social na arte"?
BISHOP - Minha sensação -a
partir de conversas que tive
com pessoas em São Paulo e de
minha visita à Bienal de 2002-
é que o Brasil teve duas exposições conservadoras sob a curadoria do alemão Alfons Hug.
Com isso, quero dizer: mostras com uma preponderância
de pinturas, fotografias de
grandes dimensões e esculturas objetuais, tudo com forte
valor de mercado. Isso fez com
que o Brasil perdesse o passo
em relação aos desenvolvimentos na arte contemporânea.
Alguns desses desenvolvimentos tomam a forma de projetos engajados socialmente,
transdisciplinares, em geral
envolvendo colaborações com
não-artistas ou outros especialistas, como arquitetos, geógrafos, ativistas. Na Bienal deste
ano, Marjetica Potrc seria um
bom exemplo dessa tendência.
Eu não me oponho a isso em
princípio, apenas quando a
obra fracassa em pensar sua
subseqüente recepção.
Há um exemplo evidente
desse tipo de trabalho na Bienal: o artista grego Vangelis
Vlahos, que apresenta sua pesquisa acerca do edifício Gropius, em Atenas, em formato de
repreensível austeridade e não
resolvido. Por que essa pesquisa não é um livro?
Outro exemplo seria o artista
esloveno Tadej Pogacar, cuja
apresentação corporativa de
um projeto para aumentar a
consciência sobre trabalhadores do sexo é -à parte sua estratégia óbvia e não inspiradora de camisetas em displays-,
mostrada com toda a imaginação de uma companhia de relações públicas medíocre.
FOLHA - Rafael Campos Rocha, em
artigo sobre a Bienal, apelidou-a de
"bienong", em referência às organizações não-governamentais. Como
estabelecer uma distinção crítica entre arte e assistencialismo?
BISHOP - A distinção para mim
está na medida em que esses
projetos também refletem sobre sua apresentação, recepção
e circulação dentro do domínio
da arte contemporânea.
As pessoas podem se sentir
desconfortáveis com alguns
dos projetos exibidos porque
eles operam com um pé no domínio da arte contemporânea e
outro no âmbito do chamado
"mundo real". Temos de aprender a viver com esse desconforto, que é algo comparável ao final dos anos 1960, quando artistas começaram a desmaterializar o objeto de arte e trabalhar conceitualmente.
Mudanças semelhantes estão acontecendo hoje: quando
vemos algo em uma galeria, não
estamos necessariamente vendo todo o trabalho. Estamos
vendo parte de um projeto, um
"non-site" que existe em relação dialética com o "site", como
propôs Robert Smithson.
Estou interessada em encontrar uma maneira de analisar
essa arte que não caia na armadilha de apenas considerar as
justificações morais ou políticas de sua existência.
As justificações são importantes, mas, se terminarmos
julgando obras somente nestes
termos, ficaremos apenas com
uma arte didática.
Minha impressão da 27ª Bienal é a de que não se trata de
uma exposição moralista. E isso porque a maioria dos projetos opera de forma bem-sucedida no interior do espaço expositivo e possui uma lógica estética que é íntegra em relação
à especificidade do projeto.
Por exemplo, Paula Trope
usa uma câmera "pinhole" [câmeras de orifício feitas a partir
de latas recicladas] em seu trabalho colaborativo com garotos
de rua no Rio, e os efeitos formais dessa fotografia são um
fator importante na recepção
das imagens.
A câmera "pinhole" confere
um efeito sobrenatural, distorcido, que é apropriado à representação de seu mundo de fantasia do Morrinho; ela também
frustra nosso desejo por uma
visão clara e "objetiva" desse
mundo (com todas as conotações de poder que esse olhar
poderia trazer) e, assim, espelha nosso desejo voyeurístico
de ter acesso a esses conflituosos e, quem sabe, perigosos
adolescentes.
Tendo dito isso, há projetos
na Bienal que são muito menos
bem-sucedidos, apesar de terem uma forte presença escultural. A maior parte do piso térreo é espetáculo vazio: a instalação com guarda-chuvas de
Marepe e o trabalho de Nikos
Charalambidis assim como o
mercado de Meschac Gaba em
um piso superior são fracos
conceitualmente.
Há muita fotografia documental que funciona como espaço reservado para problemas
políticos em países específicos,
em vez de serem escolhidas como fotografias narrativa ou visualmente complexas. Muitos
dos trabalhos comissionados
são decepcionantes: Vladimir
Arkhipov e Antoni Miralda, em
particular, parecem resultado
de uma fórmula.
FOLHA - No caso do coletivo Long
March Project, a exibição dos recortes de papel ao lado de fichas biográficas de seus respectivos autores
é conceitualmente consistente ou
"politicamente correta"?
BISHOP - O argumento que utilizei antes sobre ver apenas metade de um trabalho na galeria é
particularmente verdadeiro no
caso do Long March. Este é um
projeto de cultura visual (arquivo das influências na tradição de recorte de papel na China rural), um projeto político
(censo composto de estatísticas sobre os moradores da região) e um projeto social (levar
uma infra-estrutura de lazer
básico a povoações rurais).
Portanto, o fato de os arquivos serem expostos com os recortes de papel não é uma decisão "politicamente correta" no
que se refere à autoria colaborativa. É integral à "raison d'être" conceitual do Long March
Project.
Na minha opinião, o projeto
fornece um pungente contraponto à maioria da arte contemporânea chinesa em circulação internacionalmente hoje:
obras em vídeo que exibem
uma fascinação alegre pela adoção, de forma incrivelmente
acelerada, do capitalismo.
Portanto, a questão que se
coloca para mim ao observar algo como o Long March Project
é: o que significa esse tipo de
projeto transdisciplinar, multifacetado, estar ganhando espaço no âmbito da arte contemporânea hoje? Sua presença na
bienal testemunha uma resistência a (indesejáveis) mudanças sociais e políticas na China.
Mas o fato de que isso seja
obtido não por meio de ilustrações diretas ou documentais
-mas na forma de um censo e
de um arquivo de arte tradicional que, todavia, revela o impacto da modernidade e da pós-modernidade- é estética e politicamente estimulante.
Isso é bastante diferente do
tipo de questão que o projeto
banal de Tadej Pogacar levanta
ao chamar a atenção para a
prostituição. Nesse caso, fico
me perguntando: por que essas
camisetas são tão terríveis? Por
que o desfile de moda é tão pouco convincente como um desfile de moda? Por que o tom de
sua linha do tempo é tão descuidadosamente corporativo?
Eu não detecto nenhuma visão artística na concepção e
apresentação dessa obra.
FOLHA - Quais obras mais lhe chamaram a atenção na Bienal?
BISHOP - Existem várias maneiras de apreciar exposições:
como um conjunto de trabalhos individuais, como uma iniciativa curatorial, como um
projeto intelectual. Avalio essa
bienal como um projeto intelectual. Entre os artistas que já
me eram familiares, Roman
Ondák, Tacita Dean, Goshka
Macuga e Lida Abdul fizeram
apresentações vigorosas.
Fiquei satisfeita em me deparar com o trabalho de Laura Lima, Raimond Chaves e Simon
Evans pela primeira vez; a descoberta mais prazerosa foram
os esotéricos filmes de João
Maria Gusmão e Pedro Paiva.
As reconstruções de Matta-Clark foram informativas do
ponto de vista da história da arte, mas o filme de Ivan Cardoso
com Hélio Oiticica nos anos
1970 foi revelador.
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